Jorge Fernando dos Santos

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Cá estou eu, sentado na beira da cama, depois de mais uma longa caminhada. Minhas pernas estão doloridas, com os músculos retesados dentro do pijama. Nem mesmo o banho frio foi capaz de expulsar de mim essa estranha sensação. E ali estão meus pés. Ambos tranquilos, como se nada tivesse acontecido. Toda vez é assim. Eles estão sempre me obrigando a fazer as coisas, sempre me arrastando para lugares desconhecidos, muitas vezes perigosos.

Não me lembro quando foi que tudo começou e nem sei se acontece a mesma coisa com as outras pessoas. Nunca perguntei a ninguém. Às vezes imagino que sempre foi assim com todo mundo. Comigo, pelo menos, tem acontecido regularmente. É só eu começar a caminhar dentro da noite que os meus pés logo assumem o controle. Não adianta eu tentar resistir. Por mais que eu tente detê-los, simplesmente não consigo. Depois eles ficam desse jeito, me olhando cinicamente, como se não tivessem feito nada de errado.

Não me esqueço daquela vez em que fui assaltado por causa deles. Eu havia saído tarde do trabalho. Deviam ser quase dez horas quando deixei o escritório. Mal comecei a descer a rua e os dois sacanas dominaram meus passos. “Hoje não” – supliquei, mas não adiantou. Andei contra a minha vontade. Atravessei o parque e, quando dei por mim, estava numa esquina escura, perto da Estação Ferroviária. Foi quando dois sujeitos mal-encarados saltaram da sombra, sem mais nem menos. Tomei um susto daqueles e logo as minhas pernas começaram a tremer. “Isto é um assalto”, disse o mais alto, sacando do bolso uma faca automática.

Tentei correr, mas não consegui. Minhas pernas ficaram paralisadas, tremendo de bater os joelhos, como se o pior dos invernos tivesse chegado. “Manda logo a grana, ô bacana”, disse o outro com uma voz ronronante feito um gato feroz. Um negro de dentes muito brancos e olhos brilhantes como os de uma pantera.

Fracassei na tentativa de sair correndo. As minhas pernas são como duas velhas esclerosadas. Os meus pés sempre fazem delas o que querem. E o pior é que se divertem com isso. Naquela noite eu escapei por um triz. Entreguei o dinheiro aos dois assaltantes e ambos saíram correndo em direção ao viaduto. Sumiram em meio aos carros que vinham do antigo bairro, que fica do lado leste da cidade. Para dizer a verdade, senti foi inveja deles. Dois marginais sem nada a perder, mas com pernas tão jovens e pés tão obedientes.

Fui para casa a pé, pois fiquei sem dinheiro até mesmo para a passagem do ônibus. Eram quase duas horas quando cheguei. E foi como hoje. Tomei uma ducha, enfiei-me no pijama e a insônia logo me tomou de assalto. Fiquei como estou agora, sentado na beira da cama, olhando os meus pés e sentindo-me totalmente indefeso e inútil. Quando consegui vencer a insônia, já era madrugada e os galos da vizinhança cantavam para acordar o sol. Foi então que aquele pesadelo veio me castigar o sono. Não sei se já falei a respeito, mas o fato é que estou sempre sonhando que os meus pés são gigantes correndo no meu encalço. Fujo por ruas e vielas escuras e enfumaçadas, onde os esgotos escorrem à flor da terra.

Quanto mais eu corro, mais os meus pés se aproximam de mim, sempre impávidos e ameaçadores, pisando tão firme que chegam a retumbar o chão à minha volta. Corro até perder o fôlego. Minhas pernas se embaraçam e eu acabo caindo e perdendo os sentidos.

Acordo ofegante e suando frio, com a sensação de que ainda estou sonhando. Afinal, não consigo sentir os meus pés e, por mais que eu me esforce, nunca tenho coragem de olhá-los para conferir se eles estão no lugar. Distraio o meu pensamento contando os segundos ao ritmo do tiquetaque do relógio de parede que fica na sala. Somente quando ele me desperta com a campainha berrando, às sete da matina, é que tenho a certeza de que tudo realmente não passou de um pesadelo.

O pior é que os meus pés parecem falar um com o outro. Acho que se divertem ao olhar para cima e perceberem a angústia estampada nos meus olhos. Mas eu não deixo por menos. Sempre calço sapatos apertados só pelo prazer de castigar os meus pés.

Eles podem ter a capacidade de me arrastar pelas ruas escuras, para lugares perigosos, onde jamais eu iria por livre e espontânea vontade, mas eu me vingo prendendo-os em sapatos bem apertados. E eles se enchem de bolhas e calos, e sofrem uma dor intermitente, e por mais que tentem repassar-me tal martírio, eu me agüento firme, prosseguindo em meu intento. Aí eles ficam desesperados e cheios de fúria. Arrastam-me por caminhos cada vez mais tortuosos, chocando-se contra pedras e paralelepípedos. Mas eu não desisto. E tenho cá as minhas razões. Afinal, tentei fazer um acordo com eles. Tudo seria simples demais. Eles paravam de me arrastar por aí, passando a obedecer minha vontade, e eu só usaria sapatos macios e confortáveis. Qual o quê! Os meus pés nunca me dão ouvidos. Nunca.

Mas esta noite eles foram longe demais. Simplesmente passaram dos limites toleráveis. Imagine que eu sou um homem tímido. Praticamente casto, devo confessar. Questão de educação, quero crer. O fato é que eu detesto licenciosidade, pornografia, ou qualquer tipo de vulgaridade. Nas poucas vezes em que fiz amor foi porque eu estava apaixonado. Sem paixão, o sexo não faz sentido. É como um violão sem cordas ou um vinho sem buquê. Nunca entrei num prostíbulo ou casa de encontros. Nunca, até esta noite.

Larguei serviço às seis e meia e às sete e dez eu já havia chegado em casa. Então, senti vontade de fumar e só aí percebi que estava sem cigarros. “Hoje eu não vou sair”, falei comigo mesmo. Mas não consegui resistir por muito tempo. É que, de todos os vícios, o único que me domina é o do cigarro. Eu simplesmente não consigo deixar de fumar. Fumo desde os quatorze anos de idade. E fumo muito. Às vezes até três maços por dia. Tudo depende do meu estado de espírito. Conforme eu estiver me sentindo, fumo o dia inteiro, acendendo um cigarro no outro, desesperadamente. “Desse jeito o serviço não rende”, disse o chefe do escritório, um dia desses. Mas o que é que eu vou fazer? É assim que eu sou. Um fumante inveterado e sem força de vontade. Desses que acordam no meio da madrugada aflitos para fumar.

Mas, como eu ia dizendo, cheguei em casa às sete e dez e percebi que havia me esquecido de comprar cigarros. “Hoje eu não posso sair”, repeti várias vezes em pensamento. Mas não consegui resistir àquele impulso. “Vou bem depressa até o bar da esquina”, disse a mim mesmo. “Não vai nem dar tempo dos meus pés perceberem”. Eu estava enganado. Foi só eu sair do bar e a coisa começou como nas noites anteriores. Nem mesmo abri o maço de cigarros.

Quando dei por mim, já havia andado quatro, talvez cinco quarteirões numa direção jamais tomada anteriormente.
Caminhei e caminhei até chegar a uma rua deserta, com um forte cheiro de dama-da-noite. “Para onde vocês estão me levando?”, perguntei aos meus pés e, como sempre acontece, não obtive nenhuma resposta. Foi então que avistei aquela casa de dois andares, paredes amarelas e uma luz vermelha iluminando o alpendre. Ficava numa esquina, ao lado de uma outra casa de cor azul, com o símbolo da maçonaria sobre a porta. “Não, eu não vou entrar”, quase gritei. E, sem conseguir me deter, passei pelo largo portão e parei na varanda.

Logo apareceu uma mulher loura, de olhos verdes e enormes cílios postiços. Usava uma saia lilás muito curta, que deixava à vista as coxas brancas como neve e roliças feito pedra sabão. “Boa noite”, disse ela na minha cara, exalando um hálito de hortelã. Uma estranha sensação percorreu-me a espinha, causando-me um arrepio. Fiquei completamente imobilizado. Senti as palavras embolarem na garganta e não consegui dizer nada. A mulher pegou-me pela mão e me convidou para sentar num sofá, onde as outras conversavam entre si. “Vamos fazer um programa, querido”, disse ela no meu ouvido. Senti meu rosto ficar em chamas e, por cima do ombro dela, pude enxergá-lo refletido num espelho, rubro feito brasa. “Preciso ir embora daqui”, pensei quase em voz alta.

Antes que eu reassumisse o controle da situação, o meu pé esquerdo, que é sempre o mais atirado, descalçou o sapato do direito e este começou a se esfregar nas pernas da tal mulher. Ela sorriu, ficou de pé e foi me levando pela mão até a escada logo à frente. Quase não tive tempo de apanhar o sapato caído no tapete.

E fomos os dois, subindo a escada em direção a um dos quartos do segundo andar. E, enquanto subíamos, eu ia chutando os degraus com o pé descalço, só para me vingar dele.

Quando entramos no quarto, eu me confundi de vez. “Olha, moça, o que eu quero dizer…”, danei a gaguejar e a mulher pensou compreender e, é claro, compreendeu o que quis: “Não precisa se preocupar, fica relaxado que eu faço o resto, querido. Eu prometo que tudo vai dar certo…Vai ser uma noite inesquecível, você vai ver”. Ela se despiu rapidamente e, como eu não fiz o mesmo, começou a tirar a minha roupa. Tentei resistir, mas foi em vão.

Segundos depois, lá estava eu, completamente nu, deitado na cama, com a tal mulher me lambendo feito uma cadela esfomeada. Felizmente tudo aconteceu depressa… Mas nem mesmo naquele instante de total intimidade os meus pés me deixaram em paz. Foi só eu olhar para o espelho do teto e lá estavam os dois me observando e se divertindo às custas da minha desgraça.

Enquanto a mulher se lavava, eu acendi um cigarro. Dei duas tragadas e olhei os meus pés novamente. Notei que estavam quietos, como que saciados. “Hoje vocês me pagam”, murmurei, e a mulher perguntou lá do banheiro: “Que foi que você disse? “.

Pigarreei sem graça: “Nada não”. E, antes que ela saísse do banho, queimei os meus pés com a brasa do cigarro. Depois vesti a roupa rapidamente. “Você não quer se lavar? “, ela perguntou ao retornar ao quarto, enxugando-se numa toalha amarela. “Estou com muita pressa”, respondi e evitei entrar em detalhes. “Tudo bem”, disse ela, estendendo-me a mão. E lá se foram os trocados que eu tinha no bolso, o que me obrigou a voltar a pé para casa.

Agora, cá estou eu, sentado na beira da cama, depois de mais uma longa caminhada. Minhas pernas estão doloridas, com os músculos retesados dentro do pijama. Nem mesmo o banho frio foi capaz de expulsar de mim essa estranha sensação. E ali estão meus pés. Ambos tranqüilos, como se nada tivesse acontecido… E a minha atenção só se desvia deles quando contemplo o facão afiado sobre a cômoda. Talvez seja esse o melhor castigo para eles e para mim mesmo. Afinal, eu nunca deveria ter ido a um lugar como aquele. Aliás, eu não fui. Não por minha espontânea vontade. Foram os meus pés que me levaram até lá. De fato eu gozei, não posso negar. Mas foram eles que sentiram prazer.

  • Incluído na coletânea “Caminhante Noturno” (Ed. Terceira Margem).

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