Jorge Fernando dos Santos

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Pelo que sei, Adolfo Tavares da Anunciação era general-de-brigada da reserva do exército brasileiro. Carioca da gema e torcedor do Fluminense, ele me disse que morava num apartamento no Leblon e que levantava cedo todos os dias para caminhar no calçadão da praia. Aos 74 anos, gabava-se de estar em plena forma, sim senhor.

Solteirão convicto, sempre teve a pátria como único objeto do seu amor e a ela dedicou toda a vida, desde o ingresso na Academia Militar das Agulhas Negras, ainda na adolescência. Guardava na cristaleira que herdara da mãe todas as medalhas conquistadas ao longo da carreira, dos seus tempos de subtenente da infantaria até as funções burocráticas de coronel no Ministério da Defesa, pouco antes de ser reformado.

General Tavares – eis o seu nome de guerra – era frequentador assíduo do Clube Militar do Rio, onde jogava tênis e sinuca com veteranos que trocaram a farda pelo pijama. Isso o ajudava a quebrar a rotina de vida de quem se via longe da caserna há mais de uma década, entende? Duas vezes por ano, em feriados prolongados, ele costumava viajar sozinho pelo circuito das águas, no interior de Minas, a fim de se livrar do estresse da cidade grande.

O velho oficial a paisana era daqueles que se orgulham da própria biografia. Gabava-se de ter servido em diferentes regiões militares, no combate à subversão e às guerrilhas de esquerda. No seu ponto de vista, a revolução de 1964 salvara o Brasil da escória comunista e dos falsos democratas que sempre conspiraram contra a liberdade dos povos.

Aos olhos do experiente militar, era um absurdo que ainda se cogitasse investigar uma suposta verdade sobre fatos obscuros ocorridos no país durante o regime ao qual se dedicou com bravura e lealdade. Se alguém o questionava sobre a tortura praticada contra presos políticos nos porões da ditadura, Tavares dizia que jamais presenciou esse tipo de coisa nas dependências de um quartel. Achava que os presidentes militares foram democratas convictos e graças a eles o país não se curvou ao estalinismo nem seguiu o pernicioso exemplo da ilha de Fidel Castro. Aliás, com exceção de Jesus Cristo e seus apóstolos, ele não admitia homens de barba.

Quando se hospedava no Hotel da Previdência, nas imediações do Grande Hotel e Termas de Araxá, o velho general mantinha o hábito de se levantar cedo para caminhar por mais de uma hora pela verdejante paisagem local. Depois se exercitava na piscina, tomava uma boa ducha e se dirigia ao restaurante para o café da manhã. Foi ali mesmo que o conheci, tempos atrás. Estava sempre bem disposto e era muito educado no trato com os funcionários e os outros hóspedes. Provavelmente nem imaginava que dessa vez, em pleno retiro de carnaval, pudesse ter um reencontro casual que o levaria de volta aos tempos da mocidade.

Além da pátria, general Tavares me disse que só tivera um amor na vida. Chamava-se Aurora, moça loura de olhos azuis, filha de imigrantes alemães que vieram para o Brasil logo após a Segunda Guerra. O pai farmacêutico tinha sangue judeu e fora prisioneiro num campo de concentração, o que motivara sua saída da Baviera tão logo fora libertado pelos aliados. Conheceu a futura esposa no navio, viajando para o Espírito Santo. Anos depois, já casados, fixaram residência em Belo Horizonte, cidade onde a filha nasceu e cresceu cercada de todos os mimos.

O então primeiro-tenente Tavares servia no 12º Regimento de Infantaria, cujo quartel, no bairro do Prado, ficava perto da residência da jovem. Quando ela saía de casa a caminho da Faculdade de Medicina, os recrutas que estavam de sentinela se inquietavam ao vê-la passar e faltavam bater continência diante de tal formosura, entende? No dia em que a viu pela primeira vez, o oficial de 30 anos quase se perfilou.

Como o destino costuma tecer suas tramas com a habilidade de uma velha aranha caprichosa e experiente, menos de uma semana depois o primeiro-tenente se viu inebriado pelo charme de Aurora. Estava num jipe dirigido pelo cabo da guarda, a caminho da Quarta Divisão, quando passou pela moça rente ao passeio, do outro lado da rua.

Ao flertar com ele, Aurora tropeçou e deixou cair os cadernos e livros. Tavares ordenou ao motorista que freasse, saltou do carro e correu na intenção de ajudá-la. Trocaram meia dúzia de palavras. Ele ofereceu carona, mas a jovem não aceitou, preferindo seguir a pé até o ponto de ônibus no quarteirão adiante.

E assim, a partir daquele dia, sempre no mesmo horário, Tavares saía do quartel, ele próprio dirigindo o jipe, bem a tempo de alcançar Aurora antes que entrasse no ônibus. Insistia em lhe dar carona, mas como boa moça de família conservadora ela continuava recusando sua gentil oferta. Isso durou cerca de duas semanas, até que numa tarde chuvosa Aurora fechou a sombrinha e entrou no jipe verde-oliva de capota de lona.

Tavares conduziu-a até o campus universitário. No trajeto, conversaram sobre vários assuntos e combinaram de ir juntos à matinê de domingo, no antigo cine Odeon. E foi assistindo ao filme A bela da tarde que a jovem se entregou aos galanteios do militar, mesmo sem o conhecimento e a permissão dos pais. Como ex-prisioneiro de guerra, o velho Otto odiava homens de farda e queria muito que a filha se formasse na faculdade antes de se comprometer com quem quer que fosse, entende?

Eram anos de chumbo, de disputas ideológicas e batalhas campais entre policiais e estudantes de esquerda. Aurora frequentava o Diretório Acadêmico e, influenciada pelo que o pai sempre dizia sobre as ditaduras, acabou se envolvendo com grupos ligados à luta armada sem dizer nada à família, naturalmente. Sua função inicial foi distribuir panfletos na universidade e em lugares estratégicos da cidade, como pontos de ônibus, portas de escolas e fábricas.

A jovem estudante jamais revelaria ao namorado seu engajamento na resistência contra os militares. Também passou a evitar que ele a levasse de jipe ao campus, pois não pegaria bem se a turma descobrisse que ela estava se relacionando justamente com um milico, oficial do exército.

E assim correu a vida por mais de um mês até que o inevitável aconteceu. Certo dia, ao entardecer, Aurora foi detida por agentes da repressão na Estação Rodoviária, onde panfletava “em nome das liberdades democráticas”. Levada para as dependências do Departamento de Ordem Política e Social, o antigo Dops, ela teve direito a um único telefonema.

A mãe era cardíaca e, temendo por sua saúde, a filha preferiu ligar para o namorado, no quartel. Tavares estava de serviço, mas conseguiu autorização para deixar o posto por algumas horas. Inventou que um amigo fora atropelando e estava no pronto-socorro da Santa Casa de Misericórdia. Tão logo chegou à sede do Dops no jipe que costumava dirigir, o primeiro-tenente pediu para falar com o delegado de plantão. Explicou que tinha experiência com subversivos e que poderia convencer a jovem ativista a colaborar com as investigações.

Tavares bem que tentou, mas, além da beleza, Aurora estava acima da média também no quesito teimosia. Se revelasse pelo menos um nome aos policiais, poderia ser liberada sem maiores problemas, entende? Mesmo petrificada de medo, ela declarou que jamais trairia os companheiros. Desde aquele dia ele nunca mais a viu, pois não queria prejudicar a própria carreira. Tempos depois, ficou sabendo por um oficial da Informação que a estudante havia se mudado com a família para Vila Velha, no Espírito Santo. Estuprada por um dos torturadores, a moça tivera um filho que jamais conheceria o pai.

Para Tavares, ficar longe de Aurora talvez fosse o mesmo que evitar a própria covardia refletida nos olhos dela. Afinal, convenhamos, a moça era ao mesmo tempo vítima e testemunha de seu egoísmo e de sua falta de caráter. Promovido a capitão, ele foi transferido para a região do Araguaia, onde se empenhou no combate à guerrilha que desafiava o regime dos generais. Jamais cogitou se casar e dedicou a vida exclusivamente à pátria, como se a carreira militar fosse algo assim como um sacerdócio, entende?

Como de costume, no domingo de carnaval, o velho general tomava o café da manhã no restaurante do Hotel da Previdência, onde eu trabalho como garçom. Em certo momento, ele viu entrar no recinto uma senhora que aparentava sessenta e poucos anos. Ela se sentou numa mesa do fundo, perto do bufê. Estava em companhia do filho, da nora e do casal de netos adolescentes com os quais se hospedara. “Aurora?”, ouvi o oficial exclamar no exato momento em que seus olhares se cruzaram. Presumo que ela tenha pronunciado o nome dele, pois os familiares se voltaram para ver de quem se tratava.

Tavares agiu como se visse um fantasma. Seu rosto moreno simplesmente perdeu a cor. Mesmo assim, limpou a boca num guardanapo de papel e caminhou em direção à mesa do fundo, cuja principal ocupante permaneceu sentada, mas sem deixar de encará-lo. Margeados de pés-de-galinha, os olhos azuis e expressivos daquela mulher de cabelos brancos e maquiagem discreta pareciam faiscar de perplexidade.

Ao se aproximar, o militar a paisana perfilou-se como se estivesse diante de uma patente superior. Tentou dizer alguma coisa, mas as palavras lhe escaparam, a língua se enrolou e, subitamente, ele caiu desfalecido. Meus colegas e eu acorremos, temendo que tivesse morrido ou se machucado. A velha senhora identificou-se como médica e ficou de joelhos ao lado dele, na tentativa de socorrê-lo. Conseguiu reanimá-lo, olharam-se mutuamente, mas sem trocar uma só palavra, entende?

Nosso gerente, que também se encontrava no restaurante naquele momento, solicitou minha ajuda para conduzir o hóspede até o quarto. Perguntamos se gostaria de ir ao hospital e ele disse que não precisava. Já estava habituado aos efeitos da queda de glicose sempre que se irritava ou sofria uma forte emoção. “É o peso da idade”, chegou a comentar. O gerente, então, se retirou e o general ordenou que eu ficasse mais um pouco. Indicou-me a poltrona ao lado da cama para que eu me sentasse e, em seguida, como num desabafo, contou-me toda a história que acabei de relatar.

Voltei ao trabalho e notei sua ausência na hora do almoço. Provavelmente ainda está repousando, falei comigo mesmo. No meio da tarde, o hotel foi sacudido pelo disparo vindo do seu apartamento. A porta estava trancada por dentro e a camareira teve que usar a chave-mestra, para que pudéssemos entrar. E lá estava o corpo estirado de costas sobre a cama, com um buraco em cada têmpora, os olhos castanhos arregalados, o sangue e os miolos esparramados no travesseiro. A mão direita empunhava a pistola automática cujo cano ainda exalava fumaça e cheiro de pólvora.

Nosso hóspede Adolfo Tavares da Anunciação, general de duas estrelas da reserva do exército brasileiro, simplesmente havia se matado sem nem mesmo deixar um bilhete. Mas, pensando bem, nem precisava. Para mim tudo estava explicado, entende? E nada mais tenho a declarar sobre o caso.

  • Publicado nas antologias Coletivo 21 (Autêntica) e Mulher (Livro de Graça na Praça).

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