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O exemplo e a esperança

A obra mais conhecida do romancista João Felício dos Santos acaba de voltar às livrarias. Trata-se do romance Xica da Silva, escrito a partir do roteiro do filme de Cacá Diegues. A produção de 1976 foi estrelada por Zezé Motta, Walmor Chagas e José Wilker, tendo no papel do pároco o próprio autor, que só não se tornou ator profissional devido à surdez. Xica da Silva figura na galeria de personagens femininas da literatura brasileira, ao lado de Gabriela e Tereza Batista (de Jorge Amado), Ana Terra (Érico Verissimo), Capitu (Machado de Assis) e Iracema (José de Alencar).
Na década de 1960, quando a maioria dos leitores brasileiros sequer tinha ouvido falar no norte-americano Gore Vidal, João Felício dos Santos já se dedicava a escrever romances históricos nos quais reconstruía a trajetória de personagens marginalizados pela história oficial do país. Ganga-Zumba, por exemplo, foi lançado em 1964, premiado pela Academia Brasileira de Letras e adaptado para o cinema por Cacá Diegues. O livro narra a saga de Zumbi dos Palmares e inclui um glossário com palavras de origem africana.

O curioso é que, mesmo com a preocupação oficial em reconhecer a importância da contribuição negra na cultura brasileira, quase ninguém se lembrava mais de João Felício dos Santos, morto em 13 de junho de 1989. Sua obra abriu caminho nesse sentido e só agora, depois de demorada ausência nas livrarias, começa a ser reeditada pela José Olympio Editora.
Segundo a gerente editorial da José Olympio, Maria Amélia Mello, o projeto de republicar os livros de João Felício dos Santos foi motivado pelo valor de sua obra e pela própria política da empresa do grupo Record em manter no seu catálogo grandes autores nacionais, como Ariano Suassuna, Rachel de Queiroz, Mário Palmério, Aníbal Machado, Raul Bop e Ferreira Gullar, além de clássicos internacionais, como Gabriel García Márquez, por exemplo.

Maria Amélia entrevistou João Felício dos Santos em 1977 e diz que ficou impressionada com a força de sua personalidade. “Ele era um grande autor e sempre trabalhou com personagens negros ilustres. Era um escritor de estilo erudito, mas de leitura agradável, de fácil compreensão, marcada por um humor fino”, reconhece. “Era um pesquisador compromissado com a boa literatura e seria um absurdo seus livros continuarem longe das novas gerações. São obras que têm tudo para agradar os jovens, sendo adotadas em escolas e exames de vestibular.”
A decisão de começar a publicação da obra do autor por Xica da Silva se deve justamente ao fato de se tratar de seu livro mais conhecido. “A personagem já faz parte do imaginário do nosso povo. Foi popularizada pelo filme do Cacá, pela música do Jorge Benjor e virou até enredo de escola de samba”, lembra Maria Amélia. “Por isso a escolhemos para ser o abre-alas da coleção.”

Para o cineasta Cacá Diegues, “João Felício dos Santos foi, no Brasil, um precursor da ficção histórica, do romance baseado em fatos reais. Sempre procurou abordar a história dos esquecidos, daqueles que foram excluídos à força pelos vencedores. Não sei de outro escritor brasileiro que tivesse um tão vasto conhecimento das coisas do país, não só na forma de sua cultura popular, como também na erudição de sua história”, reconhece. “Ele escreveu de uma forma peculiar, numa espécie de língua brasileira que articulava de maneira muito pessoal e popular, a igual distância de Jorge Amado e Guimarães Rosa.”

Sobre o filme, Cacá afirma que “Xica da Silva foi e continua sendo” um de seus filmes mais populares. “A idéia de fazê-lo estava muito ligada ao momento que vivíamos, de certa abertura política na ditadura militar, um momento que nos dava muita esperança de dias melhores e mais democráticos…Pedi a Felício que escrevesse o roteiro comigo, não podia abrir mão de sua participação na escritura dele. Para mantê-lo a meu lado nas filmagens, inventamos o personagem do pároco, que ele interpretou de maneira graciosa.” Só depois do filme pronto é que o escritor resolveu escrever o romance. “Este é um caso raro de um filme que deu origem a um livro”, diz o cineasta, acrescentando que “as novas gerações precisam conhecer esse grande brasileiro, esse grande escritor. O leitores de hoje vão se surpreender com a atualidade de sua literatura”.

Na orelha da nova edição, o escritor Joel Rufino dos Santos lembra que a narrativa do ficcionista vai além da história oficial. “É o que a literatura pode fazer com a história: torná-la viva, interessante para os homens de qualquer lugar e de qualquer tempo”, ressalta. “Com os poderes de sua arte, sem falsear a verdade histórica, apenas lhe acrescentando vida, o romancista torna a personagem fascinante, comovedora – quase uma Pombagira.”
Um dos grandes amigos de João Felício dos Santos foi o escritor português Cunha de Leiradella, que viveu no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte e hoje está de volta à sua terra natal. “O que tenho a dizer sobre esse grande entre os grandes escritores brasileiros cabe numa rima: verdade X saudade”, afirma de sua casa, em Póvoa do Lanhoso, Norte de Portugal. “Com ele, aprendi que a verdade do artista é muito mais importante do que a fama do artista.”

Autor premiado de romances como O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior, e de peças como As pulgas, ainda em cartaz em Portugal, Leiradella lembra que o romancista histórico “foi um dos seres mais humanos, mas verdadeiros e mais puros” que conheceu: “Como escritor, foi um dos maiores. Nunca o vi escrever para o aqui e para o agora. Felício escreveu para o depois. Para o tempo onde apenas os grandes têm lugar”, define.

VIAJANTE João Felício dos Santos nasceu na comarca de Mendes, Estado do Rio, a 14 de março de 1911. Sobrinho do historiador mineiro Joaquim Felício dos Santos, de Diamantina, foi jornalista, publicitário e funcionário público federal. Topógrafo de profissão, ingressou no Ministério de Viação e Obras Públicas em 1932. Viajou várias vezes pelo país a serviço do governo e também por conta própria, com o intuito de conhecer a história e os costumes nacionais. Sobreviveu a três naufrágios, um duelo, uma queda em poço de elevador e à morte do filho, jovem oficial da FAB que desapareceu com avião e tudo numa tempestade, na Serra do Mar.
Sua estréia na literatura ocorreu em 1934, com o livro de poemas Palmeira-real. Em 1956, lançou o infantil João Bola. Só depois de ouvir o ponto de vista de personagens comuns sobre importantes capítulos da história nordestina foi que se sentiu apto a escrever livros como João Abade (1958 ), sobre a guerra de Canudos, e Major Calabar (1960), no qual desenha um rigoroso retrato da invasão holandesa em Pernambuco. Esse livro veio a público muito antes do musical de Chico Buarque e Ruy Guerra, Calabar, o elogio da traição, que seria vetado pela censura federal.
O pioneirismo em abordar temas polêmicos foi uma das principais características do autor. Outro exemplo disso é o romance Carlota Joaquina, a rainha devassa, publicado em 1968, antecipando em décadas o filme de Carla Camurati. Já Ganga-Zumba antecedeu o famoso espetáculo Arena conta Zumbi, de Giafrancesco Guarnieri e Augusto Boal. A guerrilheira – O romance da vida de Anita Garibaldi certamente teria resultado numa minissérie mais verossímil que A casa das sete mulheres.

O escritor integrou os quadros da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e foi amigo pessoal do ex-presidente Juscelino Kubitschek, quando este já vivia no ostracismo, com os direitos políticos cassados. Ele mesmo seria enquadrado no AI-5, acusado de subversão devido ao ponto de vista de sua obra e aos elogios que recebia do Partido Comunista (PC).

Outra perseguição vinha de catedráticos de história, que não perdoavam no autor a ousadia de misturar história e ficção, dando preferência ao discurso dos excluídos. Sua verve literária, marcada pela pesquisa e pelo texto de estilo fluente, permitiu-lhe lançar luzes sobre capítulos obscuros da vida brasileira com estilo que lembra o dos grandes clássicos. “Os historiadores geralmente são frustrados porque não têm a imaginação dos romancistas”, defendia-se.

Para ele, a história era “o fato de quebrar a linha entre o exemplo e a esperança, nunca um meio certo para provar que não existe semelhança numa comparação. Escrevê-la, ainda que de forma ficcional, é juntar pedaços como ponteiros. Mas a escolha do tamanho depende da ideologia”. Morreu aos 78 anos, no Rio, deixando mulher, filha e o romance inédito Rotas de além-mar.

Além de Xica da Silva, que graças ao cinema se tornou a obra mais popular de João Felício dos Santos, estão planejadas para breve as reedições de outros romances que ele publicou pela Civilização Brasileira. Oito deles foram também editados pelo então prestigioso Círculo do Livro, que vendia em domicílio o melhor da literatura universal. Ganga-Zumba, considerado seu grande clássico, ganhou edição de bolso pela Ediouro, com ilustrações do artista plástico Caribé. Seu último livro publicado, Margueira amarga, foi ilustrado por Poty.

Serviço
Xica da Silva
De João Felício dos Santos
José Olympio Editora, 240 páginas, R$ 34

* Artigo publicado no caderno Pensar do jornal Estado de Minas.

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