Jorge Fernando dos Santos

O homem que disse não

Geraldo Vandré reaparece depois de vários anos no Canal Livre, da TV Bandeirantes (Foto: Band)

Foi decepcionante a entrevista feita pela equipe do programa Canal Livre, da TV Bandeirantes, nesse domingo (23/7). O convidado foi ninguém menos que Geraldo Vandré, cantor e compositor paraibano que tive o prazer de biografar – ainda que sem autorização. Como sempre, ele se esquivou das questões incômodas, sabendo como poucos manobrar os rumos da prosa.

Nem mesmo o experiente Fernando Mitre, decano do programa, conseguiu se sair bem. Para início de conversa, se esqueceram de apresentar o entrevistado ao público. Espectadores mais jovens certamente não têm noção do que Vandré representa na História nacional. A maioria nem sabe como foram os “anos de chumbo”, que dirá a trajetória deste que foi o maior ícone dos festivais da canção.

Nascido Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, em João Pessoa, a 12 de setembro de 1935, Vandré tem 87 anos. Apresentou-se no Canal Livre usando um boné cinza, óculos escuros e exageradamente agasalhado (consta que sempre foi friorento). O olhar fugidio e a barba branca mal cortada escondem o homem bonito que ele foi um dia. Contudo, a lucidez permanece a mesma dos tempos em que empunhava o violão para cantar canções de amor e protesto (termo que detesta).

Café requentado

Muito poderia ter sido perguntado ao artista mais polêmico e emblemático da MPB. No entanto, os entrevistadores preferiram requentar o café e adular o convidado. A velha história da tortura que ele sempre negou, detalhes de sua fuga do país após a decretação do AI-5 etc. etc. Deveriam ter começado falando de sua infância, de sua atuação em programas de calouros, da prisão num navio antes mesmo da ditadura se agravar.

Nada foi dito sobre o fato de sua música mais famosa, Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando), verdadeiro hino de oposição aos generais ditadores, ter sido entoada por bolsonaristas que sonham com a volta dos militares ao poder. Pouco se esclareceu sobre seu retorno ao país, em 1973,  ajudado pelo general Estevão Taurino de Rezende Netto a pedido de sua mãe.

Na verdade, Vandré foi apenas um artista de raro talento, dedicado à canção popular em tempos sombrios. Usou dos versos para contestar o poder imposto e pagou caro por isso. No entanto, como o próprio reafirmou no Canal Livre desse domingo, nunca teve militância política ou filiação partidária. Fazia músicas por inspiração, atento às demandas de sua época. Deixou a carreira artística por discordar da chamada cultura de massa, que a todos quer controlar.

Canção de exílio

Classificado em segundo lugar no 3º FIC (Festival Internacional da Canção), realizado pela TV Globo em 1968, ele viu sua canção Caminhando ser transformada numa espécie de Marselhesa – comparação feita pelo genial Millôr Fernandes num artigo de jornal. A plateia do Maracanãzinho vaiou a vencedora, Sabiá, de Tom e Chico, ignorando o fato de se tratar de uma canção de exílio inspirada no famoso poema de Gonçalves Dias (o poeta, não o general lulista de 8 de janeiro).

Vandré se viu elevado ao posto de herói da resistência e entrou em pânico ao ser ameaçado por extremistas de direita. Voou clandestinamente para Santiago do Chile, viajou pela Europa e retornou ao Brasil deprimido e confuso, sendo tratado pelo próprio Exército que hostilizou com seus versos: “Há soldados armados, amados ou não / Quase todos perdidos de armas não mão / Os quartéis lhes ensinam a antiga lição / De morrer pela pátria e viver sem razão”.

É uma pena que o sucesso estrondoso da canção de dois acordes tenha abafado o restante de seu repertório. Nem mesmo os entrevistados de domingo pareciam saber que ele compôs letras de extremo lirismo para melodias de Alaíde Costa, Baden Powell, Carlos Lyra, Moacir Santos e muitos outros. Ao falar sobre a trilha do filme A hora e vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, não se lembraram que Vandré não só compôs a trilha sonora, como também coproduziu e fez figuração. Em suma, em vez de falar de sua arte, preferiram alimentar o folclore e a caricatura.

8 comentários em “O homem que disse não”

  1. Muito boa essas suas notas sobre o Vandré e a entrevista. Não assisti à entrevista, mas tenho e li o seu livro sobre a biografia do compositor/cantor. Eu cantei muito a música Caminhando, durante as passeatas em que participei. Parabéns pela matéria!!

  2. A entrevista com Geraldo Vandre não proporcionou uma visão mais íntima e pessoal do artista, como na biografia escrita por Jorge Fernando dos Santos que também apresenta uma perspectiva contextualizada de sua vida e obra. A entrevista não permite que os ouvintes apreciem a magnitude do legado deixado por esse grande nome da música brasileira, um homem cuja arte deveria continuar a inspirar e emocionar audiências no Brasil e ao redor do mundo.

  3. bela matéria, amigo jorge! e não me espantou que os entrevistadores, vai ver, usuários ad nauseam (muito pra lá de até cansar) das ditas redes sociais não saibam fazer uma entrevista. nas ditas redes não se pescam peixes sapientes. só lá pintam peixinhos de aquário, e quanto mais coloridos melhor (pra eles, e pior pras novas gerações). uma tristeza!

  4. Augusto Carlos Duarte

    Vandré é plural.
    Mas vivemos tempos “rotulatoriamente” reducioistas. Fazendo um comparativo com Beethoven, ao se perguntar à maioria das pessoas se conhecem o compositor alemão, boa parte dirá:
    – Sim, é o cara (?????) que fez “Tchan-tchan-tchan-tchan! (ele, Beto Jamaica e “Cumpadi” Washington?).
    E estamos conversados.
    Menos Beethoven e mais Dylan, que, certa feita, irritado, disse nunca ter querido ser o guru de nada (a referência era à “contracultura”), apenas ter querido compor suas músicas (e o que o celebrizou foram as letras (vide Nobel de Literatura), até onde sei, o dito “dylaneano” bem poderia ter saído da boca de Vandré.
    Convenhamos que isto não ajuda muito à “esfinge” Vandré.
    De importante (muito), fica a reaparição. Que levará à discografia, biografias e afins.
    Vandré segue sendo o “contra-artista” (alusão à contracultura).
    Ponto pra ele, quando se vê a “arteaparência” (e não essência) hoje reinante.

    1. Amei ‘ARTEAPARENCIA’… faço parte da essência, imagine onde me encontro agora e sempre escondido nos porões das esquinas assim como tantos outros

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