Jorge Fernando dos Santos

Noel e a Loura do Bonfim

A novela ‘Cordiais saudações, Noel Rosa’ recria a presença do poeta da Vila em BH

Esse trecho de um dos capítulos da novela Cordiais saudações, Noel Rosa foi concluído depois do livro ser impresso pela Editora Patuá, no início deste ano. Na oportunidade de lançar uma segunda edição, pretendo acrescentá-lo à narrativa sobre o Poeta da Vila em Belo Horizonte:

Por volta da meia-noite, Noel se despediu e desceu a escadaria do dancing segurando no corrimão devido à embriaguez. A Rua Guaicurus estava fria e deserta. Ele ergueu a gola do paletó, andou alguns quarteirões e entrou num bonde sem ler o letreiro, imaginando ser o último para a Floresta. Quando deu por si, o veículo subia uma rua chamada Bonfim, cujo nome leu numa placa afixada em um poste.

Não fosse pela moça loura de vestido branco, sentada no banco da frente, Noel seria o único passageiro a bordo. De pele alva e olhos verdes, ela exalava um perfume de aroma floral, que logo despertou-lhe a libido de conquistador.

– Sozinha a uma hora dessas? – balbuciou o poeta num tom insinuante.

– Não mais, agora que encontrei você – correspondeu a beldade.

Noel tentou espichar conversa, mas a moça não disse mais nada. Na hora de descer, alguns quarteirões à frente, ela sorriu e lançou sobre ele um olhar convidativo. O boêmio errante nem titubeou em corresponder ao flerte. Mesmo preferindo as morenas, saltou do bonde e acompanhou a louraça até o portão de ferro da casa envolta em neblina, do outro lado da rua. Antes que dissesse palavra, ela segurou-lhe a mão e o convidou para entrar, levando-o direto ao quarto.

Fizeram amor desesperadamente, como se o mundo fosse acabar a qualquer momento. Em seguida, ele dormiu um sono pesado, sendo acordado por um negro de macacão marrom e chapéu de palha, com uma pá e uma enxada nas costas. Para sua surpresa, estava deitado a céu aberto, na campa fria de uma sepultura.

No retratinho amarelado fixado na lápide de mármore branco, a garota da noite anterior sorria o sorriso enigmático que o deixara hipnotizado. Embaixo da foto lia-se o nome de Amélia da Silva, morta havia dois anos, pouco antes de completar a maioridade.

O sujeito de macacão era coveiro e revelou que a infeliz se jogara na frente de um bonde, depois de ser abandonada no altar pelo noivo. Ao ouvir as explicações do jovem de queixo torto e olhos arregalados, deduziu que estava diante de mais um desavisado, que se deixara seduzir pelo charme da Loura do Bonfim.

Noel ficou arrepiado e fugiu sem olhar para trás. Tropeçou numa coroa de flores com fita amarela e tudo e quase caiu numa cova recém-aberta. Depois de esgueirar-se entre sepulcros e mausoléus decorados com esculturas em mármore de anjos e santos, deixou o cemitério esbaforido e entrou num carro de praça em frente ao velório. Gaguejou o endereço ao chofer, decidido que jamais contaria aquela história a quem quer que fosse. Os amigos certamente ririam dele, e os familiares diriam que tudo não passou de um delírio alcoólico.

5 comentários em “Noel e a Loura do Bonfim”

  1. “Quando eu morrer/não quero choro nem vela:/quero uma fita amarela/gravada com o nome dela…”
    Um dos clássicos dr Noel (qual não é?)!
    No caso da moça em questão (Amêlia), apenas uma ressalva: não era mulher de verdade.
    A narrativa antecedeu famosa campanha sobre bebida e direção, ao servir de alerta quanto a, se beber, não pegue bonde errado!
    Que venha uma segunda edição!

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