Outro dia vi uma cena inusitada numa praça. Um rapaz levava um gato branco pela coleira. Todo mundo se surpreendia ao ver aquilo. Não existem estatísticas sobre a quantidade de gatos no mundo e isso talvez se deva ao fato do bichano ser deixado em casa, enquanto o cão é levado a passear. Justamente por ser discreto, independente e silencioso, o felino acabou se tornando o animal preferido dos escritores.
“Milhares de anos atrás os gatos eram adorados como deuses; e até hoje eles não se esqueceram disso”. A frase anônima tem muito de verdadeira e ecoa uma afirmação da escritora francesa Sidonie Gabrielle Collete – que por sinal parecia uma gata. Segundo ela, “cães pensam que são humanos, gatos pensam que são Deus”. O também francês Júlio Verne levava muito a sério o amor pelos bichanos. “Acredito que gatos são espíritos vindos para a Terra. Tenho certeza de que um gato andaria nas nuvens sem cair”, escreveu o precursor da ficção científica.
Muitos são os livros que têm gatos como protagonistas, a começar pelo clássico O gato de botas, de Bruno de La Salle. O baiano Jorge Amado escreveu O gato Malhado e a andorinha Sinhá, seu único livro infantil. Seja como for, a preferência dos homens e mulheres de letras pelos bichanos é um fato incontestável.
Dedinhos a mais
Aficionado das touradas na Espanha, pescador de marlins no Caribe, caçador de feras na África, o americano Ernest Hemingway se derretia diante dos gatos. Embora também tivesse cães de estimação, ele foi talvez o escritor que mais levou a sério a gataria, chegando a ter dezenas de bichanos em casa. Talvez por isso um dos seus primeiros contos de sucesso tenha recebido o sugestivo título de Gato na chuva.
Na ilha de Key West, ao Sul dos Estados Unidos, onde morou entre 1931 e 1940, o autor de O velho e o mar chegou a ter pelo menos 50 gatos. Perguntado sobre o porquê de tantos bichanos, respondeu que “um gato leva a outro”. Os felinos geralmente têm cinco dedos nas patas dianteiras e quatro nas de trás. Muitos dos seus tinham um gene dominante que lhes dava dedos a mais. Eles descendiam de um gato trazido de Boston por um capitão de navio, seu amigo.
Um dos autores que mais influenciaram Hemingway foi seu compatriota Mark Twain. Criador dos personagens juvenis Huckleberry Finn e Tom Sawyer, Twain dizia que “se o homem pudesse cruzar com os gatos, isso melhoraria o homem e deterioraria o gato”. Ele também afirmou que “se os bichos falassem, o cachorro seria um amigão tagarela, mas o gato teria a graça rara de nunca dizer uma palavra a mais”.
Sucesso na Broadway
Considerado um dos maiores poetas da língua inglesa, o também americano T. S. Eliot gostava tanto de gatos que escreveu vários poemas inspirados neles. Da reunião desses textos surgiria o musical Cats, um dos espetáculos de maior sucesso na história da Broadway, a rua dos grandes teatros de Nova York.
O mestre dos contos de mistério, Edgar Allan Poe, vivia cercado de felinos. Talvez por isso tenha escrito O gato preto, um clássico dos contos de terror. Nesse caso, o tiro saiu pela culatra, pois o conto muito contribuiu para a má-fama do animal, cuja figura é associada ao azar desde a antiguidade. Dizem que devido à matança de gatos na Idade Média, os ratos proliferaram na Europa, o que resultou na peste bubônica.
Considerado um dos mestres da geração beat, William Burroughs dizia que “o gato não oferece favores. Ele oferece a si mesmo e quer cuidado e abrigo. Não se consegue amor em troca de nada. Como todas as criaturas puras, os gatos são práticos”.
Talvez concordasse com Burroughs o inglês Aldous Huxley, autor do romance Admirável mundo novo, que recomendava: “Se quiser conhecer bem as emoções humanas, tenha gatos em casa”. Já o francês Jean Cocteau, declarou: “Amo meus gatos como amo minha casa, aos poucos eles se tornaram sua alma visível”.
No Brasil, muitos escritores viveram ou vivem às voltas com gatos de estimação. Foi o caso do mineiro Guimarães Rosa, autor de Grande sertão: veredas. Ele cresceu sua obra cercado por bichos de várias espécies, mas foram os gatos angorás que o acompanharam até a morte, em 19 de novembro de 1967, três dias depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras.
Ligação com Deus
O poeta maranhense Ferreira Gullar afirmou certa vez que, “ao contrário do que as pessoas dizem, que gato não gosta de dono, o gato só é mais sutil”. Pouco depois, lamentou publicamente a morte do seu felino de estimação, que tinha por hábito misturar seus recortes de revistas com os quais fazia mosaicos. O também poeta Haroldo de Campos deixou registrado seu amor pelos bichos num vídeo de 1997. Para ele, no entanto, os gatos teriam “uma ligação direta com Deus”.
Luiz Ruffato atribui a preferência dos escritores pelos gatos ao fato de o bichando ser de natureza silenciosa e ensimesmada. Como os escritores precisam de silêncio e concentração, o gato se tornou a companhia ideal. Segundo ele, o felino percebe quando o dono não está bem e isso “é uma coisa bem curiosa”. Aliás, esse tipo de sensibilidade inspirou Natsume Soseki a escrever Eu sou um gato, um clássico da literatura japonesa.
Para Raul Pompéia, “o cão escravizou-se; o gato nunca teve um dono”. Já o poeta chileno Pablo Neruda escreveu que “só o gato apareceu completo e orgulhoso”. Por sua vez, o bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis, registrou bem-humorado que “o gato que nunca leu Kant é talvez um animal metafísico”. Lewis Carroll, com o gato de Alice no País das Maravilhas, retratou o felino como metáfora da anarquia.
Enfim, a lista de autores aficionados por gatos não tem fim e inclui nomes como Anton Checov, Cecília Meireles, Charles Bodelaire, Cora Rónai, Cunha de Leiradella, Heloísa Seixas, Jack Kerouack, Jorge Luis Borges, Júlio Cortazar, Lygia Fagundes Telles, Manuel Bandeira, Mário Quintana, Nelson Archer, Patricia Highsmith, Ruy Castro, Truman Capote e só Deus sabe mais quantos.
Origem se perde no tempo
Vulgarmente conhecido como gato urbano ou caseiro, o popular bichano tem o nome científico de Felis silvestris catus. Trata-se de um animal da família dos felídeos e é certamente o segundo bicho de estimação do homem, depois do cachorro. Predador natural, caça com habilidade pequenos animais, como baratas, lagartixas, passarinhos e roedores. Isso lhe garantiu status na Europa medieval, quando ajudava os homens a exterminar ratos, transmissores naturais da peste negra ou bubônica.
Sua primeira associação aos seres humanos data aproximadamente de 9.500 anos, embora alguns pesquisadores acreditem que sua domesticação tenha começado antes disso, no interior da África. Seu ancestral mais distante é o Miacis, um mamífero que há 40 milhões de anos, no final do período Paleoceno, já subia em árvores. O gato primitivo teria evoluído para o Dinictis, muito parecido com o bichano atual em suas diversas raças.
Na verdade, o gato é um membro da subfamília Felinae, surgida há aproximadamente 12 milhões de anos e muito valorizada no Egito antigo. Uma das divindades da religião egípcia era Bastet, a deusa em forma de gato cuja estátua pode ser visitada no Museu do Louvre, em Paris.
- Matéria publicada no suplemento Correio das Artes, da Paraíba.