Jorge Fernando dos Santos

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O samba nosso de cada dia

Jorge Fernando dos Santos*

“Quem não gosta de samba, bom sujeito não é/ É ruim da cabeça ou doente do pé”. Esses versos de Samba da minha terra, do compositor baiano Dorival Caymmi, sintetizam com precisão o ritmo que melhor identifica o Brasil lá fora. Tanto isso é verdade que muitos estrangeiros pensam que o hino brasileiro é o samba-exaltação Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. O Dia Nacional do Samba é comemorado em 2 de dezembro, data em que esse ilustre mineiro desembarcou na Bahia pela primeira vez.
Ninguém sabe exatamente quando surgiu o samba, mas, oficialmente, sua primeira gravação está completando 90 anos. Foi em 1917 que o cantor Bahiano fez o registro fonográfico de Pelo telefone para o selo Odeon. Trata-se de uma parceria entre Ernesto dos Santos (Donga) e Mauro de Almeida, surgida numa roda de samba no terreiro de Tia Ciata, famosa doceira baiana que reunia em sua casa músicos e compositores. Entre eles, um dos mais famosos era José Barbosa da Silva, o Sinhô, consagrado como o “rei do samba”.
Curiosamente, o próprio Bahiano – que havia gravado os primeiros discos da Casa Edison, a primeira gravadora do país – já tinha registrado outros sambas, como A viola está magoada, de Catulo da Paixão Cearense, poeta e compositor que fez muito sucesso nas primeiras décadas do século 20.

ORIGENS No Samba da bênção, feito em parceria com o violonista Baden Powell, o poeta Vinicius de Moraes afirma que “o samba nasceu lá na Bahia”. Essa afirmação é baseada no fato de que esse gênero musical é de origem negra e foi o Recôncavo Baiano uma das primeiras regiões do país a receber levas de escravos africanos. Ali surgiu o tradicional samba-de-roda, estilo no qual pode ser enquadrada a composição Pelo telefone.
A primeira menção ao samba na imprensa foi feita pelo padre Lopes Gama, pesquisador da cultura popular brasileira. Em 1838, num artigo publicado no jornal pernambucano O Carapuceiro, ele se refere ao “samba d’almocreves”. Para quem não sabe, almocreve é palavra de origem árabe e designava o serviçal encarregado de cuidar dos animais usados pelos tropeiros, que transportavam de tudo no lombo de mulas e burros.
O artigo de Lopes Gama fala mais precisamente da umbigada, gênero de dança muito comum entre os negros daquela época, uma das prováveis origens do samba. Aliás, essa palavra seria a junção de sam (dar) e ba (receber), expressões que designavam a coreografia considerada imoral pelas autoridades. Naquela época, os brancos preferiam curtir os gêneros musicais europeus, como o fado, a polca, a valsa e o lundu-canção, até então a única aproximação tolerável com a música de origem negra.
Além da umbigada, o samba também tem suas origens relacionadas a outros gêneros, como benguelê, corimá, jongo e cantos de trabalho dos escravos, ritmos que tiveram na cantora Clementina de Jesus sua última grande divulgadora. Em Angola existe ainda hoje o semba, um tipo de música também associada ao samba, a começar pela semelhança do nome.

Origem do ritmo
ainda é discutível

Muita gente discorda da tese de que o samba nasceu na Bahia. O compositor e pesquisador Carlos Henrique Machado Freitas, que reside em Volta Redonda (RJ), acredita que tanto o samba quanto o choro e o maxixe foram gestados no Vale do Paraíba, no Norte do Rio de Janeiro. Sua argumentação se baseia na presença maciça de escravos negros que vieram da Bahia para trabalhar nas plantações de café da região.
Já o crítico e pesquisador José Ramos Tinhorão afirma categoricamente que o samba surgiu na Cidade Nova, em pleno coração do Rio de Janeiro, mais precisamente na velha Praça Onze freqüentada pela boemia carioca. Em 1910, o prefeito Pereira Passos incrementou várias obras no Centro da antiga capital da República, devido às ressacas do mar e às epidemias que ameaçavam a população. Os velhos cortiços foram demolidos e os pobres foram literalmente empurrados para a Zona Norte e os morros da cidade.
Em 1897, com o fim da Guerra de Canudos no interior da Bahia, soldados que haviam derrotado os jagunços de Antônio Conselheiro mudaram-se para o Rio na esperança de receber os soldos atrasados. Muitos haviam constituído família com caboclas baianas e foram morar nos morros, pois não tinham recursos nem para habitar os velhos cortiços. Como Canudos ficava no Morro da Favela, devido à presença da fava ou faveleira – árvore cujas folhas eram usadas para cobrir os barracos de adobe –, não demorou muito para que as comunidades pobres começassem a ser chamadas de favelas.
A ação saneadora da prefeitura fez crescer ainda mais aqueles aglomerados, que se tornariam redutos das escolas de samba. Esse termo foi inventado pelo compositor Ismael Silva, que em 1928 fundou a Deixa Falar, primeira agremiação do samba carioca e embrião do Grêmio Recreativo e Escola de Samba Estácio de Sá. Também graças a ele, as composições mudaram de andamento, ficando mais adaptáveis aos desfiles, nascendo assim o chamado samba-enredo.
Depois surgiriam outras famosas agremiações, como a Estação Primeira de Mangueira, Portela, Vila Isabel, Salgueiro e Beija-Flor, entre outras. A Primeira de São Paulo foi fundada por Elpídio de Faria, em 1935, e o modelo não demorou a alcançar Minas Gerais e outros estados. Com isso, as escolas de samba foram pouco a pouco substituindo os antigos ranchos carnavalescos.

Influências da indústria

Entre 1930 e 1950, o rádio e a indústria de discos se consolidavam no país. Com isso, o samba desceu do morro para o asfalto, tornando-se o gênero musical mais divulgado da época, ao lado do maxixe, do choro e do foxtrote, ritmo surgido nos Estados Unidos. Emissoras como a Rádio Nacional e a Mayrink Veiga disputariam a audiência, como hoje fazem os canais de televisão.
Surgiram grandes cantoras, como Aracy Cortes, Aracy de Almeida, Marília Barbosa e Carmen Miranda, que levaria o samba para o mundo, e cantores como Francisco Alves, Mário Reis, Orlando Silva e Sílvio Caldas. Compositores talentosos como Assis Valente, Geraldo Pereira, Lamartine Babo, Noel Rosa e Wilson Batista teriam seus sambas imortalizados por esses intérpretes.
No final dos anos 50, o bolero e o samba-canção estavam na moda, com letras e melodias tristes. A chegada da televisão e a renovação das gravadoras, que adotaram o LP (long play), disco de vinil com seis músicas de cada lado, coincide com o início da bossa nova. Esse tipo de música, consolidada pela parceria de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e o cantor João Gilberto, funde elementos do samba, do jazz e da música erudita e logo cai no gosto dos jovens de formação universitária.
A história do samba não acaba nunca e nem mesmo a força do rock conseguiu suplantá-lo. Artistas como Chico Buarque, João Bosco, Paulinho da Viola e Zeca Pagodinho ajudam a mantê-lo em alta. Como diz o sambista Nelson Sargento, “o samba agoniza mas não morre”. Pelo contrário, como bom brasileiro, ele tem a capacidade de assimilar outras influências sem perder o rebolado. Graças a isso surgiram subgêneros para todos os gostos, como sambolero, samba-choro, samba-jazz, samba-rock, samba-rap, samba-funk, pagode e axé-music, que, em muitos casos, retoma a levada do tradicional samba-de-roda do Recôncavo Baiano.

*Matéria publicada no Gurilândia, caderno infantil do Estado de Minas

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