Jorge Fernando dos Santos

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O relógio marcava dez e quarenta. Ela estava preocupada, pois o marido não costumava se atrasar. O celular estava mudo. Ligou também no escritório, mas ninguém atendeu. Andava de um lado para o outro do quarto, fumando o último cigarro do maço, quando finalmente ouviu o barulho da chave na porta.
O vulto passou pela sala e entrou no banheiro social. Ela ficou parada, espreitando o corredor em penumbra. Estava pronta para indagar, interrogar, esbravejar, talvez. Ouviu o som da  urina caindo no vaso. Deve ter bebido cerveja com os colegas, imaginou.
Ele acionou a descarga, apagou a luz do banheiro e se dirigiu para o quarto.
Assim que se depararam, ambos ficaram estáticos. Ela pensou em gritar, mas teve medo que o outro cometesse um desatino. Permaneceram em silêncio por um instante, até que ele arriscou:
– Quem é você?
– Eu?
– Você… O que está fazendo aqui?
– Estou na minha casa.
– Sua casa? Quem mora aqui sou eu. Eu e a minha mulher. Aliás, onde ela está?
– Eu é que vou saber? Deve estar na sua casa.
– Mas este é o meu apartamento e aquela é a minha cama.
– Sua cama?!
– Minha e da minha mulher. Esse é o meu lado do armário. Aqui estão os meus ternos, minhas camisas, minhas cuecas. Daquele lado ficam as roupas dela. Pode conferir, se quiser.
A situação parecia bizarra. O estranho agia como se fosse mesmo o dono da casa. Pelo menos tentava passar essa impressão, sem dúvida.
– Minhas roupas, você quer dizer – disse ela, abrindo o outro lado do armário.
– Aqui estão as minhas saias, meus vestidos, minhas calcinhas…
– São as roupas da minha mulher, eu já disse.
– Você deve estar bêbado. Eu e meu marido moramos aqui há mais de dez anos.
– E onde ele está agora?
– Eu não sei – disse ela, e então se deu conta de que não se lembrava de nada a respeito do próprio marido. – Coisa mais estranha!
– O que foi?
– Não consigo me lembrar quem ele é.
– Como assim, não consegue se lembrar do marido?
– Me deu um branco. Não me lembro nem mesmo do nome.
Intrigado, ele se sentou na cama e passou as mãos no rosto. Tentou encontrar uma explicação razoável para o encontro inusitado. Havia bebido um pouco, mas não o bastante para delirar, errar o endereço de casa ou perder o senso da realidade. Talvez aquela estranha fosse uma louca varrida. Percebendo que ele estava confuso, ela procurou aliviar a tensão:
– Me dá um cigarro?
– Eu não fumo.

– O meu marido fuma.
– Mas eu não sou seu marido… Espera lá, disso você se lembra.
– Tem razão. Disso eu me lembro.
Voltaram à questão anterior, e ela ficou ainda mais intrigada. Se o marido a encontrasse com outro homem àquela hora e naquelas condições, como ela poderia se explicar?
– Vamos por partes – o estranho sugeriu. – Certamente um de nós confundiu os apartamentos e talvez o outro possa ajudá-lo a se lembrar do endereço certo. Você há de concordar que os prédios do conjunto residencial são muito parecidos.
– Bloco B – ela disparou.
– Bloco B?
– É. Eu moro no Bloco B, apartamento 203.
– Mas esse é o endereço onde estamos. Quem mora aqui sou eu. Eu e a minha mulher.
– Não, você está muito enganado. Este apartamento é meu e do meu marido, tenho certeza.
– Mas você nem se lembra dele!
– Não. Quero dizer, não me lembro de nada, realmente. Mas sei que moramos aqui desde que nos casamos.
– Quem sabe eu posso ajudá-la? Ele é louro ou moreno?
– Eu não sei.
– Gordo ou magro, alto ou baixo?
– Não faço a mínima ideia.
– Qual o nome dele?
– Já disse que não me lembro.
– Você deve estar sofrendo de amnésia. Não consegue se lembrar de nada e entrou no apartamento errado. Pior vai ser se a minha mulher te encontrar aqui, a essa hora da noite. E, ainda por cima, de camisola.
– Sua mulher!
– O que tem ela?
– Como se chama? Talvez eu a conheça.
Ao ouvir a frase, ele constatou que não se lembrava da esposa.
– Coisa estranha, também me deu branco. Não sei descrevê-la. Você deve ter me contagiado, só pode ser isso.
– Ela é loura ou morena, gorda ou magra?
Ele realmente não se lembrava. Não se recordava do nome nem do rosto, menos ainda da cor dos cabelos ou da pele. Pensou em consultar a aliança na qual o nome estaria gravado, mas se lembrou de tê-la deixado numa gaveta da mesa de trabalho.
– Sua aliança – exclamou.
– O que tem ela?
– Deve ter o nome do seu marido.
– Eu não uso aliança.
– Como assim, não usa aliança?!
– Eu a perdi há dois ou três anos. Por que não olha a sua?
– Deixei-a no escritório. Ela aperta o dedo e me incomoda quando faz calor – disse ele, afrouxando a gravata. 

Os dois se angustiaram mais ainda. Ele então foi até à cozinha e ela o seguiu, exigindo que fosse embora.
– Ir embora, eu? Mas aqui é o meu lar! Comprei esses móveis, pago o condomínio e o IPTU… Você é que é a intrusa.
– Intrusa, eu?
Ele pegou uma xícara e a garrafa térmica sobre a pia.
– Não tem café?
– Claro que não!
– Mas que tipo de esposa é você? Seu marido chega cansado da rua, e não encontra café?
– Ele não toma café.
– E como é que você sabe, se não se lembra de nada?
– Francamente, eu não sei.
– Pois saiba você que eu adoro café. Sem açúcar, de preferência.
– Tá pensando que eu sou sua empregada pra coar café a essa hora da noite?
Por que não vai dormir num hotel? Amanhã você volta e a gente esclarece o mal-entendido.
– Eu, dormir num hotel? De jeito nenhum. Aqui é meu lar, eu já disse.
Ele foi até à sala e olhou os móveis ao redor. Tentava encontrar um porta-retratos que tivesse sua fotografia com a mulher, mas não viu nenhum. Também constatou não haver fotos da estranha com o marido. Então, pediu a ela para buscar o álbum de casamento.
– Não está aqui.
– Como assim?
– Emprestei pra minha mãe. Ela quer copiar algumas fotos.
– E a certidão de casamento?
– A certidão?
– É, a certidão.
– Ela fica guardada dentro do álbum.
De repente, ele se lembrou das próprias fotos e voltou ao quarto.
– Tá procurando o quê? – disse a estranha, enquanto ele revirava as gavetas da cômoda.
– Vou provar que foi você que errou de endereço.
– Não adianta procurar. Está com a minha mãe, eu já disse.
– Não estou procurando o seu álbum, mas o meu e da minha mulher.
Ele não encontrou nada e chegou a cogitar que estivesse sonhando. Beliscou o próprio rosto em frente do espelho e confirmou estar acordado.
– Deus do céu – suspirou. – Uma coisa dessas não acontece nem no cinema.
Algo de muito estranho está se passando ou então perdemos o juízo.
– Se alguém aqui enlouqueceu, esse alguém é você.

Ficaram em silêncio por um momento, até que ele perguntou:
– Qual o seu nome?
– Sônia… E o seu?
– Eu me chamo Walter. Pelo menos disso eu me lembro.
– Muito prazer!
Apertaram as mãos levemente e depois se sentaram na cama.
– Minha mulher não se chama Sônia. Pelo menos eu acho.
– Também não conheço nenhum Walter. Não que eu me lembre.

– Tem certeza de que não se recorda do nome do seu marido?
– Absoluta! Nem do nome, nem do rosto, nem do cheiro.
Ela sentiu um arrepio e começou a soluçar. Ele a abraçou ternamente. Afinal, todo homem se derrete quando vê mulher chorando.
– Mas o que é isso? Não precisa ficar assim.
– Alguma coisa absurda está acontecendo. Até parece que estamos em universos paralelos, numa história de ficção científica.
– Talvez um simples telefonema possa esclarecer tudo.
– Telefonema?
– É! Por que não liga pro seu marido?
– Liguei há pouco no escritório e no celular, mas ninguém atendeu.
– Então você se lembra dos números?
– Sim, dos números eu me lembro.
– Se ele não atende, liga pra sua mãe. Pergunta o nome dele.
– Minha mãe é idosa, e eu não quero preocupá-la. A essa hora, ela já deve estar no terceiro sono.
– Entendo… Já sei: deve ter fotos dele no seu celular.
– Esqueci o celular na loja onde eu trabalho. E o seu, não tem fotos da sua mulher?
– Não está funcionando. Levou um tombo hoje cedo. Pelo jeito, vou ter que comprar outro.
– Liga pra ela do meu fixo. O aparelho fica na sala.
– Eu não sei o número de cor.
– Não sabe ou esqueceu?
– E quem decora números de telefone depois da agenda eletrônica? Além do mais, eu não saberia o que dizer…
Após um breve silêncio, ela voltou a chorar.
– Calma, isso não adianta – disse ele.
– E se pedíssemos ajuda aos vizinhos?
– A essa hora da noite, o que pensariam da gente?
– É, tem razão. Mas o que vamos fazer?
– Acho que você está certa. Melhor eu dormir num hotel.
– Vai me deixar aqui sozinha?
– Até seu marido chegar.
– E se ele não voltar? E se você for mesmo o dono da casa?
Ficaram calados novamente. Walter bocejou e começou a se despir.
– O que está fazendo?
– Estou muito cansado. Tive um dia daqueles e terei uma reunião de trabalho amanhã cedo.
Ficou só de cueca e se enfiou entre os lençóis.
– Tenha uma boa noite – virou-se para o canto.
Sônia ficou ainda mais angustiada, sem saber o que dizer. Olhou o relógio digital sobre a cômoda e constatou que já passava da meia-noite. Foi até a cozinha, tomou um copo d’água e voltou para o quarto. Notou que havia algo de familiar naquele homem deitado em sua cama. Puxou novamente pela memória e mais uma vez constatou que não se lembrava de nada a respeito do marido. Seja o que Deus quiser, murmurou. Em seguida, apagou a luz, enfiou-se entre os lençóis e ficou mirando o escuro do quarto.

Walter se virou lentamente, e ela sentiu na pele o calor do seu corpo. Experimentou uma estranha sensação ao farejar o hálito de cerveja e ouvir-lhe a respiração tão perto do seu rosto. Sem que ela pudesse ou quisesse evitar, ele a abraçou carinhosamente e depois começou a beijá-la… Amaram-se com sofreguidão, e nenhum dos dois se lembrou de ter sentido tanto prazer. Dormiram um sono profundo, sem sonhos nem pesadelos. De madrugada, amaram-se de novo em silêncio e em diferentes posições.
Tão logo o dia amanheceu, Sônia tomou uma ducha e se deitou novamente. 
Fincou o cotovelo esquerdo no travesseiro, apoiou o queixo na mão e ficou olhando o estranho que ressonava ao seu lado. Às seis e meia, ela o acordou com um beijo na fronte.
– Você disse que tem reunião…
Walter tomou banho, vestiu a roupa e saiu apressado, sem nem mesmo provar o café que ela havia coado com tanto carinho. Ao chegar no escritório, a primeira coisa que ele fez foi pegar a aliança na gaveta da escrivaninha. Contudo, resistiu à tentação
de ler o nome gravado. Entrou no banheiro, jogou-a no vaso e acionou a descarga.

  • Adaptado para vídeo e incluído em primeira versão na coletânea Caminhante Noturno.

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