Durante uma palestra sobre literatura num conceituado colégio de Belo Horizonte fui surpreendido por uma aluna de no máximo 11 anos, com a seguinte pergunta: por que os autores estrangeiros lideram as listas dos livros mais vendidos no país? A resposta, expliquei, poderia inspirar uma tese acadêmica tamanha a sua complexidade. No entanto, o mesmo não ocorre nos Estados Unidos e em países europeus, cuja imprensa coloca em destaque os autores nacionais. Nada mais justo, pois a identidade de um povo passa pela visão dos escritores.
Supostamente, as listas de livros mais vendidos são elaboradas mediante consulta a livreiros em diferentes pontos do país. Assim, a preferência pelos autores estrangeiros seria dos leitores e não dos órgãos de imprensa. Contudo, é público e notório que o número de matérias publicadas no Brasil sobre livros traduzidos é quase sempre superior às reportagens que falam de obras nacionais. A exceção fica por conta dos autores já consagrados.
Boa parte dos leitores ignora os escritores brasileiros contemporâneos simplesmente porque nunca leu nada deles ou sobre eles. Se a editora não compra espaço ou se o autor não é amigo do editor de cultura, dificilmente o livro terá lugar na pauta. Algumas editoras, por sua vez, investem na publicidade de um único autor estrangeiro aquilo que não gastam com todos os nomes nacionais do seu catálogo. Até porque, os direitos de publicação de um best-seller custam caro. Nesse caso, a pergunta seria outra: quem nasceu primeiro, o ovo ou a ave?
Ao conferir a lista dos livros de ficção publicada em maio numa revista semanal, deparo-me com autores como William Young (em primeiro lugar), Stephenie Meyer (segundo, terceiro e quarto lugares), Chico Buarque (quinto), Dan Brown (sexto), Augusto Cury (sétimo e oitavo), várias autoras (nono) e Khaled Hosseini (em décimo lugar). Vale dizer que Chico é o segundo colocado numa relação publicada em Portugal, cercado pelos livros de Stephenie Meyer. Curiosamente, as listas dos mais vendidos no Brasil raramente destacam livros infanto-juvenis, mas o público de Meyer é formado principalmente por adolescentes.
Para usar um termo muito comum nos tempos da resistência à ditadura militar, é fácil concluir que o Brasil é um país culturalmente ocupado. Em outras palavras, o que é bom vem de fora. No mercado editorial, o quadro se agravou durante a crise vivida pelas editoras nacionais, no início do Plano Real, quando algumas foram vendidas a conglomerados, alguns estrangeiros – no melhor espírito da globalização.
O problema de se divulgar mais os livros estrangeiros que os nacionais é o risco da alienação e da descaracterização cultural. Um best-seller não é necessariamente um clássico ou sinônimo de qualidade literária. Como disse Tolstoi, para ser universal é preciso falar da própria aldeia. Além do mais, aqueles que criticam o sucesso internacional de Paulo Coelho provavelmente acham natural o excesso de autores estrangeiros nas listas dos mais vendidos no país. O fenômeno faz lembrar a época em que as emissoras de rádio tocavam música americana em detrimento da MPB, o que causava muita polêmica.
Aprendi muito sobre o Brasil e a cultura nacional nos romances e nos discos. Os Sertões, de Euclides da Cunha, e os baiões de Luiz Gonzaga revelaram-me o Nordeste com todos os seus contrastes. As histórias de Jorge Amado e as canções praieiras de Dorival Caymmi mostraram-me a Bahia de todos os santos, ainda que um pouco estilizada. Enquanto o genial Erico Verissimo apresentou-me a saga do Rio Grande do Sul na tetralogia O Tempo e o Vento, as músicas de Teixeirinha que meu pai ouvia na vitrola trouxeram-me o bafejar do minuano e as primeiras impressões da cultura gaúcha. Da mesma forma, em outros estados, acredito que muita gente teve contato com Minas Gerais nas páginas de Guimarães Rosa ou nas canções de Milton Nascimento.
A literatura, a música e o cinema de qualidade são algo mais que mero passa-tempo, pois revelam a alma de um povo e ensinam muito de sua cultura. Contudo, na era das celebridades e da arte fabricada em laboratório para o entorpecimento das massas, os meios de comunicação reduziram o espaço dedicado à arte nacional e se renderam ao modismo ditado pela indústria de entretenimento. Por consequência, a crítica especializada perdeu status nos periódicos. Na era do politicamente correto não seria de bom tom criticar o fazer artístico. Daí os elogios derramados a obras de qualidade duvidosa. Numa sociedade em que o Ter vale mais que o Ser, a embalagem muitas vezes é melhor que o produto – mas isso nunca deve ser dito para não prejudicar os negócios.
Seria ingênuo supor que essa tendência resultaria apenas da má formação cultural dos jornalistas. Com certeza, o preconceito e a falta de conhecimento contribuem para a desinformação, mas a questão econômica deve ser levada em conta. Nas programações radiofônicas, por exemplo, sempre existiu o chamado “jabaculê”, na base do “só toca quem paga”. Como as gravadoras alinharam por baixo o padrão estético visando horizontalizar o consumo de discos, fica fácil compreender a decadência do repertório e do próprio mercado fonográfico. Mesmo sendo concessões públicas, as emissoras de rádio e televisão contribuem cada vez menos para a cultura nacional. Na outra ponta do balcão está a péssima qualidade do ensino fundamental no país, o que também compromete a autoestima dos brasileiros.
No que se refere a jornais e revistas, existem vários fatores que propiciam a prática favorável ao produto descartável. Basta ver o destaque que sempre foi dado ao cinema americano, cuja política de distribuição quase esmagou a produção local em países como França e Itália. Por outro lado, vale perguntar como é que um livro que mal chegou às livrarias pode ser tão rapidamente alçado aos primeiros lugares da lista dos mais vendidos. Outro fato que chama a atenção é que as editoras desses “campeões de venda” são as mesmas, isto é, estão sempre com mais de um título em destaque. Não sei se a reserva de mercado seria a solução para garantir espaço para os autores nacionais, mas o certo é que nos EUA ela nunca deixou de existir.
É claro que também existem as tendências de mercado, com a predominância de certos temas e autores. Depois das guerras do Afeganistão e do Iraque, por exemplo, registrou-se uma proliferação de best-sellers oriundos de países islâmicos. Tanto que alguém poderia publicar, sob pseudônimo, um romance na terceira pessoa, chamado A Puta de Cabul. Com o sucesso dessa obra, lançaria em seguida Eu Sou a Puta de Cabul, dessa vez escrito na primeira pessoa e assinado com o nome da protagonista. Lá na frente, depois de encabeçar as listas dos mais vendidos, assinaria com o próprio nome o último volume da trilogia, intitulado O Filho da Puta de Cabul.
* Publicado nos sites www.observatoriodaimprensa.com.br e www.tirodeletra.com.br, em 14/07/2009.
Moço, exelente artigo. Me fez pensar em muitas coisas. O mais interessante de teu texto é que ele mais pergunta do que responde, e não há como não respeitar a dúvida: é a mãe de todas as verdades, de todas as descobertas.
Quanto ao que se consome de literatura, creio que é questão de eras. A tendência não só do brasileiro, como de qualquer povo, é valorizar o que tem apenas depois de perdido. Assim, consumimos literatura mais digerível, sim. Mas como sou otimista por natureza, creio que ninguém consegue ler a Coleção Vagalume para sempre. Um dia o leitor desperta para os livros que realmente preenchem nosso vazio, que nada mais é que uma fome de conhecimento.
Uma vez mais, parabéns pela excelente reflexão.
Ótimo o seu artigo. Realmente, parece que só resta, aos que querem ler literatura brasileira, os grandes clássicos, e que nada mais é produzido atualmente. – Simone Garcia, Brasília, 20/7/2009, comentou no Observatório da Imprensa.
Jorge,
Naõ posso comentar sobre o mercado de outros países, pois como sabe não os conheço intimamente, mas quanto a educação, ah, isso dá pra fazer.
Sabe, é claro e notório que não há vontade política em levar o nosso povo a ler, interpretar e ter visão crítica. Aqui, nem preciso enumerar os motivos, você sabe e sofre, como eu, por isso. Como vender livros de escritores brasileiros que promovem nas suas palavras a consciência da nossa realidade? É melhor promover a sensibilização de outras realidades. Conhecer os problemas dos povos estrangeiros é emocionante e nos deixa mais tranquilos, com a alma mais aliviada, pois não podemos fazer muito, tá tããããão longe!!!
Para que mexer nas feridas que devemos curar? Para que “cutucar” o que está quieto? Tomar consciência do nosso poder de mudança? Mexer na ordem prè -estabelecida? Ler o que é nosso é nos fazer conscientes de nós mesmos e de nossa realidade, é incomodar a energia latente, é fazer sair da inercia.
A intenção é essa, basta ir às bibliotecas das escolas, investe-se, não naquilo que deveríamos, não nas escolhas necessárias para promove rmudanças. Ler para quê? É preferível não ver, não sentir e quem sabe de vez em quando ler “um livro de autoajuda para se sentir aliviado, fortalecido e até agradecido por ser o que é” ou ficar por dentro das injustiças cometidas em países, pois o nosso é ” tão justo”! Para que promever o que é nosso? O outro tem sabor melhor, pois é do outro e não nos dá obrigação nenhuma de agir. ” Dói menos, sabe?
Abraços
Zoi
Foram os americanos os criadores do Marketing, e nós brasileiros, somos um grande comprador dessa “imagem americana”. Livros, filmes, músicas e programas de tv americanos estão dominado nosso país, claro que defendo a liberdade de todos comprarem e olharem o que quiserem! Mas é visível a “invasão” em vários segmentos, até a ABIN parece ser uma cópia da CIA americana… Diogo Dapper, Montenegro/RS, comentou no Observatório da Imprensa.
Meu caríssimo jorge, a tua matéria tá ducaraças! só tento uma consideração: após teres escrito a trilogia de cabul, eu quero escrever o último da série, O Pai da Puta de Cabul. brincadeiras (mas sérias!) à parte, é triste enfrentar-se uma realidade cultural tão fodida. mas tão verdadeira. Diz-se cá pela fronteira que santos da porta não fazem milagres. E eu pergunto: ora, como hão de fazer, se já não há nem portas, quanto mais santos, pqp? O que se vê pelaí são meia dúzia de escrevinhadores que a mídia (paga) e as panelinhas (diz bem de mim que eu digo bem de ti) botam nos cornos da lua. Mas basta a gente olhar pra trás e verificar que dos endeuzados dos últimos 40 anos (e tantos foram) não restou nenhum, e a meia dúzia dos que ficaram e vão continuar, só tiveram honras de tapete vermelho quando já não precisavam dele. É uma tristeza, sô! perguntas-me como anda a frescura literária por cá. Anda como aí. antigamente, na lista dos mais vendidos, os autores nacionais pontificavam. Hoje, ninguém os lê. E, o que é ainda pior, grande parte não é reeditada. Mando-te uma lista (saiu hoje) dos mais vendidos. Aqui e nos esteites. na daqui, em dez, dos que escrevem em língua portuguesa, temos um brasileiro, um moçambicano, um angolano e uma portuguesa… O resto é tudo importado e nos esteites? Dos cinco apontados pelo New York Times, quatro são americanos e um é espanhol. Reserva de mercado ou consciência cultural? Há dias conversava em Braga com um editor e ele me dizia que se for português não tem mercado. A não ser que a mídia lhe abra espaço ou seja ele figura pública… Isto olhando o panorama de fora pra dentro. De dentro pra fora, os poucos que são lidos, ou são endeuzados pela mídia ou pertencem às panelinhas de sempre. Tirando a Lídia Jorge, a Agustina Bessa-Luís, o Saramago e o Lobo Antunes (e pouquíssimos mais), os outros não são escritores, criadores de personagens. São cartógrafos das suas próprias circunvoluções umbigais. Uma tristeza. falar em circunvoluções. Uma boa notícia pra mim: o meu romanceco Os Espelhos de Lacan foi objeto de uma tese de doutorado na Itália e vai ser entregue a uma editora. Abs. do velho Leiradella.
Oi, Jorge, vc tem razão… os mais vendidos… e o
jornalismo então… melhor mesmo é ser poeta… um agrande abraço:
Sagração
eu te consagro poeta
pelo poder do fogo
pelo fôlego do Cão
por Belzebu
pelo trovão
pelo corisco
por todos os deuses
pelas águas do São Francisco
eu te consagro
desde antes de Platão
por teu silêncio de pedra
por tua ausência na mídia
por não teres teu nome
no SPC
na lista dos mais vendidos
por não publicares pelos cotovelos
eu te consagro
por tua ira
por teu zelo
por teu gozo
por tua ironia
por tua luta diária
com a linguagem concreta dos dias
eu te consagro
por não teres patrão
por teres poucos amigos
por não te venderes
por trinta dinheiros
no templo das ilusões
por teres caído da torre
por não teres editor
por cantares tua aldeia
as dores inglórias
da esperança alheia
eu te consagro
por tua inocência fraterna
por tua desobediência civil
por tua severa humildade
por tua abstinência financeira
por tudo o que já vistes
e ouvistes
pelo que não consentistes
pelo que não escrevestes
eu te consagro poeta
pelo que não comprastes
pela palavra livre de toda imunidade
com todo lodo
com toda a imundície
eu te consagro pela poesia
sem rótulos
sem data de validade
pelo que em ti
a vida ainda insiste em tua humanidade
pelo dito e o não dito
eu te consagro poeta
João Evangelista Rodrigues, julho de 2009
Caro Jorge, li seu artigo Os Livros Mais Vendidos. O Brasil é um país estranho. Se voltarmos no tempo, na época do Brasil Colônia, os livros dos – hoje – clásssicos da nossa literatura eram editados em Portugal ou na França porque aqui não havia parque gráfico e, sendo editados na Europa, passavam pelo grifo da censura. Controlavam o que podia ou não ser publicado. Hoje, alguns séculos depois, sofremos a ditadura e a censura do que é ou não “editável”. Aos estrangeiros tudo. Há um mercado para todo tipo de porcaria internacional. Se brasileiros, apenas alguns eleitos.
Além disso é preciso avaliar, aqui mesmo, a falta de união entre todos NÓS que torcemos, constantemente pelo insucesso de uma obra publicada, ou a permanente tentativa de desacreditar o escritor.
Dou um exemplo: Roberto Drummond, pelo que produziu ao longo da vida, deveria ser um escritor nacionalmente conhecido e sua obra divulgada no exterior. No entanto só se tornou conhecido por causa de uma mini-série da TV Globo. Osvaldo França Júnior, a mesma coisa. Manoel Lobato, Paschoal Motta… Outro grande escritor e que continua no limbo: Luís Giffoni.
Se pensarmos nos escritores que vivem no interior, aí a coisa se torna mais crítica.
E a lista não para por aí entre prosadores e poetas. Mas os próprios mineiros se encarregam de sepultar seus nascentes escritores. Realmente você tem razão em dizer esse fenômeno de valorização dos bestsellers merece uma dissertação. Mas merece também um estudo esse fenômeno da morte do escritor em vida.
Um abraço, Hugo Pontes