Nesta quinta-feira (12/10) comemoram-se os 100 anos de nascimento de Fernando Sabino, autor de romances como Encontro marcado, O menino no espelho e O grande mentecapto. Natural de Belo Horizonte, ele foi um dos primeiros grandes escritores que tive a honra e o privilégio de entrevistar para o Estado de Minas.
Nosso encontro ocorreu em 1988, quando o romancista voltava à cidade natal para lançar a coletânea de crônicas Tabuleiro de damas, a convite do conjunto cultural da Caixa Econômica Federal. Roberto Drummond, então subeditor do caderno de cultura, encomendou-me a matéria, cujo intermediário seria o também escritor Antenor Pimenta, que trabalhava na assessoria de imprensa da empresa.
Fernando era um mineiro de alma carioca. Percebi isso logo de cara, pelas suas tiradas afiadas e o jeito divertido de contar histórias. Não que uma coisa seja melhor que a outra, pelo contrário. Vale lembrar que muitos anos antes, numa conversa com JK, ele teria dito ao “presidente bossa-nova” que o achava talhado para governar a Guanabara, cujo governador era seu arquirrival Carlos Lacerda.
Seja lá como for, o escritor que nasceu homem e morreu menino (um dia antes de fazer 81 anos) foi morar em Ipanema, feito a tartaruga que se encaminha instintivamente para o mar. Isso porque era de uma geração de artistas e intelectuais mineiros cuja única chance de falar para o Brasil incluía a mudança para o eixo Rio-São Paulo – o que, aliás, mudou muito pouco desde então. Afinal de contas, as manchetes da nossa imprensa mal ecoam entre as montanhas.
Velhos companheiros
No litoral, Fernando Sabino teve um encontro marcado com outros ilustres filhos de Minas, entre os quais seus companheiros de juventude: Hélio Pellegrino (com quem estive uma vez), Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende; além de Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Ivo Pitangui, Borjalo, Henfil, Ziraldo, Fernando Gabeira e Affonso Romano de Sant’Anna. Também se reencontrou com Rubem Braga, cuja carreira jornalística tivera início no finado Diário da Tarde, antes da guerra.
Antenor e eu fomos buscá-lo em Confins, num carro preto da caixa com direito a motorista. No caminho de volta, viajei no banco de trás ao lado do ilustre conterrâneo, gravando com ele uma entrevista no meu gravador Philips que mais parecia uma rapadura de baiano. Essa era uma das boas coisas da profissão de jornalista: poder desfrutar por alguns minutos da companhia de pessoas admiráveis que povoam o nosso imaginário.
Naquele dia o escritor falou pelos cotovelos. Mais tarde, na entrevista coletiva, confessou surpresa ao notar que pouca coisa havia mudado em sua terra natal. A não ser pelos novos edifícios que ocupavam os terrenos das casas antigas e bucólicas de sua mocidade, tudo parecia como dantes no quartel de Abrantes. Inclusive as chefias das redações da cidade.
Abro parêntese para lembrar uma historinha sobre o autor. Aos 18 anos, quando ingressou na Faculdade de Direito, ele já tinha publicado Os grilos não cantam mais, seu livro de estreia. Isso lá pelos idos de 1941. Ao saber do fato, o professor Arduíno Bolivar exclamou: “Eu também, quando era moço, escrevi muita bobagem”. O próprio Fernando conta isso numa das crônicas reunidas no livro A chave do enigma. Fecho parêntese.
Coisas de mineiro
No nosso rápido encontro, o romancista confirmou uma conversa que tivera com Murilo Rubião, o pai do realismo-mágico, gênero que se tornaria uma das marcas da literatura latino-americana. Isso em 1947, quando publicou O ex-mágico, uma obra divisora de águas. Afinal, ninguém ainda falava no mexicano Juan Rulfo, no colombiano Gabriel García Márquez, no peruano Mario Vargas Lhosa ou nos argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar.
Mineiro tem essa mania de descobrir a pólvora antes dos outros e permanecer quieto no seu canto, feito criança que fez estripulia. Na tal conversa, Fernando perguntou ao colega se ele acreditava em Deus. A resposta a essa pergunta não poderia ter sido mais mineira. Rubião coçou a calva e disse que não acreditava Nele, mas tinha muita fé em Nossa Senhora.
Além dos exemplares da coletânea que estava lançando pela editora Record, Fernando Sabino havia trazido na bagagem pequenos tabuleiros de damas para viagem, feitos de plástico com as peças imantadas e a capa igual à do livro. Ao me presentear com o suvenir, explicou que se tratava de uma versão da obra para aqueles que não sabiam ou não gostavam de ler. Também me deu um exemplar do livro autografado. Mais tarde descobri que, por um erro gráfico, algumas páginas estavam em branco.
Tudo isso me faz lembrar que dezenas de meus entrevistados, inclusive o próprio Fernando, já partiram desta para só Deus sabe onde. Acontece que o tempo insiste em percorrer os trilhos feito uma máquina louca e emotiva, que atropela indiferente todo aquele que a renegue ou ignore. Lá também se foram meus pais e alguns dos meus melhores amigos, com os quais espero ter um encontro marcado em algum lugar do outro lado do espelho.
Texto magnífico, que retrata de forma sucinta, mas bem clara do gênio Fernando Sabino.
Parabéns, Jorge, mais uma vez nos servindo com a sua perspicácia de relatar fatos e trazer detalhes desconhecidos pela grande maioria.
Muito bom. Está faltando um “que” no penúltimo parágrafo, “Ao me presentear …” 👍
conheci sabino nos comecinhos de 1982. ele tinha vindo a belô lançar o grande mentecapto no shopping bh. gente finíssima,, a conversa correu solta. cê é escritor? e cê sabe por quê que eu uso computador pra escrever? porque além de fazer misérias na revisão, ainda posso mandar meus textos pro editor em dois segundos. de computador, eu só sabia que existia, mas como meu filho andré estudava computação na católica, perguntei pra ele se era verdade. verdade, pai. no dia seguinte pedi-lhe que me comprasse um, e fim. além do prazer da leitura dos seus livros, sabino me ensinou a revisar os textos sem ter de os reescrever na minha velha olivetti.
Eicha, texto danado de bom, grande Jorge.
Sabino é meu maior ídolo. Meu pai também é de 1923. Faria 100 anos em novembro.
Em um dos lançamentos de seus livros, falei pra ele que fiz tudo que ele fez e marquei também encontro, depois de 15 anos, com meus amigos do IMACO. Só eu fui. Ele respondeu que só nós dois tínhamos caráter nesse país.
Marcamos o encontro para o dia 12 de outubro pra ninguém esquecer. Eu nasci no dia 13 de outubro. Um dos amigos, nasceu no dia 12. Mesmo assim, não foi.
A minha maior honraria foi receber dele um cartão elogioso, sobre meu livro “Pretérito quase perfeito”.
Mais uma vez, querido escritor Jorge, você, com sua pena delicada e precisa, escreveu o que queríamos escrever.
Abraço comovido.
Excelente!
De fato, Sabino era um gozador. Fino e observador (sem pressa quanto ao efeito da fala: saboreava o que viria pela frente).
Algo bem mineiro, se me permite.
Amava o jazz, o que nem sempre era muito bom para os vizinhos, pois expressava esse amor numa bateria, sem ser nenhum Art Blakey, ou Chick Webb.
De irmão do Gerson (Sabino, comentarista esportivo), o tempo fez com que o Gerson viesse a ser o irmão do Fernando, assim como a Verônica, cantora, fosse a filha do Fernando; e por onde andará?)
Morou na praça da Liberdade (onde hoje tem uma unidade da UEMG). Nada mais mineiro. E onde hoje brincam crianças e idosos, que, se perguntados, talvez dissessem querer voltar a ser crianças.