Com a morte de José Saramago, a literatura portuguesa perde um de seus maiores escritores. Mais que isso, a comunidade lusófona perde um genuíno intelectual marxista que não desistiu de mudar o mundo apenas pelo fato de as tentativas socialistas terem descambado para o estatismo, o imobilismo e o absolutismo canhestro.
Saramago se definia como um homem pessimista, pois só os pessimistas querem mudar o mundo e as coisas a sua volta. A exemplo dele, também me considero de esquerda e um tanto pessimista, na medida em que desejo um mundo melhor, no qual também os pobres possam viver com dignidade. O verdadeiro esquerdista é aquele que anseia por uma sociedade mais justa e igualitária, livre da hipocrisia do politicamente correto e do vale-tudo praticado por governantes que se agarram tanto ao poder que se distanciam de si mesmos – independentemente da ideologia.
No entanto, confesso que nunca fui um fiel leitor dos livros de Saramago e tampouco concordava com tudo o que ele dizia. Sempre achei seu estilo narrativo difícil, pelo menos para os meus parcos conhecimentos literários. Sou daqueles que preferem textos enxutos, com poucas vírgulas e nenhum adjetivo. Gosto de Graciliano Ramos, Ernest Hemingway, Camilo José Cela, Murilo Rubião, Albert Camus. Em se tratando de períodos longos com sinalizações próprias, abro exceção para Guimarães Rosa – um gênio, a meu ver.
Apesar disso, sempre fui fã de Saramago e me orgulho ao lembrar que nossos caminhos se cruzaram por duas vezes. Em setembro de 1983, um time de 11 autores portugueses desembarcou em São Paulo para diversos eventos literários. Depois de cumprir a agenda local, que incluía a Bienal Internacional do Livro – salve engano – o grupo se subdividiu, dirigindo-se a diferentes regiões do país. Era como se aqueles escritores tivessem a missão secreta de redescobrir o país inventado por Cabral.
Vieram a Minas Gerais José Saramago, sua então mulher, Isabel da Nóbrega, e o poeta Pedro Tamen. Queriam conhecer Ouro Preto e outras cidades históricas, para onde se dirigiriam em caravana com autores da província, entre eles Branca Maria de Paula, Robinson Damasceno dos Reis e o luso-brasileiro Cunha de Leiradella, meu amigo e guru. Na ocasião, tive a oportunidade de entrevistar os três visitantes nas dependências do Oton Palace Hotel, onde se hospedaram de passagem por Belo Horizonte.
A entrevista seria feita para o Estado de Minas, jornal com o qual eu já colaborava como colunista de teatro e cinema. Para minha surpresa, o editor de cultura, Geraldo Magalhães, havia escalado o repórter Waldir Vasconcelos para a mesma tarefa.Afinal, na minha ingenuidade de “foca”, não avisei ao jornal que estaria ali para cumprir a missão voluntariamente. O resultado disso é que publiquei minha reportagem no Suplemento Literário do Minas Gerais, editado naquela época pelo contista Duílio Gomes.
Naquele momento, com o gravador em punho, eu jamais poderia supor estar diante de um futuro ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. Mais que isso, o único autor a conquistar a láurea escrevendo numa língua que é quase um dialeto no mundo globalizado. Para aproveitar o encontro com os três visitantes, fiz quatro ou cinco perguntas a cada um deles, já que teria apenas uma página para publicar a reportagem. Foram todos simpáticos e objetivos. A matéria pode ser acessada na Faculdade de Letras da UFMG ou no link http://www.letras.ufmg.br/websuplit/exbGer/exbSup.asp?Cod=18089612198304 .
“A vossa literatura está com muita pujança e não está em crise”, disse Saramago ao responder a uma de minhas perguntas. Sobre sua estada no Brasil, ele de certa forma traduziu o ponto de vista de seus companheiros de viagem: “Desejamos que a nossa vinda sirva para que os leitores brasileiros pensassem um pouco mais e atendessem um pouco mais a uma literatura que está a ser feita em nossa terra, que me parece a mim ter mérito suficiente para que o leitor brasileiro se interesse. É possível que os escritores portugueses não sejam muito conhecidos do público brasileiro, mas são com certeza bastante conhecido e muito estimados nas faculdades, por professores de Literatura Portuguesa e por estudantes”.
Saramago voltaria várias vezes a Belo Horizonte, inclusive como convidado do projeto Sempre um Papo, comandado pelo jornalista Afonso Borges. O que eu também não poderia supor é que nossos caminhos se cruzariam mais uma vez. Em 1998, aproveitando a euforia do Plano Real, juntei meu suado dinheirinho e fui passar férias na Península Ibérica em companhia de Vilma, minha mulher.
Depois de quase 12 horas de viagem, desembarcamos em Lisboa e nos dirigimos ao hotel. Chegamos famintos, cansados e sonolentos. Enquanto ela tomava banho, liguei a TV do apartamento para saber das notícias locais. Os telejornais informavam que o grande escritor lusitano havia acabado de ganhar o Prêmio Nobel.
Naquele momento, penso eu, o próprio Saramago recebia a notícia de uma comissária ou recepcionista numa sala de espera do aeroporto de Frankfurt, onde fora participar da famosa Feira de Livros. Arregacei as mangas e telefonei para a redação do Estado de Minas, dizendo que poderia repercutir a notícia do ponto de vista dos portugueses. Aliás, a opinião pública se dividia: a esquerda e os leitores comuns comemoravam, enquanto os direitistas e a comunidade católica mais conservadora lamentavam o fato de se premiar o autor de Memorial do Convento.
Corri às bancas de revistas, ouvi por telefone o editor do Jornal de Letras, Artes e Ideias, Carlos Vasconcelos (que havia conhecido num encontro literário realizado em Manaus), comprei vários jornais e visitei livrarias cujas vitrines exibiam livros de Saramago. A prefeitura havia distribuído placas pelas principais esquinas de Lisboa, cumprimentado o autor.
Também colhi depoimentos do rádio e da TV, ouvi pessoas nas ruas, juntei as anotações e fui com Vilma para a casa de nossa amiga Maria de Santa-Cruz, professora de Literatura que residia em Paredes – lugar onde conhecera Saramago quando ele ainda era jornalista. Portugal ainda não tinha internet. O jeito foi ligar a cobrar para a redação e ler a reportagem manuscrita para a colega Clara Arreguy, que teve o cuidado de respeitar cada vírgula do meu texto.
Uma década depois, ao nos excluir de sua folha de pagamento, os Diários Associados não mais se lembravam desse nosso esforço de reportagem em plenas férias. Até porque, para os grandes jornais, cultura é pouco mais que um detalhe na pauta. Mas valeu a aventura por amor ao jornalismo e à literatura. Interessante notar que no momento em que Vilma e eu rumávamos de ônibus numa excursão pelo Sul da Espanha, Saramago e Pilar, sua mulher e tradutora, deixavam Madri num voo para Lisboa, onde seriam merecidamente recebidos com pompa e circunstância.
Gostei de ler seus encontros saramaguenhos, caro Jorge. Sua entrevista com ele deveria ser republicada.
Abraço, Giffoni
Jorge, gostei de seu texto sobre Saramago. Também o conheci no Rio, numa Livraria, muito antes dele ser Nobel. Erámos vários escritores conversando, assuntos da época, literatura. Abraços, Jeferson de Andrade.
Olá, J. Fernando,
Obrigada pela atenção, tenho lido seu blog e gostei dos comentários sobre José Saramago. Como deve saber, sou descendente de portugueses e fã do Saramago, mas não por isso… Além de escrever muito bem era de uma simplicidade encantadora.
Não consigo vê-lo como um comunista mas, sim, como um verdadeiro democrata: a terra é de todos!
Adorei a frase que deu como resposta ao Geneton Morais sobre como poderia descrever o Brasil! Viu a entrevista no Globo News ontem?
Podia ter ficado mais tempo entre nós…Pena!
Abs.
MARIA FERNANDA