Há algum tempo venho observando a decadência musical brasileira. Decadência não no modo de fazer boa música (pois tem muita gente de valor na estrada), mas na quantidade de porcaria que a maioria das pessoas ouve – e obriga os outros a escutarem. Esse é o resultado da falta de educação musical nas escolas e da pilha de lixo cultural que nos foi imposta pela mídia e pela indústria fonográfica ao longo das últimas décadas, resultando numa espécie de lavagem cerebral.
Esse fenômeno ocorreu acentuadamente depois que as classes menos favorecidas começaram a ter acesso aos discos e aos sofisticados aparelhos de som. Todo “novo rico” transforma o próprio carro numa boate ambulante, movida a funk ou breganejo. Sou do tempo em que um adolescente pobre (era o meu caso) estudava música na escola e juntava dinheiro pra comprar um ou dois LPs no fim do ano, isso quando não pedia um disco de presente ao amigo-oculto.
De outro lado, a tecnologia barateou o preço dos discos e possibilitou não apenas o consumo, mas a própria pirataria, que pôs fim ao império das gravadoras. Com isso, o feitiço virou contra o feiticeiro. Depois de passar décadas impondo merda sonora aos ouvidos do público, as fábricas de disco sucumbem ao próprio veneno.
O mais lamentável de tudo é ver sacrificada uma tradição que sempre foi motivo de orgulho para os brasileiros. Nossa música já foi (e talvez ainda seja) considerada a melhor do mundo. De Carmen Miranda a Tom Jobim, passando pelos bossa-novistas, tropicalistas e roqueiros nacionais, a MPB já fez tanto sucesso lá fora quanto o nosso futebol (este, aliás, em franca decadência, assim como a música).
Por essas e outras, ando desanimado com as composições musicais. Tenho mais de 60 canções gravadas, a maioria em parceria, e nunca ganhei dinheiro com isso. Aliás, ganho de vez em quando um caraminguado de direitos autorais, quando algum parceiro inclui uma de nossas canções num show fiscalizado pelo Ecad. Sempre fui amador musical. Aquele que ama a música. Mas ao tentar fazer desse amor uma profissão, dei com os burros n’água – embora não possa reclamar da sorte.
Desde muito cedo sonhei me tornar um compositor popular. Estudei jornalismo, dediquei-me aos livros e busquei na música uma espécie de prolongamento da literatura. Afinal, entendo que a palavra escrita chega ao ponto em que precisa ser cantada. Mas devo esclarecer – como declarei ao site tirodeletra – que poesia é poesia e letra de música é letra de música. O poema tem ritmo próprio e obedece ao compasso das próprias palavras, sem necessitar de melodia. Já a letra de música precisa se grudar à melodia para desenhar uma forma harmônica.
Alguns dos poucos que já se deram ao trabalho de ler e ouvir minhas músicas com a devida atenção se mostram surpresos com a variedade de temas e gêneros musicais. Realmente, gosto da música brasileira por inteiro e cresci ouvindo de tudo, com destaque para Chico, Caetano, Milton, Aldir, Erasmo, Vandré, Noel, Tom, Vinícius, Caymmi, Secos e Molhados, Pixinguinha, Cartola, Nelson Cavaquinho, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Gismonti, Renato Teixeira e muita gente mais.
Acho que roubei um pouco de cada ídolo para compor meu próprio estilo – até porque minha obra lítero-musical é quase toda de citação. E também ouvi (e ainda ouço) Beatles, Dylan, Stones, Sinatra, Cole Porter, Piaf, Azznavour, Piazzolla, Paco de Lucia, Billie Holliday, Miles Davis e outras feras do jazz. Além de mestres erutidos, como Bach, Beethoven, Chopin, Debussy, Ravel, Stravinsky e Villa-Lobos. Recentemente, fiz um mergulho na música caipira, para escrever o programa “Nos Braços da Viola”, para a TV Brasil (agora reprisado aos domingos, às 11h30, pela Rede Minas).
Lembro que quando o primeiro disco de música por computador chegou ao Brasil, aproveitei uma faixa de Bach como fundo musical para um poema que apresentei num dos festivais de artes do Colégio Anchieta. Fiquei em primeiro lugar com a minha performance de andróide. De lá para cá, fui me dedicando cada vez mais à composição, fazendo letras e, algumas vezes, melodias.
Já compus de tudo um pouco: samba, choro, frevo, marcha, valsa, bossa nova, coco de embolada, moda de viola, fado, tango, samba-rock e até rap. No entanto, tenho me perguntado pra quê tudo isso. Talvez o mundo estivesse melhor sem tantas músicas. Lembro de uma entrevista de Chico Buarque na qual ele dizia que não tinha aparelho de som em casa, pois estava se dedicando mais à literatura. Hoje eu entendo do que ele estava falando.
Tive a sorte de fazer parcerias com músicos que sempre admirei, entre eles Angelo Pinho, Clésio Vargas (meu primeiro parceiro), Chico Lobo, Tino Gomes, Manezinho do Forró, Valter Braga (que ganhou o prêmio de melhor letrista no festival da TV Cultura, em 2007), Rick Udler, Tabajara Belo, Eric Mordaché, Eduardo Pinto Coelho, Geraldo Vianna, Francisco Saraiva, Roberto d’Oliveira, Rogério Leonel, Rodrigo Delage e até Chiquinha Gonzaga (fiz uma letra para o maxixe “Satan”) e Nino Rota (fiz letras sobre duas melodias de sua autoria). Tive a sorte de ter Helena Penna entre outras intérpretes de valor reconhecido cantando minhas modestas composições.
Uma vez participei de uma promoção no site oficial de Chico Buarque (olha ele de novo!), fazendo versos pra canção “Bom Conselho” e fui premiado com uma caixa de DVDs. Escrevi: “Ouça um bom conselho/ Que lhe dou de graça/ Para o vinho velho/ A nova taça”… De certa forma, fui seu parceiro, ainda que informalmente.
Mas é aquele negócio: você faz música e ninguém grava. Quando grava, não toca no rádio. Quando toca, você não ganha direitos autorais. Isso quando o próprio parceiro ou intérprete não inclui a tal composição nos shows. Resultado: compor pra quê? Pra quem ouvir? Melhor publicar livros, fazer palestras para estudantes, escrever para TV, cinema ou bula de remédio.
Não digo que vou abandonar a música, pois ela está no meu sangue tanto quanto a literatura. Ainda há poucos dias não resisti à tentação e coloquei letra numa linda melodia do violeiro Zeca Colares, que disse ter gostado. Também estou fazendo parcerias com o Max Rosa, outro violeiro que ainda nem tive o prazer de conhecer pessoalmente. Contudo, devo confessar que o parceiro que eu mais tenho procurado é o silêncio, esse cidadão esguio que se faz cada vez mais ausente no mundo das bate-estacas. Numa sociedade de analfabetos e surdos, a música certamente não será necessária.
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Jorge, prosa cada vez mais enxuta. Ágil. Prenha de sentidos. Maturidade em sua inteireza. Bom te ver crescer tanto… e sempre – Glória Amorim