Jorge Fernando dos Santos

“No princípio eram as trevas e um imenso vazio. E Deus mandou que se fizesse a luz. E a luz se fez, corrompendo a escuridão. E esta, sem ter onde se refugiar, habitou o coração dos homens.”

Se me recordo bem, foi exatamente isso o que ele disse, tão logo se sentou no divã, naquela tarde de sexta-feira. Achei que estivesse brincando ou apenas repetindo um pensamento anônimo, desses que vagam pelas redes sociais. Então, explicou que aquele seria o primeiro parágrafo de suas memórias. E na medida em que os minutos avançaram na primeira sessão, fez observações confusas e algumas vezes risíveis a respeito de Deus e da humanidade.

Realmente, esse cara precisa de terapia, falei comigo mesma ao notar o seu olhar triste de quem está à beira do abismo. E como se lesse meu pensamento, ele sorriu e disse que havia me procurado exatamente por isso. Para minha nova surpresa, conhecia de cor o meu currículo, com detalhes dos quais eu nem me lembrava. Sabia até o nome dos professores e de alguns dos meus ex-colegas de faculdade.

Afirmou ter lido minha dissertação de mestrado sobre os efeitos devastadores do alcoolismo no âmbito familiar. Disse que o tema lhe dizia respeito, já que o livro adaptado do texto acadêmico se chama O diabo ao longo dos tempos. Devo esclarecer que a palavra “diabo”, nesse caso, refere-se ao efeito do vício na vida dos alcoólatras. Também me parabenizou pelo doutorado em Filosofia, que defendi na Sorbonne.

Tinha pinta de executivo e aparentava quarenta e poucos anos. Era alto, de ombros largos, barba e cabelos escuros um pouco grisalhos, e nariz aquilino… A pele era queimada de sol, e os olhos, negros, de brilho intenso e tristonho. Usava terno preto bem cortado, camisa branca e gravata de seda vermelha. Botas pretas italianas muito lustrosas.

Seu perfume era suave e incrivelmente másculo. A voz de barítono tinha um timbre áspero, mas ao mesmo tempo agradável. Seus dedos eram longos e as unhas, bem cuidadas. Quando nos cumprimentamos, assim que entrou no consultório, senti a palma de sua mão quente, como se estivesse febril. Usava no anular direito um anel de ouro com uma pedra negra, que me chamou atenção.

Perguntei se era casado. Respondeu-me que havia conhecido muitas mulheres, “no sentido bíblico”, ressaltou. Sua favorita havia sido Cleópatra, embora não pudesse esquecer Salomé. Não a de João Batista, mas a outra, pela qual perderam a cabeça dois Fredericos: o Nietzsche e o Chopin. Também afirmou ter filhos espalhados pelos quatro cantos do mundo, mas preferia viver sozinho a maior parte do tempo. Confessou-me ser movido pelo desejo de sedução, a exemplo do personagem Giovanni Casanova. Justamente por isso, jamais cogitara se casar.

Quando indaguei o seu nome, ele titubeou, como se sofresse de amnésia. No entanto, com um sorriso no canto dos lábios, disse que eu poderia chamá-lo como bem entendesse. Habituara-se a vários nomes, mas achava que nenhum deles traduzia seu verdadeiro caráter. E acrescentou que o significado do nome geralmente expressa a nossa verdadeira natureza. Por isso havia me procurado. Disse que “Lúcia” vem do latim, lux, razão pela qual ele me via como esperança de luz para sua vida atribulada e obscura, marcada por acusações nem sempre justas.

“Todo nome é um mantra que molda a personalidade do nomeado”, acrescentou, olhando-me no fundo dos olhos, o que me deixou encabulada. Depois começou a divagar sobre seus supostos apelidos. Disse que a palavra “demônio” vem do grego daimon e significa conhecimento ou inteligência. Já o termo “Lúcifer” deriva do latim, lucem ferre, o portador da luz ou da claridade. “Satã”, que originou o termo “Satanás”, vem do hebraico e significa questionador ou, simplesmente, o que se opõe a uma determinada ideia. “Diabo”, por sua vez, é aquele que divide em dois, o número da confusão, que somado ou multiplicado por si mesmo resulta no mesmo algarismo. Daí teria surgido a expressão popular “o diabo a quatro”.

Depois de um breve silêncio, o estranho desviou o olhar para o lustre pendente do teto e disse que, se fosse do meu agrado, eu poderia chamá-lo de Sued. Não consegui conter o riso diante do irônico anagrama. Ele ergueu a sobrancelha direita com tanta expressão, que eu achei que o tivesse ofendido. Antes que me desculpasse, explicou que já estava acostumado.

“Vocês, humanos, nunca me surpreendem”, comentou, com ares de superioridade.

Não, em momento algum exprimiu arrogância. Tudo o que dizia fazia certo sentido, e sua presença impunha respeito, sem dúvida. Em alguns momentos, ele parecia um artista famoso, um tipo de celebridade. Suas alegações soavam com tanta sinceridade aos meus ouvidos, que, na maioria das vezes, sentia-me tentada a não duvidar dos seus devaneios. Discursava bem, revelando cuidado na escolha das palavras. Sem dúvida, tem o dom da oratória, concluí. Era um bom conhecedor do idioma, alguém habituado à leitura. Enfim, um homem de cultura acima da média, embora mentalmente perturbado.

Quando perguntei qual era sua profissão, Sued sorriu novamente, dizendo-se senhor de vários ofícios, tendo exercido muitas funções ao longo dos tempos. Sugeri que escolhesse uma delas para constar de sua ficha de paciente e fui autorizada a escrever “advogado”. Eu quis saber em que faculdade havia estudado, e ele mais uma vez me surpreendeu. Disse que era autodidata, formado na escola da vida por notório saber. Em vez de contratar um “advocatus diaboli”, preferia defender a si mesmo das acusações que a humanidade sempre lhe fizera. Questionei a que acusações se referia, e a resposta pareceu confirmar o diagnóstico de alucinação do qual eu já suspeitava. Depois de um breve silêncio, ele perguntou se alguma vez eu tinha lido a Bíblia. Respondi que só conhecia alguns trechos do Novo Testamento.

“Eis o problema, doutora Lúcia”, comentou. “Quase ninguém tem tempo ou paciência para ler um catatau como aquele. E quem o faz leva tudo ao pé da letra, sem vislumbrar o sentido oculto nas entrelinhas. A maioria dos leitores tende a acreditar cegamente na versão oficial dos fatos ali narrados.”

“Como assim?”

Depois de uma pausa, Sued respondeu:

“A Bíblia é a biografia autorizada de Deus. Uma sofisticada peça publicitária. Parece natural que os autores escrevessem somente o que fosse favorável ao protagonista. Para justificar as falhas divinas, atribuíram os erros da criação à minha triste figura. Mas isso eu sempre relevei, desde o início dos tempos. Afinal de contas, melhor ser o vilão do que um mero coadjuvante na grande História. O problema é que nunca me ouviram a respeito de nada. Jamais fui consultado sobre qualquer episódio do Livro Santo. Logo eu, testemunha ocular da criação.”

Em seguida, Sued explicou que, na visão dos profetas e apóstolos do Senhor, a espécie humana é tão limitada que nenhuma pessoa seria capaz de compreender os segredos divinos sem culpar alguém pelo pecado ou pelas falhas da natureza.

“Fizeram-me o bode expiatório, aquele que deve ser sacrificado para que os outros sobrevivam ao peso da própria consciência”, acrescentou.

“Mas consta que não foi um bode, mas o Cordeiro de Deus que morreu na cruz para lavar os pecados do mundo com o próprio sangue”, argumentei.

“Essa versão é ensinada no catecismo. Se ninguém tivesse cometido a anunciada traição, a história com certeza teria sido outra. Minha humilde interferência ao tentar Judas Iscariotes garantiu o cumprimento da profecia.”

“Interferência? ”

“Semeei a inveja e a presunção no coração daquele zelote. Sugeri que beijasse a face do seu mestre para identificá-lo diante dos homens de Herodes Antipas, o tetrarca da Galileia e da Pereia. Mas confesso ter fraquejado ao antever o que viria depois. Foi por isso que entrei em cena no momento em que Jesus estava jejuando, em busca de forças para o gran finale. Ofereci-lhe o reino terrestre para que desistisse da Sua divina missão.”

“Pelo que sei, foi-Lhe sugerido que transformasse pedras em pães.”

Sued pigarreou antes de completar:

“Eis a metáfora, doutora. Sugeri que transformasse a dor física em alimento do espírito… Mas, por favor, não me interprete mal. Não fiz isso por compaixão ou mera simpatia. Eu apenas tentei evitar o pior.”

“Como assim?”

“Depois de crucificado, o Homem se tornaria um poderoso argumento contra as minhas artimanhas, e isso resultaria no meu inferno particular, o que no final das contas acabou ocorrendo. Mas foram os seres humanos que o crucificaram, e como uma crueldade jamais sugerida por mim. Aliás, por minha sugestão, Pilatos ofereceu ao povo a chance de livrá-Lo do suplício. No entanto, a turba reunida na praça pública preferiu salvar o ladrão Barrabás do que o seu mestre. Isso mostra que a democracia tem seus escorregões, não é? Mas eu não tive nada a ver com tanta brutalidade, pode acreditar. Até porque o sofrimento do Cristo despertaria cumplicidade e adoração nos futuros cristãos, e isso, de fato, me seria prejudicial. Em vez de fazer mea culpa, até hoje me acusam pelos seus erros e pecados.”

“E quanto a Judas, foi você que o convenceu a se enforcar?”

“Judas era um fraco. Com aquelas moedas de prata ofertadas por Caifás, ele poderia ter fundado uma religião, construído um templo ou quem sabe o próprio Vaticano. Teria ficado biliardário, como tantos outros que vendem a palavra de Deus à vista e me entregam a prazo a própria alma. No entanto, o covarde preferiu o caminho mais fácil para se livrar da culpa… Eu apenas o ajudei a encontrar a árvore.”

“Pelo visto, você é contra as religiões.”

“Pelo contrário. Elas falam em nome de Deus, mas, no final das contas, olhando pelo lado prático da coisa, estão sempre do meu lado. Quase todas foram fundadas em nome Dele, e em nome Dele sacrificaram mais vidas do que em meu nome. O melhor exemplo são as Cruzadas, concorda? Tamanha eficiência me causa inveja, devo admitir. E não podemos nos esquecer das fogueiras da Inquisição e do terrorismo islâmico. Por outro lado, os pastores me evocam na intenção de amedrontar e atrair suas ovelhas. Dessa forma, eles me glorificam.”

Em seguida, o paciente fez um longo silêncio. Antes que voltasse a falar, o cronômetro anunciou o fim da primeira sessão.

* * *

Na semana seguinte, conforme havíamos agendado, Ele voltou ao consultório para continuarmos o tratamento. Elegante como sempre, dessa vez usava terno cinza, camisa branca e gravata preta com listras amarelas. Inicialmente, sentou-se no divã e ficou calado, com os olhos fixos na pintura que mantenho na parede, atrás da escrivaninha.

Comprei aquele óleo sobre tela num antiquário em Paris, quando fazia doutorado. É uma pintura em estilo impressionista, retratando um bando de cavalos selvagens em plena corrida. Os alazões avançam do fundo da tela como labaredas, incendiando a paisagem ressequida na qual predomina uma profusão de verde, amarelo, branco e marrom, tendo acima um céu azul-claro. Dependendo do ângulo de observação, parece que os animais vão escapar da tela.

“Gosta desse quadro?”

Sued olhou-me fundo nos olhos e comentou que o equino é uma das obras-primas da criação. Disse que o considera o melhor amigo do homem, embora o cachorro tenha levado toda a fama.

“Os cavalos serviram à humanidade na paz e na guerra, desde o início das eras”, ressaltou num tom quase solene. “Ensinam aos homens que é possível conciliar força, elegância e servidão.”

Depois de um breve silêncio, concluiu, deixando-me de queixo caído:

“Foi por isso que eu pintei essa tela.”

“Você a pintou?”

“Sim. Fui aluno de mestre Renoir e levei quase três meses para concluí-la. Na verdade, assinamos um pacto. Ele me ensinaria a pintar e, em troca, eu o tornaria imortal. Meu nome artístico era Ranolfo de Córdoba. Um pintor anônimo completamente ignorado pela história das artes.”

Fácil dizer isso. A assinatura do artista na parte direita inferior do quadro está muito legível. E, como se novamente adivinhasse meu pensamento, Sued recomendou que eu lesse a anotação atrás da tela.

“Toile de Ranolfo de Córdoba, Paris, printemps 1892, atelier du maître Pierre-Auguste Renoir”, acrescentou em perfeito francês, movendo a mão esquerda, como se escrevesse no ar com um pincel invisível.

Claro que não levei a sério a suposta brincadeira. Ele às vezes parecia um fanfarrão, alguém capaz de rir dos próprios dramas e de brincar com a imaginação e os sentimentos alheios. No entanto, movida pela curiosidade e pelo desejo de contradizê-lo, levantei-me da poltrona e fui até o fundo da sala. Tirei o quadro da parede e, cuidadosamente, deitei-o de frente sobre a escrivaninha para conferir o avesso da tela, amarelada pelo tempo. À primeira vista, vi apenas um borrão, como se alguém tivesse tentado desmanchar o que fora escrito.

“Não tem nada aqui”, constatei.

“Por que não examina com a lupa que está na sua gaveta?”

Como é que ele sabe da lupa guardada na escrivaninha?, quase resmunguei. Seja como for, acatei a sugestão e, ao fazê-lo, senti um arrepio. Pude decifrar através da lente a frase borrada que ele tinha acabado de dizer. Sued estava certo, e eu, milionária. Afinal, tinha na parede do meu consultório aquela antiguidade pictórica cuja importância histórica certamente tinha escapado aos donos do antiquário onde a comprei por uma bagatela.

“Mas como isso é possível?”, indaguei, deixando o quadro na mesa e voltando à minha poltrona. “Deve ser um truque. Você deve ser um ilusionista, como o famoso Houdini.”

“Houdini foi meu aluno, mas cada um que acredite no que quiser. Chamamos a isso livre-arbítrio, qualidade que sugeri a Deus quando criou a humanidade. Aliás, meu intuito foi apenas tornar a coisa mais divertida.”

“Como assim, divertida?”

“Ora, doutora Lúcia, o humor é uma invenção de minha lavra. Se realmente tivesse lido a Bíblia, ou pelo menos parte dela como me disse na semana passada, teria notado que Deus é demasiadamente carrancudo, incapaz de um único sorriso.”

Nessa hora, fiquei ainda mais perplexa. Perplexa e incomodada! Com quase duas décadas de consultório, eu nunca tinha me deparado com um paciente tão relutante nas suas fantasias. Sued dizia aquele tipo de coisa como se fosse o mais convincente dos mentirosos, alguém capaz de enganar até mesmo o polígrafo.

“Não, minha prezada, eu não sofro de alucinação nem esquizofrenia”, disse ele, novamente adivinhando-me o pensamento. “Apenas me sinto decepcionado com a humanidade. Tenho assistido a coisas que me levam a questionar meu verdadeiro papel na divina comédia. Sinto-me velho e entediado, essa é que é a verdade. E foi isso o que me trouxe até aqui.”

“Velho e entediado? Mas você ainda é jovem e parece saudável.”

“Sempre fui cuidadoso na escolha do aparelho.”

“Aparelho?”

“O corpo pelo qual me manifesto quando quero falar aos mortais.”

Lembrei-me das religiões que acreditam em espíritos que se incorporam nos vivos e resolvi dar corda àquele raciocínio para ver até onde nos levaria.

“Então esse corpo não é seu?”

“Claro que não.”

“E a quem ele pertence?”

“Àquele ao qual foi emprestado por Ele”, respondeu, enigmático, apontando para cima.

“Não estou entendendo.”

“Esse é um dos problemas da sua espécie. Dizem meu corpo, meu braço, meu espírito e acham-se donos do próprio nariz.”

“E por acaso não somos?”

“Não, doutora, tudo isso é apenas um empréstimo. Se assim não fosse, não estariam aqui de passagem. Aliás, todos já estão mortos.”

“Você é um tanto niilista, não acha?”

“Nada disso. Eu apenas não acredito na verdade absoluta. Existem, sim, pontos de vista em torno dos fatos, e fato é que nada pertence a quem quer que seja. A não ser pela consequência de suas escolhas, todo o resto pertence a Ele”, disse Sued, apontando novamente para o alto. “Cada qual será julgado segundo os próprios atos. E ainda que esses atos tenham sido praticados em nome de alguém ou de alguma crença, o preço será cobrado de quem os praticou.”

“E o livre-arbítrio ao qual você se referiu?”

“É dele que ainda estou falando. Trata-se da única coisa a que vocês têm direito. E é a mim que devem agradecer. Deus, ou ‘de eus’, é o patrão vosso de cada dia, senhor absoluto da vida e da morte. Como os gnósticos já sabiam, Ele é vaidoso e jamais admitiu críticas à Sua criação. É o próprio Demiurgo, egocêntrico e temperamental como todo artista que se preza.”

“Egocêntrico e temperamental? Deus?”

“Exato… Veja bem. Depois de criar o céu e a Terra, Ele sentiu falta de alguém que pudesse contemplar a Sua obra. Foi quando começou a criar os animais. Afinal de contas, os anjos são funcionários burocráticos, bajuladores e nada contemplativos. Jamais seriam sinceros com o patrão. Por outro lado, às plantas e aos minerais falta o nobre estado de consciência. Os bichos, por sua vez, também por não serem pensantes, não poderiam admirar o que quer que fosse. Então, eu sugeri a Ele a criação de um ser inteligente, que fosse feito à Sua imagem e semelhança. Um ser cuja sensibilidade ultrapassasse os limites do instinto animal e da vocação serviçal dos anjos. Pena que a minha ideia tenha resultado num grande fiasco.”

“Como assim?”

“Adão e Lilith foram feitos de barro, um após o outro. Tão logo receberam o sopro divino, tinham tudo para ser os favoritos do Pai. Mas Lilith era de natureza rebelde e impulsiva. Era vaidosa e questionadora, e simplesmente se recusou a servir ao companheiro e ao próprio Criador. Livre pensadora e de espírito aventureiro, ela acabou pulando o muro, literalmente. Sem que ninguém esperasse, fugiu do Éden, deixando o marido a ver navios.”

“Eu não sabia que Adão teve outra mulher antes de Eva”, exclamei.

“Sim, Lilith foi a primeira mulher a ser criada e acabou se tornando a primeira feminista da História. Por isso a Igreja a excluiu da Bíblia. Mas, retomando o fio da meada, depois que ela se foi, Adão ficou só e desolado. Assistindo à sua angústia, sugeri ao Criador que lhe desse uma segunda chance. Isto é, uma outra esposa, não mais de barro, mas feita com um osso retirado do seu corpo. Dessa forma ele teria total domínio sobre ela. Deus então perguntou ao pobre homem se poderia arrancar-lhe a tíbia, e ele disse não. Perguntou se poderia arrancar-lhe uma vértebra, e ele disse não, novamente. Depois de outras recusas, o próprio Adão finalmente teve uma ideia original: ‘Veja o que pode fazer com uma costela’, sugeriu. E assim nasceu Eva, bela e radiante. E, diante de tal formosura, Adão se rejubilou dizendo: ‘Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada’.

“Nos primeiros tempos, o casal de humanos viveu em perfeita harmonia. Isso durou até o dia em que Gabriel, enciumado com a atenção que Deus lhes devotava, trombeteou que cedo ou tarde a nova fêmea humana também mostraria suas garras. Achei aquilo uma postura misógina imperdoável e apostei que aqueles dois eram as obras-primas do Criador. Seres nobres e incorruptíveis, ambos resistiriam a qualquer tentação, por mais tentadora que fosse. Para colocá-los à prova, transformei Lilith numa serpente e sugeri a ela que oferecesse a Eva o fruto proibido. Eu tinha certeza de que a nova mulher jamais trairia a confiança do Pai. Contudo, eu estava redondamente enganado.”

“Conheço o mito.”

“Mas não conhece o outro lado da história, não é?”

“E qual seria o outro lado?”

“Depois de ceder à tentação, Eva engoliu a isca. Ela não só comeu, como convenceu Adão a provar o fruto proibido. E ao tomar consciência do bem e do mal, ambos adquiriram ego, deixando de contemplar a criação divina com passividade. Tornaram-se, por assim dizer, críticos por excelência. Críticos! Uma espécie nefasta para a qual eu reservei um lugar especial no inferno… Criativo, o casal tratou de inventar o Kama sutra e cismou de modificar a natureza, para melhor adaptá-la às suas necessidades. E assim nasceu o pecado original. Diante disso, Gabriel, mais uma vez, alertou que cedo ou tarde eles comeriam o fruto da árvore da vida eterna. Se tal ocorresse, viveriam para sempre, subvertendo a ordem do Cosmos e ambicionando o trono de Deus. Portanto, deveriam ser expulsos do Paraíso o quanto antes, pelo bem da própria criação. Dessa vez, o Criador resolveu dar ouvidos ao arcanjo e ordenou que o casal fosse despachado para a Terra. Quanto a mim, acabei sendo condenado a acompanhar os dois infelizes na sua queda vertiginosa do Paraíso. Pior que perder a aposta foi ter que concordar com o chefe dos anjos…

“Mas a coisa não parou por aí. A senhora sabe que Adão e Eva tiveram três filhos, embora a Bíblia só conte a história de Abel e Caim. Esses dois que não se deram bem desde a infância. A grande tragédia é conhecida de todos, pois não? Deus só aceitava as oferendas do primeiro, que era pastor, e rejeitava os sacrifícios do outro, um pequeno agricultor que não tinha onde cair morto. E assim brotaram o ciúme e a inveja no coração de Caim. Pouco a pouco, o ressentimento foi aumentando dentro dele até que finalmente assassinou Abel, esmagando-lhe o crânio com uma queixada de burro. Desde aquele dia, pecuaristas e agricultores pobres vivem se pegando. Está aí o MST que não me deixa mentir.”

“Você é muito pessimista com a humanidade”, provoquei.

“Nem tanto, doutora Lúcia. Saiba que todo o mal que eu causei até hoje à sua espécie foi uma forma de vingança pela minha queda. Mas, apesar disso, também pratiquei boas ações. Pensa que foi Ele que salvou Isaac de ser sacrificado por Abraão?”

“E não foi?”

“Imagine que o patriarca era muito rabugento e Deus quis testar-lhe a obediência. Por mero capricho, ordenou que a ele que sacrificasse Isaac, seu amado primogênito. Na última hora, vesti-me de anjo e avisei ao velho que a simples intenção do sacrifício era suficiente. Aliás, muito antes desse episódio, eu já tinha socorrido Moisés e seu povo na fuga do Egito.”

“Não me diga! E como foi que fez isso?”

“Veja a ironia do destino! O tsunami que provoquei para arrasar a Atlântida pagã resultou na abertura do Mar Vermelho, que ficava a milhas de distância do famoso continente perdido.”

“Ajudou o povo de Deus mesmo sem querer?”

“Exatamente. Mas o lado bom da história é que todo os soldados do faraó morreram afogados, e isso me fez regozijar.”

“Posso saber por quê?”

“Por uma razão muito simples. Os egípcios adoravam a tantos deuses que nem me davam atenção. Já eram suficientemente enganados na sua fé pelos sacerdotes do templo… Não captou a ideia? Ora, a minha existência só faz sentido no monoteísmo, no qual o homem se equilibra numa corda bamba. Nesse caso, alguém tem que segurar a outra ponta, não é mesmo? Se Deus é Aquele que é, eu sou aquele que está. E é por isso estou entre vocês.”

“Sentiu prazer em afogar um exército inteiro?”

“Sacrificar a humanidade tem sido o meu propósito desde a minha queda neste vale de lágrimas. Pelo menos foi assim no começo. Sabe, com o passar dos séculos a crueldade humana saiu de controle a tal ponto que eu perdi a razão de ser. Tanto que Ele tentou pingar um ponto final em tudo. Foi quando decidiu provocar o grande dilúvio. Até mesmo a família de Noé deveria ser extinta, sabia? Mas o mundo sem os homens perderia a graça, com certeza. Por isso, convenci o patriarca a entrar na embarcação com a mulher e os filhos.”

“Está me dizendo…”

“Exatamente, doutora. Deus queria salvar apenas os animais e as plantas. Os homens estavam todos condenados à extinção, mas eu me afeiçoei de tal maneira à sua espécie que achei aquilo um desplante, um desperdício. O mundo sem os homens não faria sentido algum, pelo menos para mim. Afinal de contas, nenhum outro bicho comete pecados. No entanto, com o passar dos séculos, descobri que Ele tinha razão. Os homens são movidos por vaidade e desejo. E quando não têm do que se exaltar, vangloriam-se da própria humildade. A vaidade é a raiz de todos os males e por isso é o meu pecado favorito.”

A conversa prosseguiu por rumos cada vez mais absurdos, até que o cronômetro finalmente soou.

* * *

A terceira sessão não foi diferente. Sued continuou devaneando sobre coisas que eu mal compreendia. Estava mesmo convencido de sua natureza demoníaca, e o pior é que eu também comecei a me convencer. De fato, sua narrativa escapava à lógica científica, mas a sinceridade e a clareza de suas declarações me deixavam perplexa, já que revelavam certa lucidez na linha de raciocínio. E assim ele prosseguiu:

“Durante toda a História, os piores males da humanidade foram atribuídos a mim. Na Idade Média, por exemplo, os religiosos me culpavam pelos pecados cometidos por homens e mulheres, dentro e fora da Igreja. Alguns infelizes foram mortos na fogueira, mas isso não foi suficiente para aplacar a sede de sangue e me inocentar das infames acusações. Chegaram a me responsabilizar pela peste bubônica, mesmo deduzindo que a matança dos gatos foi o que a fez proliferar. Afinal, a população de ratos quadruplicou nas grandes cidades da Europa. E olha que os felinos sempre foram da minha predileção. Tanto que inspirei O gato preto ao grande Edgar Allan Poe.”

“Sei… Mas a humanidade evoluiu muito, você há de concordar.”

“Nem tanto, doutora! O que evoluiu foram as condições tecnológicas. Na Pré-História, os homens se matavam com pedras, lanças e tacapes. Depois inventaram o arco e flecha, a balista e a catapulta. Mais tarde, a descoberta da pólvora e a invenção das armas de fogo aumentaram a eficácia das carnificinas. Hoje, os mísseis de longo alcance substituem tudo isso com extrema eficiência. Não por acaso, têm a forma fálica das bordunas.”

“Convenhamos que o pessimismo só agrava os problemas.”

“Não sou pessimista, eu insisto. Apenas encaro a realidade dos fatos com a devida frieza que merecem. Sabia que uma das minhas principais diabruras foi ditar O capital ao velho Marx?… Não, não fique tão perplexa! Na verdade, ele era só um bom psicógrafo. Estou falando do filósofo alemão, naturalmente, e não do Grouxo. Até porque, os humoristas não precisam de mim. Já são suficientemente endiabrados.”

“E por que você fez isso?”

“Por um bom motivo, é claro. Dessa forma inventamos o materialismo dialético, um modo perspicaz de fazer os homens sonharem com o paraíso na Terra, não mais no céu. Eu queria também sacanear os banqueiros, cuja ganância ultrapassa os meus moldes, diga-se de passagem. Mas o problema é que não antevi figuras execráveis como Stalin e Mao Tsé-Tung, dois nanicos que se fizeram adorar como deuses. Posso assegurar que não tenho nada a ver com o Arquipélago Gulag nem com a Revolução Cultural Chinesa. Eles foram muito originais e eu não gosto de concorrência.”

“Então o diabo se interessa por política”, deduzi, sarcasticamente.

“Mas é claro! Não só me interesso como a inventei. Só não contava que os políticos pudessem ser mais diabólicos que eu. Essa é mais uma prova de que a maldade humana tem superado os meus parâmetros. Na Segunda Guerra, os croatas foram tão cruéis com os sérvios, que os próprios oficiais da SS alemã intervieram, para diminuir a barbárie.”

“Acompanhou a Segunda Guerra de perto?”

“De muito perto, eu diria. Inspirei as ideias da propaganda nazista ao doutor Joseph Goebbels. O problema é que aquele baixinho coxo e arrogante ultrapassou os limites da sanidade. Ele apoiou a chamada solução final, o que, naturalmente, contribuiu para a derrota psicológica do povo alemão.”

“Não estou entendo.”

“É muito simples. Imagine só, perseguir o povo de Deus daquele jeito. Tem cabimento? O Cara lá em cima ficou furioso e por isso guiou os aliados no desembarque da Normandia.”

“Mudando de assunto, é a primeira vez que você faz terapia?”

“Oh, não! A primeira tentativa foi com o doutor Sigmund, na época em que morei em Viena.”

“Está dizendo que foi paciente de Freud?!”

“Exato. Mas o velho resmungão estava sempre ocupado, fumando charutos e escrevendo livros. Só depois de muita insistência da minha parte é que ele arranjou um tempinho na agenda.”

Diante de tal informação, procurei esticar a corda para ver até onde o paciente chegaria.

“Escolheu logo o pai da Psicanálise”, provoquei.

“Veja bem, doutora: Freud não foi exatamente o pai da coisa.”

“Como assim?”

“Fui eu quem o inspirou na descoberta do inconsciente, e então ele fez história. Mas o fato é que o arrogante não me levou a sério quando o procurei para me consultar. Parecia cansado, talvez devido ao uso prolongado de cocaína ou ao câncer que já se pronunciava no céu da sua boca. Não era para menos. Pensei em alertá-lo sobre os malefícios do tabaco, mas não cedi à tentação. Até porque eu sempre detestei o céu, não importa qual seja. Por outro lado, o médico era ele e eu nunca fui de ensinar pai-nosso a vigário.”

“Posso saber até que ponto Freud conseguiu ajudá-lo?”

“Depois de algumas sessões, ele veio lá com aquele discurso pronto sobre o complexo de Édipo. Tentei explicar que os anjos, mesmo depois de caídos, somos todos órfãos.”

“E ele?”

“Egocêntrico e materialista, Sigmund argumentou que, se eu fosse de fato um anjo, Deus seria ao mesmo tempo minha mãe e meu pai. Sendo assim, talvez eu alimentasse por Ele um dúbio desejo de pulsão e morte. Diante dessa blasfêmia, explodi numa gargalhada, coisa que não estou habituado a fazer, diga-se de passagem. Cheguei à conclusão de que estava perdendo o meu tempo com aquele velho tarado e nunca mais voltei a vê-lo.”

“Devia ter insistido. O processo psicanalítico exige paciência e pode durar uma vida inteira”, ironizei.

“Convenhamos que, no meu caso, seria uma eternidade inteira. Mas o fato é que não desisti de buscar ajuda, não senhora. Dias depois, fui bater na porta do Carlos Gustavo.”

“Carlos Gustavo? Você se refere ao Dr. Jung?”

“O próprio. Ouvi dizer que ele acreditava na eficácia dos oráculos, que por sinal foram invenções minhas para iludir o homem quanto ao destino.”

“Sei… E como foi a consulta?”

“Foi mais uma perda de tempo.”

“Pode explicar?”

“Carlos Gustavo disse que o diabo não existe e que eu certamente estaria sofrendo de alguma doença psíquica, cuja causa estaria sincronizada com o inconsciente coletivo. Propôs estudar o meu caso e me convidou a remar com ele no lago, perto do consultório. Lembrei-me do seu caso com a jovem Sabina Spielrein e nunca mais o procurei. O sujeito gostava de se envolver com pacientes e, francamente, não fazia o meu tipo. Além do mau-hálito, ele era muito presunçoso e de moral duvidosa.”

“É preciso que o cliente colabore com o terapeuta.”

“Tudo bem, mas me fazer de cobaia seria um desplante, concorda? Além do mais, tenho pavor de choque elétrico”, ressaltou o pobre diabo. “Veja a senhora que certa vez um sujeito chamado Fausto evocou o meu nome na intenção de me propor um pacto. Ele queria que eu lhe concedesse a eterna juventude e um pouco de sabedoria em troca de sua alma pecaminosa. Achei graça naquilo e logo o descartei.”

“Posso saber por quê?”

“Ora, doutora, o inferno está cheio de almas narcisistas como a dele. A senhora deve imaginar que não é nada fácil conviver com essa gente que só tem olhos para a própria imagem refletida no espelho. Mas, apesar da minha recusa, todos pensam que assinamos o contrato. Culpa de Goethe, a quem narrei o caso. Era para ser apenas uma fábula, mas o poeta a escreveu com tanto esmero e clareza, que os leitores passaram a acreditar no mito.”

“Conheceu Goethe pessoalmente?”

“Não apenas ele, mas muitos outros de sua nobre estirpe. Nunca me esquecerei, por exemplo, da visita de Dante a Dite, a capital do inferno, guiado pelo grande Virgílio. Sabe, os poetas são os únicos que podem transitar no além sem pagar pedágio.”

“E por que o privilégio?”

“A poesia é filha da tormenta, e os poetas são movidos pela paixão. Vivem uma vida sofrida e caótica, o que serve para purgar seus pecados. Mas, voltando à questão do pacto, o que poucos desconfiam é que assinei contrato com Paganini, que, aliás, nunca me pagou.”

“O violinista? Perdoe-me, mas não posso acreditar”, reagi.

“Sem problema. A mim me interessa mesmo que as pessoas sejam incrédulas, mas cada um que pense o que quiser. A realidade não é o que o homem imagina ser. Sua espécie se subestima diante da maldade e por isso me culpa pelos próprios erros. Mas o fato é que Paganini era um gênio e no, final das contas, conseguiu me passar a perna.”

“Em que sentido?”

“Antes de me procurar, o gênio violinista já havia feito um pacto com Deus, a quem devolveu a alma tão logo desencarnou.”

“Nunca entendi essa coisa de pacto dos músicos com o diabo.”

“É muito simples. Antes da queda, eu era o mestre da harmonia nas hostes celestiais. Minha ligação com a música sempre foi visceral, digamos assim. E sempre estou disposto a ensinar o que sei, mediante um módico pagamento, naturalmente. Alguns ganharam fama depois de me vender a própria alma.”

“São apenas lendas medievais”, argumentei.

“Mas a coisa funciona, pode acreditar. Robert Johnson e Keith Richards que o digam. Não tocavam nada antes de me conhecer. Essa foi a maneira que encontrei de me manter ligado à música depois de ter sido despejado do céu. Aliás, naquele dia, Gabriel perguntou a Deus por que não me destruía em vez de simplesmente me exilar. Sabe qual foi a resposta?”

“Qual?”

“O inferno precisará de um gerente.”

Quando a sessão terminou, Sued se foi, e eu mal consegui prestar atenção no paciente seguinte.

* * *

Como já é sabido, é muito comum o cliente se sentir atraído pelo terapeuta no início do tratamento. A atração resulta de certa dependência psíquica, mas, com o tempo, isso passa. Pouco a pouco, os papéis vão se firmando na relação médico-paciente, e os resultados da terapia começam a surgir naturalmente. No caso de Sued, a coisa ocorreu de modo inverso. Em vez de se sentir atraído por mim, eu é que me deixei levar pelo seu charme, sua conversa e sua aura de mistério.

De repente, Sued não me saía mais do pensamento. Toda sexta-feira eu contava os minutos até o início do seu horário. Numa semana em que ele faltou à sessão sem avisar, eu quase explodi de angústia. Não consegui dormir naquela noite. O som da sua voz ecoava na minha cabeça e me afugentava o sono. A imagem do seu sorriso enigmático parecia colada nas minhas retinas. Cheguei a sonhar com ele, um sonho erótico do qual não me lembro direito. Só sei que acordei menstruada, embora não fosse o dia certo disso acontecer. Minha camisola estava empapada de sangue e tive até que trocar os lençóis.

No sábado, bem cedo, fui ao consultório, peguei sua ficha e anotei o endereço numa folha de papel. Eu estava muito ansiosa. Se não falasse com Sued, não conseguiria tirá-lo da cabeça. Precisava saber quem realmente ele era. Talvez um vizinho ou o porteiro do prédio pudesse me prestar alguma informação. Aquela história diabólica havia passado dos limites e não fazia o menor sentido. Por mais grave que fosse o quadro clínico, nenhum psicótico ou esquizofrênico sustentaria uma alucinação com tamanha coerência e por tanto tempo.

O edifício de dez andares com sacadas na frente ficava num bairro nobre da cidade. Era o de número 999, numa rua arborizada e sem saída. Estávamos na primavera, com as árvores floridas e um cheiro de pólen no ar. Empurrei a porta de vidro e me dirigi ao velho porteiro sonolento, sentado atrás de uma mesa de mogno.

“Bom dia. Em que posso ajudá-la?”

Li o nome no crachá, preso no bolso da camisa azul:

“Bom dia, seu Alípio. O senhor conhece o morador do 105?”

“Quem?”

“O nome dele é Sued. Doutor Sued, advogado.”

“E a senhora, quem é?”

“Meu nome é Lúcia Werneck. Sou psicóloga, e ele é meu paciente.”

“Não conheço nenhum Sued.”

“Mas ele me deu esse endereço.”

“Deve haver algum engano, doutora. O morador do 105 chamava-se Raul, Raul Luna de Deus. Engenheiro civil.”

“Faz muito tempo que se mudou?”

“Não, senhora. Doutor Raul e a esposa morreram há dois meses, num violento acidente de carro. A senhora não viu nos jornais? Foi uma tragédia que abalou todo o condomínio. Até hoje o apartamento está vazio.”

“Que coisa horrível.”

“Mas o pior a senhora não sabe.”

“O quê?”

“O corpo dele desapareceu da funerária pouco antes do velório. Somente a mulher pôde ser sepultada.”

Fiquei boquiaberta, sem saber o que dizer. Agradeci ao porteiro pela informação e entrei no carro, que deixara estacionado do outro lado da rua. Meus olhos se fixaram num bando de rolinhas que catavam grãos no passeio, alguns metros à frente. Permaneci ali por um tempo, refletindo sobre a situação confusa e inusitada.

Sued havia passado dos limites. Eu mesma havia passado dos limites ao procurá-lo inutilmente. Não sei onde estava com a cabeça ao me envolver com um paciente daquela forma. Não estava sendo ética. Será que todas as histórias que ele havia me contado eram mesmo verdade? Seria ele de fato o diabo em carne e osso ou no corpo do tal Raul? Talvez eu precisasse de férias, para me distanciar do paciente por um tempo e me libertar do seu magnetismo.

* * *

Novamente era sexta-feira, mas o dia demorou a passar. Eu mal conseguia prestar atenção na fala dos outros pacientes. Meu pensamento continuava prisioneiro do sorriso e do olhar enigmático de Sued. Quando iniciamos a sessão naquela tarde, o som da sua voz me causou a sensação de levitar pela sala. Era como se ele me hipnotizasse sem se dar conta.

“Como foi a sua semana?”, perguntei.

“Não tão confusa quanto a sua.”

Estremeci diante da resposta, pigarreei e tentei disfarçar o embaraço.

“Sei que está atraída por mim e devo confessar que também estou interessado em você”, continuou Sued, enquanto minhas faces coravam. “Devo imaginar que tal sensação se deva à dependência psicológica que o paciente experimenta durante a terapia. Talvez seja um sinal de confiança mútua, não acha?”

“É, sim, quero dizer…”

“Não precisa ficar acanhada, doutora Lúcia. Acredite que parte da sua atração por mim se deve ao aparelho. O engenheiro Raul, que morreu naquele acidente de carro, era de fato um homem atraente, e isso até lhe causava problemas com as mulheres. A esposa nem desconfiava que ele fosse um dom-juan.”

“Desculpe, mas não estamos aqui para falar da vida alheia. O objeto do nosso trabalho é você, suas aflições e fantasias. Você é o sujeito.”

“Tem razão, me desculpe.”

Sued prosseguiu com o seu discurso fantasioso. Disse que o atual estado de beligerância da humanidade simplesmente o colocava à margem dos acontecimentos. Mesmo tendo certos poderes, era-lhe totalmente impossível estar em todos os lugares ao mesmo tempo, a incutir tanta maldade no coração dos homens.

“A onipresença é um dom que somente Ele possui”, exclamou, apontando o indicador direito para o alto, como de hábito. “Gabriel estava certo. Os níveis de crueldade atingidos pela humanidade tornaram-me obsoleto. Fome e epidemias na África, guerras no Oriente Médio, terrorismo na Europa, recordes de corrupção e assassinatos no Brasil… Francamente, eu não tenho nada a ver com tudo isso. Por muitos séculos ensinei a maldade à sua espécie, mas hoje sou forçado a reconhecer que os discípulos superaram o mestre.”

Sued fez silêncio.

“E qual seria a solução?”, perguntei.

“Tenho me feito essa mesma pergunta há mais de um século e, acredite, a senhora me ajudou a encontrar a resposta. Desde que cheguei aqui, eu tenho refletido com muita clareza sobre os fatos. Em outras palavras, Lúcia me trouxe a luz. Estou decidido a desistir do Homo sapiens sapiens.”

“Como assim?”

“Existe vida inteligente em outros planetas, doutora. Aliás, em outros planetas, com certeza. Vou-me embora da Terra, encontrar um lugar onde a vida inteligente só esteja começando. Não vou nem esperar pelo Armageddon.”

Aflita diante de tal conclusão, deixei escapar um pensamento infeliz:

“Mas você não pode me deixar.”

“Não se preocupe, já transferi o valor das consultas pra sua conta corrente. Aliás, eu depositei bem mais do que lhe devo. Até porque o cartão bancário é do finado Raul, e ele não precisa mais se preocupar com dinheiro, não é mesmo?”

Nessa hora, meu coração disparou, e eu simplesmente perdi o controle. Minhas mãos ficaram trêmulas, e as pernas bambearam. Eu não sabia o que dizer, mas o certo é que não poderia perder aquele homem de vista. Nenhum outro havia despertado em mim todas aquelas sensações. Eu sentia amor, desejo, paixão, medo e insegurança, tudo ao mesmo tempo. Estava confusa. Minha cabeça rodava, e os meus olhos começaram a lacrimejar sem que eu pudesse impedir.

“Mas você não pode ir embora. Não pode interromper o tratamento, justo agora que estamos começando a obter resultados.”

“Sinto muito, doutora Lúcia, mas eu tenho mesmo que partir. O mundo dos homens já não me cabe. Tudo isso é inútil.”

Sued se levantou, abriu a porta e saiu da sala pisando firme. Pensei em correr atrás dele, confessar o meu amor e implorar que ficasse, mas fui impedida pelo meu orgulho e por esse maldito senso de realidade que a profissão me impingiu. Eu nunca mais o vi. Nunca mais o verei. No dia seguinte, o telejornal noticiou que o corpo do engenheiro Raul Luna de Deus fora encontrado à beira do túmulo onde deveria ter sido sepultado.

Depois de tudo o que passei, eu simplesmente não sou mais a mesma pessoa. A saudade, a insônia e o desespero tomaram conta de mim. Fui obrigada a trocar a condição de terapeuta pela de paciente. Não acredita em mim?… Eu compreendo. Até outro dia eu também não queria acreditar. Como disse Baudelaire, o maior truque do diabo foi ter nos convencido da sua inexistência. Os poetas têm sempre razão, eu é que sei.

  • Conto vencedor do 5º Prêmio Internacional Pena de Ouro, promovido pela Casa Brasileira de Livros.
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