Fernando Sabino era um mineiro de alma carioca. Não que uma coisa seja melhor que a outra, pelo contrário: ambas têm suas vantagens e desvantagens. Tanto isso é verdade que uma vez, conversando com o saudoso JK, no Rio, ele disse ao futuro presidente que o achava talhado para governar a Guanabara.
Seja lá como for, o escritor foi morar em Ipanema feito uma tartaruga que caminha instintivamente para o mar. Isso porque era de uma geração de intelectuais de Minas cuja única chance de falar para o Brasil incluía a mudança para o litoral. E assim, ele teve um encontro marcado com outros ilustres filhos da montanha, entre os quais Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Afonso Romano de Sant’Anna, Fernando Gabeira, Ivo Pitangui, Ziraldo e outros.
Conheci Fernando Sabino no início dos anos 80, quando ele veio a Belo Horizonte para lançar a coletânea de crônicas Tabuleiro de Damas, a convite da Caixa Econômica Federal. O intermediário dessa iniciativa era Antenor Pimenta, um dos romancistas mais brilhantes de minha geração. Fui com ele até o aeroporto de Confins, num carro da Caixa, para buscarmos o nosso ídolo. Vim com o visitante no banco de trás do veículo, com o gravador ligado, como faria depois também com a cantora Nara Leão, em sua última vinda a BH, pouco antes de morrer. Essa é uma das boas coisas da profissão de jornalista: desfrutar alguns minutos ao lado de seres humanos admiráveis, que estão à frente do nosso tempo.
Fernando Sabino falou pelos cotovelos. Mais tarde, durante uma entrevista coletiva, confessou estar surpreso em notar que pouca coisa havia mudado em sua terra natal. A não ser pelos novos edifícios que começavam a ocupar o lugar das casas antigas e bucólicas, aos seus olhos tudo parecia como dantes no quartel de Abrantes. As pessoas eram as mesmas nos cargos de mando, inclusive na imprensa daqueles dias. Percebi nesse seu comentário uma pitada de ironia muito mais carioca que mineira, diga-se de passagem. E foi assim que notei no meu ilustre conterrâneo um jeito de ser diferente dos demais montanheses que aqui permaneceram.
Foi naquele rápido encontro que ele nos confirmou uma conversa que havia tido com Murilo Rubião, o mineiro que inventou o realismo fantástico, gênero que se tornaria uma das principais marcas da literatura latino-americana. Isso em 1947,quando publicou O Ex-Mágico da Taverna Minhota, muito antes de ouvirmos falar no mexicano Juan Rulfo, no colombiano Gabriel García Márquez ou nos argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortazar. Mineiro tem essa mania de descobrir a pólvora antes dos outros e permanecer quieto no seu canto, feito criança que fez estrepolia. Na tal conversa, Fernando perguntou a Murilo se ele acreditava em Deus. A resposta foi ainda mais mineira: “Não, mas tenho muita fé em Nossa Senhora”.
Lembro que, além dos exemplares da coletânea de crônicas publicada pela Record, Fernando Sabino trouxe consigo um pequeno “tabuleiro” de damas feito de plástico, com as peças imantadas e a capa igual à do livro. Era um jogo apropriado para viajantes. E tome mais um pouco de ironia carioca: o autor de O Grande Mentecapto me deu um exemplar do jogo e foi logo avisando que era uma “versão” do livro indicada para quem não gosta de ler. A pedido de Roberto Drummond, que era subeditor de cultura do Estado de Minas (o editor era Geraldo Magalhães), escrevi uma página para a antiga 2ª Seção. A foto foi do Fernando Rabelo.
Isso me faz lembrar que vários de meus entrevistados já partiram deste mundo. Não que eu seja tão velho ou um pé-frio propriamente dito. Acontece que o danado do tempo insiste em percorrer os trilhos feito uma locomotiva movida a energia atômica. Lá se foram João Etienne Filho, Otávio Cardoso, Paula Lima, Carlos Leite, Tom Jobim, Astor Piazzolla, João Nogueira, Nelson Cavaquinho, João Felício dos Santos, Arthur Bosmann, Nara Leão, Murilo Rubião, Luiz Eça, Ronaldo Bôscoli, Plínio Marcos, Paulo Gracindo, Dias Gomes, Jorge Amado, Oswaldo França Júnior, Roberto Drummond, Álvaro Apocalypse, Adão Ventura e muitos outros, com os quais espero ter um encontro marcado em algum lugar do além.
- Crônica publicada na revista eletrônica Dom Total, 2017.