Jorge Fernando dos Santos

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Os descaminhos da MPB

Inspirado no suposto livro “Firewood Operation”, atribuído a Neil Jackman, o vídeo “MPB – A história que o Brasil não conhece” vem causando polêmica nas redes sociais. Verdade ou mentira, mesmo cheirando a teoria da conspiração, o conteúdo dá o que pensar. Afinal, existiu mesmo uma campanha das gravadoras multinacionais e do governo norte-americano para desvalorizar e destruir a música popular brasileira?

Segundo o vídeo, tudo começou com a política de boa vizinhança adotada pelos Estados Unidos durante a 2ª Guerra Mundial. O objetivo era estreitar laços com países latino-americanos, para angariar apoio na luta contra o nazifascismo. Graças a isso, artistas brasileiros como Carmen Miranda, Laurindo de Almeida e o Bando da Lua foram parar em Hollywood e se tornaram atrações internacionais.

Tema do desenho animado da Disney que lançou o personagem Zé Carioca, “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, virou sucesso internacional. Muitos lá fora chegaram a pensar que se tratava do Hino Nacional Brasileiro. A partir daí, nossa música passou a encantar plateias cada vez maiores em todo o mundo. O auge se deu em 1962, com o show histórico da bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York.

Embora a qualidade técnica tenha sido questionável, músicos e produtores norte-americanos gostaram do que viram e ouviram. Enquanto por aqui a crítica mais reacionária dizia que a bossa nova sofria influência do jazz, por lá muitos admitiam que, ao contrário, ela é que tinha revigorado o jazz, que estava desgastado desde o surgimento do rock.

João Gilberto, Tom Jobim, Luiz Bonfá, Osmar Milito, Sérgio Mendes e outros brasileiros seguiriam o exemplo de Laurindo de Almeida, que morava e trabalhava nos States desde a década de 1940. Depois seria a vez de Dom Um Romão, Airto Moreira e Flora Purin trocarem o Rio e São Paulo por Nova York, para figurar entre os maiorais da música norte-americana.

Tom contra os Beatles

Jobim seria o único compositor convidado por Frank Sinatra para gravarem juntos um disco dedicado às suas canções. The Voice não havia feito essa gracinha nem mesmo com a obra dos geniais Cole Porter e George Gershwin. O autor de “Garota de Ipanema” se tornou o segundo compositor estrangeiro mais gravado nos EUA, perdendo apenas para os Beatles – que, nas suas palavras, “eram quatro e cantavam em inglês”. Segundo o tal vídeo, isso teria sido a gota d’água para que os defensores do American way of life acendessem o sinal de alerta.

No Brasil, com o espaço aberto para as multinacionais a partir do golpe militar de 1964, as grandes gravadoras resolveram intensificar seus investimentos. Surgiram assim os festivais da canção, que além de garantir grandes audiências para os canais de TV nacionais – cujo público era predominantemente de classe média – também revelariam talentos e ajudariam a mapear a produção da chamada MPB.

Curiosamente, se a maioria das gravadoras era norte-americana e Washington apoiava as ditaduras de direita para conter o avanço do comunismo, na outra ponta boa parte dos músicos brasileiros se colocava à esquerda do regime. Muitos deles tiveram vínculos com o Centro Popular de Cultura, o famoso CPC da União Nacional dos Estudantes (UNE). Esta, por sua vez, recebia orientação marxista do Partidão, o famoso PCB ligado a Moscou.

Fato é que vários artistas usavam a música para denunciar a ditadura e apoiar a resistência cultural no país, cuja tradição oral se refletia na riqueza do cancioneiro. Não por acaso, em 1968, a famosa passeata dos 100 mil teve na linha de frente expoentes da MPB. Isso talvez explique a rigorosa ação da censura contra a obra de compositores como Chico Buarque, que havia se tornado uma das principais vozes da esquerda nacional. A prisão e deportação dos tropicalistas Gil e Caetano seria o ponto crucial do “combate à subversão” no meio artístico. Geraldo Vandré, autor de “Pra não dizer que não falei de flores”, fugiu do país e só voltou depois de gravar um depoimento no qual se desculpou com os militares.

Enquanto isso, as reformas educacionais cortavam o ensino de música das escolas e despolitizavam os estudantes, substituindo o humanismo de orientação francesa pelo tecnicismo tosco do modelo industrial norte-americano. Pouco a pouco, o fino da MPB perderia espaço nas rádios, nos canais de TV, nos shows populares e nas próprias gravadoras.

Macartismo e Axé-music

Se na década de 1950 artistas norte-americanos haviam sido vítimas do macartismo, movimento reacionário que visava expurgar de Hollywood os comunistas, a partir dos anos 70 os grandes astros da MPB enfrentariam não apenas a censura, mas o boicote das redes de TV e o esquema das grandes gravadoras. A ideia era domesticar os contratados e “criar” uma música barata, descartável, alienada e distante da nossa tradição cultural. De certa forma, a Jovem Guarda havia inaugurado a tendência na década anterior.

O grande público foi cuidadosamente doutrinado a consumir rock, música brega e o “sambão joia” de baixa qualidade. Coube ao movimento estudantil abrigar os artistas engajados no circuito alternativo das calouradas. Desde então, a MPB passou a ser cultuada por reduzidas parcelas de público – em comparação com as multidões adeptas da cultura de massas.

O vídeo lembra que o brasileiro passou a sofrer desde a infância um processo de massificação e deseducação musical, induzido a gostar dos hits impostos pela mídia e interpretados por não-artistas como jogadores de futebol, Xuxa, Dominós, Balão Mágico, Sérgio Mallandro, Grechten e outras aberrações estéticas. Essa gente não tinha consciência política nem participara dos históricos shows de 1º de maio, cuja renda era revertida para o Movimento Brasil Democrático. Bom lembrar que foi num deles que a extrema direita praticou o desastrado atentado do Rio-Centro.

Mesmo que o livro citado no vídeo seja uma falácia, fato é que do rock de três acordes ao batidão do Axé-music e do funk carioca a arte musical brasileira deu lugar ao entretenimento descartável e sexista, criado numa linha de montagem com dois objetivos básicos: alienar o público da realidade política e estimular o consumo. Milionária como sua co-irmã bélica, a indústria cultural norte-americana já havia ofuscado o cinema europeu e varrido das paradas os sucessos latinos, italianos, franceses e de outras nacionalidades.

Sem iniciação musical, sem ouvir artistas de qualidade e tendo o lixo importado como principal referência, nossos jovens se renderam docilmente ao colonizador. Não é coincidência que o primeiro ato da direita carioca após o golpe militar tenha sido incendiar a antiga sede da UNE, no bairro do Flamengo. Também não seria casual a escolha do período pré-carnavalesco para se realizar o Rock in Rio, colocando lado a lado grandes atrações do show business de língua inglesa e roqueiros tupiniquins.

A ironia de tudo isso é que, mesmo com todo o seu poder de fogo, as grandes gravadoras não previram o surgimento da internet, do download, do Youtube, da pirataria e de outras maneiras de consumir música quase gratuitamente. Mas como diz o titã Charles Gavin no programa “O Som do Vinil”, essa é uma outra história…

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