Jorge Fernando dos Santos

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Tudo começou naquele dia em que telefonei para minha casa e uma voz masculina atendeu. Uma voz familiar, é verdade, mas que a princípio não consegui identificar. Vai ver é algum parente da Graça, pensei, e pedi para falar com ela. A Graça tá no banho. Quer deixar recado? disse a voz. Quem é que tá falando? perguntei. Quem quer falar com ela? a voz retrucou. Aqui é o marido dela. Marido dela? Mas o marido dela sou eu…

A vida nos apronta cada uma, pensei. Como é que pode uma coisa dessas? Ligo para minha própria casa querendo falar com a minha mulher e um outro cara atende e diz que é marido dela. Desculpe, foi engano….

Desliguei e disquei novamente. Alô… Era a mesma voz, tão familiar quanto antes, mas ainda não identificada. Quero falar com a Graça, falei. Mas de novo? Como é? perguntei. A Graça tá no banho, quer deixar recado? Mas quem é que tá falando? perguntei irritado. Aqui é o marido dela, a voz respondeu. Marido? Mas qual é o número daí? 555-0201. Mas não pode ser, suspirei…

Não. Não era engano. Aquele era mesmo o número do telefone da minha casa. Quem tá falando? quase gritei. Eu é que pergunto, disse a tal voz, agora ainda mais irritada e mais familiar do que nunca. Já falei… Se isso é alguma brincadeira, melhor dizer o seu nome. Aqui é o Alencar. Quero falar com a minha mulher…

Nesse instante, ouvi a voz da Graça do outro lado: Quem é, querido? Sei lá, disse o cara. Deve ser algum maluco dizendo-se seu marido. Vai ver é alguém do escritório, ela disse. Meus colegas adoram gozar uns aos outros por telefone. Um deles é craque em imitação. Imita até a minha voz. Deixa que eu atendo. Alô…

Era mesmo a Graça, minha mulher. Oi, querida, o que é que tá acontecendo? Quem é que atendeu o telefone? Quem tá falando? ela quis saber. Sou eu, o Alencar. Pára com isso, ela disse. O Alencar tá em casa, você não me pega. Realmente, Graça pensava que se tratava do tal colega do escritório onde trabalhava. Um engraçadinho que vivia imitando os outros, como se fosse humorista e a vida um palco ou um estúdio de TV…

Escuta aqui, Graça. Isso não é uma brincadeira. Sou eu mesmo, o Alencar. Pára com isso, cara, não tô pra brincadeiras, ela xingou. Mas já falei que não é brincadeira… O sujeito da tal voz irritada e familiar voltou a falar, agora completamente nervoso: Vai à merda, ô cara. Se ligar de novo, vou anotar o número pelo bina e chamar a polícia…

Bateu o fone na minha cara. O sangue me subiu à cabeça. Saí do serviço tropeçando nos meus próprios passos. Peguei um táxi e rumei para casa. Lá chegando, bati a campainha disposto a fazer e acontecer. Se for o que estou pensando, mato os dois e fujo pro Uruguai, pensei. Meti a chave no portão, atravessei o jardim e entrei em casa. Ouvi gemidos vindos do quarto e caminhei na ponta dos pés. Meu coração parecia um cavalo indomável, galopando no peito. A porta estava encostada e eu a empurrei lentamente….

Quase desmaiei diante do inusitado. O casal estava se amando na minha própria cama. Ela, a minha mulher, aquela que me jurou fidelidade aos pés da cruz, no altar da igrejinha de São Francisco de Assis. De repente, Graça percebeu a minha presença e arregalou os olhos em minha direção, por cima do ombro esquerdo do meu rival. Você? exclamou, perplexa. O tal sujeito virou-se rapidamente, movendo a cabeça sobre o pescoço no sentido anti-horário…

Ele era eu. Ou melhor, eu era ele. Se fôssemos irmãos gêmeos, provavelmente não nos pareceríamos tanto. Tive uma síncope nervosa. A certeza de estar sendo traído e a confusão gerada em minha mente ao encarar o impostor devem ter desatarrachado algum parafuso na minha cabeça. Comecei a falar coisas desconexas feito um robô com defeito. E aí me internaram nesse lugar. Os médicos me mantêm a sete chaves e as enfermeiras sequer conversam comigo. Ninguém acredita no que eu digo. Minha vida perdeu a graça. Aliás, eu perdi a Graça, minha mulher. Eu a perdi para mim mesmo. Ou pior, para um impostor que sou eu mesmo ou que pelo menos tem a minha cara, a minha voz e a minha carteira de identidade.

  • Incluído na coletânea “Caminhante Noturno” (Ed. Terceira Margem).

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