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Hemingway, Caçador de si Mesmo

Mais de 40 anos depois de sua morte, Ernest Hemingway mostra-se mais presente do que nunca no mundo das letras. Os 100 anos de seu nascimento, comemorados em 21 de julho de 1999, foi notícia em vários países e resultou na publicação de “True at First Light”, seu último original inédito. Copidescado pelo filho Patrick, o livro foi lançado nos Estado Unidos com grande estardalhaço da imprensa. Na verdade, trata-se de mais uma jogada editorial que ocorre à revelia do escritor, que deixou inacabado o romance autobiográfico. Outro lançamento motivado pela data é “Hemingway, The Final Years”, no qual Michael Rynolds faz um balanço da vida do autor de “O Velho e o Mar”.

Isso demonstra que Hemigway tornou-se um daqueles autores cuja obra se mostra cada vez mais universal, na medida em que o tempo passa. Muitos pensavam que o sucesso de seus livros estivesse necessariamente atrelado ao seu exibicionismo machista e à sua capacidade de auto-promoção. O escritor sobrevivera a nada menos que quatro casamentos e duas guerras mundiais, tendo entre elas a Guerra Civil Espanhola, na qual serviu como correspondente voluntário nas trincheiras republicanas. Chegou inclusive a escrever e narrar um documentário sobre a causa, visando arrecadar fundos para ajudar seus combatentes. Dessa experiência, escreveu “Por quem os sinos dobram”, um dos mais importantes romances do século sobre os absurdos da guerra e em favor da paz.

Não bastasse tudo isso, Hemingway era um grande bebedor e adépto dos esportes radicais de sua época, como a tourada, o boxe, a pescaria e os safáris na África. Dizia que passava boa parte do tempo atirando nas feras para não ter que atirar em si mesmo. Quando percebeu que estava no fim, sofrendo de paranoia, mergulhado numa profunda depressão e sob a suspeita de estar sofrendo de câncer gástrico, enfiou na boca uma espingarda de caça e detonou os miolos, no mês em que faria 62 anos. Sua morte ruidosa ecoou nos quatro cantos do mundo e até hoje intriga os admiradores e estudiosos de sua obra.

Mesmo que alguns críticos ainda tentem até hoje denegrir a imagem do autor e desvalorizar seus contos e romances, o fato é que o velho “papa” firma-se cada vez mais como um dos principais autores do século. Seu estilo seco e preciso e sua técnica magistral, que despreza adjetivos e advérbios procurando valorizar a ação do sujeito, influenciou escritores em todo o mundo, alguns internacionalmente consagrados, como Norman Mailer e Gabriel García Márquez.

Temas do cotidiano

Ler um texto de Hemigway é mergulhar fundo nos conflitos mais corriqueiros do ser humano. De temas simples do cotidiano, ele criou grandes histórias, quase todas esculpidas com mãos de mestre na solidez das palavras. Sua arte consistia em mostrar apenas a ponta do iceberg, deixando sob a superfície da narrativa três quartos da trama. Na verdade, em seus contos e romances o que importa muitas vezes é o subtexto, aquilo que está presente de maneira sutil e subjetiva. Assim, no conto “Colinas feito elefantes brancos”, um casal sentado à mesa de um bar discute sobre o aborto sem que essa palavra apareça em nenhum momento do texto. De maneira parecida, enquanto a grangrena devora sua perna, o protagonista de “As Neves do Kilimanjaro” mira o monte à sua frente como quem observa o vazio da própria existência.

Já nos seus primeiros textos, Hemingway demonstrou o caminho que iria trilhar ao longo da carreira. Expoente da chamada “geração perdida”, destacava-se ao lado de outros escritores americanos que moravam em Paris nos anos 20, como Scott Fitzgerald, John dos Passos e Ford Madox Ford, dividindo-se entre os grupos de Gertrude Stein e Ezra Pound. Ao lado de William Faulkner, não demoraria a se firmar como um dos grandes herdeiros da tradição romanesca da América. No entanto, ao contrário deste, ambientaria suas principais histórias longe do seu país. Foi o caso dos dois primeiros romances, “O sol também se levanta” e “Adeus às Armas”, este inspirado numa paixão frustrada que vivera enquanto se recuperava dos ferimentos de guerra. Ambos não tardariam a virar best sellers, sendo logo adaptados para o cinema.

Aliás, Hemigway foi com certeza o autor norte-americano que mais despertou o interesse de Hollywood. Seus diálogos enxutos e a nitidez psicológica de suas personagens encantavam os diretores e o sucesso de seus livros eram o argumento necessário para sensibilizar os produtores de plantão. Assim, foram várias as versões de seus livros a povoarem as telas do cinema. “Adeus às Armas” foi filmado três vezes e “O Velho e o Mar” ganhou duas versões, a exemplo do conto “Os Assassinos”. Os elencos eram sempre de primeira, destacando-se nomes como Gary Cooper e Ingrid Bergman em “Por quem os sinos dobram”; Gary Cooper e Rock Hudson, respectivamente nas duas primeiras versões de “Adeus às Armas”; Spencer Trayce e Anthony Quinn como o pescador Santiago de “O Velho e o Mar”, filmado duas vezes; Tyrone Power e Ava Gardner em “O sol também se levanta”; Ava e Gregory Peck em “As Neves do Kilimanjaro”. Consta inclusive que Humphrey Bogart e Lauren Bacall se apaixonoram durante as tomadas de “Ter e não Ter”, ou “Uma Aventura na Martinica”.

Confrontos existenciais

E Hemingway foi autor de grandes confrontos existenciais. Em “O sol também se levanta” o par romântico não poderia ser melhor: um impotente mutilado de guerra e uma ninfomaníaca vivem uma paixão impossível. Em “Adeus às Armas” um desertor proclama a paz em separado e foge da guerra com sua amada. Só que ela morre no parto e ele percebe que o destino é mais forte que os homens. Em “O sol também se levanta” Robert Jordan apaixona-se por uma jovem guerrilheira a quem dará a própria vida. Em “O Velho e o Mar”, Santiago tenta provar a si mesmo e ao mundo inteiro que ainda é capaz de enfrentar o mar e pescar um enorme peixe espada. Sua batalha contra os tubarões e a precisão de seus monólogos deram ao autor o prêmio Pulitzer e o Nobel de Literatura.

O escritor criava também cenas inusitadas e muitas vezes chocantes, como aquela do romance “As Verdes Colinas da África”, em que o protagonista descreve uma hiena ferida que devora o próprio intestino enquanto agoniza. Em “Morte na Tarde”, quando ele narra uma corrida de touros, dá ao seu leitor a sensação de estar vendo a arena à sua frente, com o touro e o toureiro bailando a dança da morte. Assim, sua narrativa sobre a savana após a passagem de um bando de babuínos enfurecidos pode trazer às nossas narinas o cheiro horrível daqueles primos distantes da raça humana. O mesmo se aplica à descrição de um campo de batalha dois dias depois da luta, com os cadáveres inchando ao sol, com as algibeiras reviradas pelo inimigo que já se foi.

Por essas e outras, Ernest Hemingway se fez um imortal. Um dos grandes vultos do século XX, um escritor que certamente será lembrado daqui a outros 100 anos, ao lado, por exemplo, do irlandês James Joyce, de quem foi vizinho quando morou em Paris pela primeira vez. E quando algum crítico afobado ou presunçoso baixar a lenha no mestre por uma publicação póstuma certamente desautorizada, é bom saber que nem mesmo o rugido dos leões será capaz de silenciar os sinos que hoje dobram por ele.

  • Matéria publicada no Estado de Minas.

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