Jorge Fernando dos Santos

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Domingo, 08 de outubro de 2016, início da tarde. Sob um sol escaldante, 12 guardas de congado, totalizando mais de 400 pessoas de todas as idades, desfilam em louvor do Rosário pelas ruas do bairro Jardim Vera Cruz, em Contagem. Celebrada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário pelo padre José Geraldo Sobreira, a missa conga cumpre o rito católico ao som dos tambores de origem africana com direito a coroação de reis e rainhas. O evento, alegre e colorido, é uma realização da comunidade negra dos Arturos.

O ciclo de devoção a Nossa Senhora do Rosário vai de agosto a novembro, sendo comemorado pelos Arturos no mês de outubro. A festa é um auto de devoção à santa, marcando o auge da tradição cuja origem se perde em meados da colonização brasileira. Das 12 guardas presentes este ano, dez representaram irmandades de bairros vizinhos que atenderam ao convite feito pelos Arturos.

A comunidade descende de Camilo Silvério da Silva, um angolano arrastado ao Brasil na segunda metade do século XIX. Do porto de desembarque do navio negreiro, no Rio de Janeiro, ele foi trazido para o povoado mineiro da Mata do Macuco, antigo município de Santa Quitéria, hoje Esmeraldas. Seu trabalho forçado era nas minas e também como tropeiro.

Mesmo sendo escravo, Camilo desposou a negra alforriada Felismiba Rita Cândida, com quem teve seis filhos. Um deles foi Artur Camilo Silvério, nascido em 1885, quando já vigorava a Lei Rio Branco, popularmente conhecida como Lei do Ventre Livre. Ele se casaria com Carmelinda Maria da Silva e seria pai de dez filhos.

Artur trabalhou duro desde cedo e conseguiu adquirir uma propriedade rural em Esmeraldas, mas acabou se mudando com a família para um terreno na localidade de Domingos Pereira, em Contagem. Ali vivem hoje seus descendentes, num total de 80 famílias com quase 500 membros, incluindo agregados. O lugar é calmo e arborizado, com uma capela, um campo de futebol e construções modestas, que lembram uma vila do interior.

Família congadeira

Além do congado em louvor de Nossa Senhora do Rosário, a comunidade negra dos Arturos conserva o famoso batuque, que foi reconhecido como expressão artística pelo antigo Minc (Ministério da Cultura). Sua tradição inclui a festa da capina, também chamada de João do Mato, além da Folia de Reis, em janeiro, e da Festa da Abolição, realizada no mês de maio em comemoração à Lei Áurea. A comunidade tem ainda o grupo artístico Arturos Filhos de Zambi, cujos integrantes se dedicam à percussão, teatro e dança afro.

Atualmente, Marcos Eustáquio dos Santos é quem preside a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem. Aos 43 anos, técnico em manutenção eletro-eletrônica, ele é casado com Rosana Aparecida da Silva Santos. Os dois se conheceram na Associação Guarda de Congo de Nossa Senhora do Rosário do bairro Jardim Industrial, Paróquia de Nossa Senhora de Fátima, da qual ele se desligou para ingressar nos Arturos. “Meu pai era muito presente nesta comunidade e eu sempre vinha com ele às festas e reuniões”, recorda, ao explicar os motivos da mudança. Desde cedo, Marcos se encantava com o lugar, as pessoas e seus ritos religiosos.

Rosana, por sua vez, continua na antiga irmandade formada por seus familiares. “Essa é uma tradição que vem de minha avó e de minha mãe. O meu congo é todo de família, formado por irmãos, tios, primos e sobrinhos”, ela afirma. “As novas gerações vão chegando, vão crescendo e dando continuação ao nosso congado. Hoje, somos mais de cinquenta pessoas na irmandade”. Contudo, seus filhos Vitória (de 20 anos) e Iago (de 14) preferiram seguir o pai, seduzidos pela magia dos Arturos.

Origens da tradição

Quando os negros foram arrancados da África e trazidos ao Brasil na condição de escravos, trouxeram com eles o banzo e um pouco de sua cultura. Como eram de diferentes nacionalidades, também praticavam diferentes ritos religiosos. Só que essa prática era proibida pelos senhores brancos e por isso era feita em segredo, nas senzalas ou na mata, surgindo assim as irmandades que atuam até hoje nas festas do Rosário.

Aos olhos da Igreja, os negros davam nomes de santos católicos aos seus orixás ou divindades africanas. Veio daí o sincretismo religioso, uma das principais características da cultura brasileira. Na devoção por Nossa Senhora do Rosário, as irmandades congadeiras são convertidas ao catolicismo, mas conservaram seus traços culturais, principalmente na música e na dança ao ritmo dos tambores.

A congada é um rito dramático no qual os participantes dançam em louvor da padroeira ou na coroação da rainha e do rei congos. Os estilos congo e moçambique – dançado com chocalhos amarrados nas canelas – são praticados desde a infância. As irmandades desse culto, passado de pai para filho há várias gerações, sobrevivem em muitas regiões de Minas, estado que mais recebeu escravos africanos para trabalhar na mineração. Também se destacam ritmos como o candombe, caboclo, catupê, marujo e vilão.

A origem da devoção ao Rosário remonta à Europa do século XIII. Por não saber ler os salmos, os cristãos pobres rezavam determinado número de Pai-Nossos e Ave-Marias servindo-se de pedrinhas para contá-los. Surgiu assim o Saltério de Maria, cuja divulgação se deveu a São Domingos, fundador da Ordem Dominicana.

Comunidade quilombola

Por volta de 1200, o papa Inocêncio II ordenou a realização de uma cruzada contra os albigenses, considerados inimigos da Cristandade. São Domingos empunhou um rosário pedindo à Virgem que protegesse os cristãos, que eram minoria. Seu desejo foi realizado e o rosário passou a ser visto como arma poderosa, que mais tarde libertaria cerca de 20 mil escravos cristãos do jugo muçulmano. Com isso, Nossa Senhora do Rosário se tornou a protetora dos escravos.

Em 1716, o papa Clemente XI estendeu a festa da padroeira para toda a Igreja. Reza uma antiga lenda que a imagem da Virgem apareceu na linha do mar. Os brancos, com sua banda de música, levaram-na para uma igrejinha. Quando o dia amanheceu, a santa não estava mais lá, tendo voltado para o lugar onde fora encontrada.

Vieram os caboclos tocando violas e violões, e novamente a colocaram na igrejinha, mas a santa não ficou. Então, os filhos da mãe África tocaram suas caixas e caxambus, levando a imagem para o altar da igrejinha, onde ela finalmente permaneceu. Desde aquele dia, os tambores se fazem presentes nas festas do Rosário, na maioria das vezes sendo confeccionados pelas próprias irmandades. A santa se tornou a padroeira dos negros, que em seu louvor passaram a construir capelas e igrejas.

Os Arturos se destacam entre os grupos que preservam a tradição. Com o status de comunidade quilombola, seus integrantes construíram uma capela em louvor à santa, por onde passam todas as guardas que participam do cortejo de outubro. Além do altar repleto de enfeites e imagens dos santos de devoção dos congadeiros, destacam-se no templo os tambores feitos pelo mestre e diretor social Jorge Antônio. Ao lado desses chama a atenção os tambores sagrados, preservados desde os tempos do patriarca Artur Camilo Silvério.

  • Reportagem publicada na revista Sagarana, em 2016.

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