Jorge Fernando dos Santos

Duas vezes Rubião

Duas antologias de contos foram inspiradas no mestre Murilo Rubião,  inventor do realismo-mágico

Assistindo na Netflix ao filme Pedro Páramo, da obra de Juan Rulfo, e à excelente série Cem anos de solidão, adaptada do romance de Gabriel García Márquez, pergunto-me quando é que os produtores de streamings vão descobrir os contos do mineiro Murilo Rubião (1916-1991). Afinal de contas, foi ele o criador do gênero denominado realismo-fantástico, que se tornaria uma das marcas da literatura latino-americana.

Várias vezes adaptado para teatro e cinema, Rubião publicou em vida apenas 33 contos, reunidos em coletâneas de várias editoras e no volume definitivo Obras completas, da Companhia das Letras. Guardo dele dois livros autografados e tive a oportunidade de entrevistá-lo mais de uma vez. Perfeccionista até os ossos, construiu uma obra minúscula em quantidade e maiúscula, no quesito qualidade.

Enquanto o longa ou a série no streaming não vem, vale apontar a influência de Rubião sobre as gerações que o sucederam. Basta lembrar que as duas maiores antologias de contos publicadas em Minas Gerais foram ambas inspiradas em sua obra e igualmente dedicadas à sua memória.

A primeira, intitulada Flor de vidro, resultou de um trabalho hercúleo da revista Arte Quintal, em 1991, reunindo 50 contos de autores mineiros sob a batuta do poeta Wagner Torres. Tive a sorte de participar com o conto O velho Tom, ladeado por textos de autores de renome nacional, como Wander Piroli, Duílio Gomes, Roberto Drummond, Oswaldo França Júnior, Cunha de Leiradella, Elias José, Luiz Vilela, Branca Maria de Paula, Alciene Ribeiro Leite e o próprio Rubião, entre outros.

Linguagem simples

A segunda antologia em homenagem ao pai do realismo-mágico (era assim que ele preferia chamar o gênero que inventou na década de 1940) acaba de ser lançada, com o título Murilo Rubião na escrita jovem. Publicado pela Literíssima após um concurso promovido pela editora Leida Reis com apoio de Sílvia Rubião, herdeira do escritor, o livro reúne 50 textos de autores praticamente estreantes.

Uma das exceções é Thiago V. Lacerda. Autor de dois romances de fantasia e com um terceiro no prelo, ele participa com o notável conto O escritor e a moça do sorriso cruel, no qual introduz uma de suas personagens no universo de Rubião. Oxalá possa estudar a fundo o realismo-fantástico e dar uma guinada literária em sua direção, acrescentando sangue novo ao gênero.

Murilo Rubião foi muito influenciado pela leitura da Bíblia, de Cervantes e Machado de Assis. Confessou-me que só leu Kafka depois de publicar O ex-mágico, seu livro de estreia. Numa entrevista que fiz com ele para o Diário da Tarde (disponível no meu site), afirmou: “Eu acho o fantástico sempre muito próximo da gente… O fantástico exige uma linguagem simples, direta, para não perturbar o leitor com palavras que possam desviar sua atenção do conto”. Falou e disse quem sabia, gênio da escrita e da fabulação.

12 comentários em “Duas vezes Rubião”

    1. Rubião realmente merecia mesmo ser revisto pelo audiovisual. Uma série, uma sequência de curtas de seus contos!
      Já estou ansiosa para ver a série de Cem anos de solidão, inclusive. Ótimo texto!

  1. Raquel Maria Carvalho Naveira

    “Murilo Rubião na escrita jovem”… que bom a obra de Murilo Rubião, mestre do realismo mágico, novamente na mira, servindo de inspiração a jovens escritores.
    E Murilo Rubião no streaming seria maravilhoso.

  2. Obrigado Jorge Fernando. Quando publicamos Flor de Vidro em 1991, eu e Rogério Salgado não tínhamos a noção de que aquela seria uma obra, reunindo nossos maiores contistas, 49, para ser exato. Uma grande homenagem que fizemos ao mestre Murilo Rubião, criador de uma linguagem lúdica do realismo fantástico. Como você bem disse, falta reconhecimento. Já passou da hora de sua obra ir para as telas. Estamos perdendo o trem da história.

  3. Bela iniciativa da editora, que traz novamente à baila o nome de Rubião, injustamente (ou talvez não, pois publicou apenas 33 – a idade de Cristo – contos, e abria seus textos com versículos bíblicos, o que gera certo desconforto em alguns “progressistas”) subestimado.
    Escreveu e reescreveu seus textos, lapidando-os de forma magistral.
    A escultura dele, “dirigindo-se à Biblioteca Pública Luiz de Bessa”, é um convite e, ao mesmo tempo um enigma, hoje felizmente “sanado” (que o diga o autor da presente crônica, ao longo de sua “Travessia do Tempo”: o homem do jornal (algo outrora fadado ao “descarte”), rumo ao local que abriga a escrita preservada e imortalizada.
    Autores obrigatórios, Rubião e Jorge Fernando!

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