Jorge Fernando dos Santos

Sem diploma e sem compromisso

A anulação do Decreto-Lei 972/69 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pode não representar um mal em si, mas com certeza causa muita polêmica. Afinal, se para ser repórter não é preciso diploma, por que alguém deveria frequentar a faculdade para se tornar advogado ou para disputar uma vaga de juiz? Não bastaria conhecer a Constituição Federal, o Código Penal e as leis ordinárias para exercer a função com a devida competência?

 

Teoricamente, exigir diplomas de juristas também contraria o senso democrático e os princípios da igualdade social. Todo mundo sabe que a justiça brasileira é demasiadamente cara, desigual e elitista. Enquanto um pobre é condenado por roubar um pote de margarina num supermercado, o rico que lava dinheiro ou pratica crimes do colarinho branco pode gozar de plena liberdade sem nem mesmo ser algemado.

 

Afirmar que a profissão de jornalista não oferece perigo de dano à coletividade é ignorar a história recente do mau exercício da profissão. Em todo o mundo, muita gente tem recorrido à Justiça por se sentir caluniada ou difamada pela chamada “imprensa marrom”. É só lembrar o caso da Escola de Base de São Paulo, cujos donos foram injustamente acusados de um crime que não cometeram e tiveram suas vidas arruinadas.

 

Na Europa, recentemente, um cidadão português processou vários jornais depois de ser apontado como suspeito de ter sequestrado a menina britânica Madeleine. O curioso é que quando a imprensa erra geralmente publica a retratação numa notinha de pé-de-página, que quase ninguém lê. E se alguns diplomados agem dessa forma que dirá os sem-diploma, que pela ausência de formação especializada pouco sabem sobre ética e responsabilidade.

 

Ora, ora, ora! O problema do jornalismo não era o diploma. Embora existam diplomados incapazes de exercer a profissão com a devida competência em qualquer ramo de negócio, o fato é que a lei não exigia formação específica de articulistas e colaboradores. O diploma era necessário, sim, para o exercício pleno de atividades restritas à reportagem e à edição de notícias. Ao médico, por exemplo, sempre foi permitido assinar artigos sobre medicina. Da mesma forma, um chef de cozinha escreve receitas e um cidadão comum se manifesta nas seções de opinião.

 

Argumentar que o diploma tolhia a liberdade de informação é o mesmo que culpar os jornalistas pelo fato de alguns donos de jornais terem compromissos obscuros com o poder econômico ou com políticos de idoneidade duvidosa. Num país onde o analfabeto pode votar e até se eleger deputado ou presidente da República, diploma nenhum haveria mesmo de fazer falta. Convém ressaltar que a linha editorial do noticiário é estabelecida pelos patrões, quase nunca pelos jornalistas. Ao contrário do que dizem, o fim do diploma compromete a liberdade de imprensa e o livre exercício da informação.

 

Do ponto de vista prático, devemos reconhecer que o jornalista já nasce jornalista. Curiosidade e sede de conhecimento são as suas principais características. A passagem pela faculdade se faz necessária para abrir seus horizontes às particularidades da profissão, acrescentando conhecimentos de sociologia, história, ética, estética, técnicas de redação e teoria da comunicação. Uma faculdade que vende diplomas ou que despeja no mercado centenas de profissionais despreparados deveria simplesmente ser fechada pelo Ministério da Educação. No entanto, esse tipo de prática não se restringe às comunicações.  

 

O problema da decisão do STF é que o assunto não foi devidamente discutido com a sociedade. Não foi feito um plebiscito, uma pesquisa de opinião pública ou mesmo um seminário com a presença de patrões e trabalhadores do setor. O curso de jornalismo poderia, por exemplo, se transformar numa pós-graduação. Mas como, se agora nem é preciso ter um curso superior para exercer a profissão? Cozinheiro e jornalista estão no mesmo nível, oferecendo riscos semelhantes ao público. Se o primeiro pode envenenar a freguesia com um atum estragado, o segundo pode destruir reputações. Devo dizer que não tenho nada contra cozinheiros, mas não posso ser comparado a eles simplesmente porque não sei cozinhar e acredito que boa parte deles não sabe escrever.

 

Há poucos dias também sepultaram a Lei de Imprensa, que regulamentava a responsabilidade da mídia no País. Aliás, cabe aqui abrir um parêntese: o jornalismo faz parte da mídia, mas a mídia não se resume ao jornalismo. Nos Estados Unidos, por exemplo, é vetado o monopólio das comunicações. O empresário tem que escolher entre ser dono de um grande jornal ou de uma rede de televisão. No Brasil, desde os tempos do poderoso capitão Chateau, quanto mais, melhor. E o mais curioso é que ninguém discute o assunto.

 

Os donos de jornais e de emissoras de rádio e TV certamente acreditam que a decisão do Supremo beneficia seus interesses. Afinal, sem a exigência do famigerado diploma, podem empregar quem bem entender, condenando ao esquecimento 40 anos de lutas sindicais pela regulamentação da profissão e pela fixação de salários justos para uma categoria que teve papel fundamental na redemocratização do País.

 

Se a remuneração e o respeito profissional já deixavam a desejar, as coisas tendem a piorar daqui para frente. Se a qualidade dos periódicos brasileiros tem caído a olhos vistos, sobretudo depois do advento da Internet, a não exigência do diploma de jornalista joga uma pá de cal sobre o exercício digno da profissão e abre as redações aos aventureiros.

 

* Publicado no site www.observatoriodaimprensa.com.br, em 23/06/2009, e em vários blogs de jornalismo.

 

7 comentários em “Sem diploma e sem compromisso”

  1. Jorge,
    Fiquei tão revoltada quanto você e imagino que a revolta seja de quase toda a população que consegue perceber a extensão do problema. Será que não podemos fazer absolutamente nada? E não tem nenhum órgão que possa intervir? Não é nada democrático! Sei que em todas as profissões está acontecendo informalmente, mas até agora, que eu saiba apenas o jornalismo foi afetado por lei.
    Presenciamos no cenário nacional as péssimas condições em todas as áreas: educação, saúde, justiça, imprensa… Nada fazemos, está na hora de encontrarmos saída, não dá para fingir que vivemos em uma democracia só por que podemos nos expressar verbalmente! Que pobreza!!!.
    Pensemos nisso!!! Não fique tão decepcionado, a última colega minha de área fez curso de Fonoaudiologia e quando lhe perguntei o que lhe dava autoridade para ministrar aulas de Língua Portuguesa, ela me respondeu que sabia muito sobre fonemas!! É o caos.
    Com essa mentalidade, acho que meus alunos têm razão: Pra que estudar?
    Abraços,
    Zoi

  2. Jorge, seu artigo resume exatamente o que eu penso, começando pela comparação entre os jornalistas e juristas. Comentei isso hoje mesmo com amigos. Parabéns! E o artigo foi publicado no Observatório? Vc o enviou para o Comunique-se ou para o Jornal de Debates? Pra mim, até agora, foi a opinião mais completa que ouvi sobre o assunto. Mais uma vez, parabéns! Abs, Fernando Gomes

  3. Maria Amélia Valle - Bibliotecária

    Jorge, sem comentários!!! É uma pena, mas em todas as profissões estamos sofrendo com este tipo de contratações. Pessoas despreparadas assumindo cargos aos quais não são capazes e, o pior, por pequenos salários. Apesar disso, por estar inserida na EDUCAÇÃO, continuo levantando a bandeira da formação universitária e de qualidade.

  4. Salário em queda, desemprego em alta. A decisão do STF piora uma relação de oferta e procura. Desregulamentar é baratear, uma regra universal. Perdemos a guerra de canudos…

  5. João Evangelista Rodrigues

    Oi, Jorge, você tem toda razão. A decisão do STF é fruto de uma leitura e de uma interpretação sofística e cínica da Constituição Brasileira. Representa também, a meu ver, a vitória do neoliberalismo e dos setores mais conservadores da sociedade brasileira, escondida sob o
    manto da pós-modernidade e da globalização. Os jornalistas organizados e a sociedade perdem mais esta batalha para os que querem manter nosso “pobre povo” ainda mais alienado e ignorante. Essa derrota é mais uma das muitas que atingiram a ética na política, o direito à educação de qualidade, o respeito ao meio ambiente, a dignidade dos idosos e a esperança dos jovens. Claro que o pleno exercício do jornalismo não se resume a respeitar as regras gramaticais nem a um bom texto. Os aventureiros que por ventura ocuparem os postos de trabalho no já mirrado e fechado mercado de trabalho da imprensa brasileira poderão até escrever bem (o que é isto em jornalismo?) e dominar as regras da gramática, mas certamente serão pessoas submissas, ambiciosas, loucas pelo poder, ávidas por competições, mas pouco sensíveis às causas populares, às grandes causas da nação brasileira. Serão, a meu ver, muito parecidas com os novos gestores de todos os lugares do mundo, seja uma universidade, uma fundação cultural, um sindicato, uma fábrica de parafusos. Vêm tudo como produto e os seres
    humanos bem-sucedidos, como consumidores. Quem não se enquadrar nesse perfil, estará fora, estará por fora. Pois é, meu caro amigo, será que estamos velhos, antigos? Ou, na melhor das hipóteses, somos dinossauros que sobreviveram por ainda acreditar na arte, na cultura, na sensibilidade, no ser humano e na sua perene capacidade criativa? Um grande abraço do
    João Evangelista Rodrigues

  6. A decisão quase unânime do Supremo foi um soco na cara de quem batalhou para ter seu diploma de Jornalista. É lamentável. E se escrever é apenas arte… que perdoe aos senhores Ministros o Poeta Maior das Gerais, para quem escrever é, lucidamente, 10% de inspiração e 90% de suor. Fica uma sugestão: não exigir diploma para carreira jurídica em todas as instâncias. Afinal, julgar também é arte.
    Jorge, mais uma vez, você grita forte e alto na hora certa. Benditos os mestres que te guiaram; os livros que te supriram e inquietaram; a Universidade que te abrigou.

  7. É a tendência é realmente a queda da qualidade dos periódicos. Acho que vou mudar de profissão. Se os salários já estão baixos e o emprego difícil com diploma, imagina agora que ele vai se tornar, parodiando Drumond, um papel amarelo dependurado na parede. E os jovens que estão se formando? Que pagaram mensalidades astronômicas por um futuro que não terão.
    Infelizmente, o STF tomou uma decisão radical sem levar em consideração fatores fundamentais na profissão.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima