Jorge Fernando dos Santos

Quinze anos atrás, nas comemorações do cinquentenário de publicação de Grande sertão: veredas, publiquei no caderno Pensar, do Estado de Minas, uma espécie de ensaio-reportagem sobre a linguagem enigmática de João Guimarães Rosa. Encerrando o mês dos 65 anos de publicação do livro, apresento aos leitores do Dom Total uma versão revista e atualizada do referido artigo.

Apontado por muitos estudiosos como a obra mais importante da literatura brasileira, Grande sertão: veredas veio à luz em 1956, um ano rico em lançamentos literários no país. Basta lembrar os romances Encontro marcado, de Fernando Sabino, e Vila dos Confins, de Mário Palmério, aos quais me referi na semana passada. Sem falar em Corpo de baile, do próprio Guimarães Rosa.

Mesmo associado ao “regionalismo”, Rosa não se limitou a reproduzir aspectos meramente locais em sua obra. Pelo contrário, ele foi muito além em suas histórias, ultrapassando o universal para alcançar o transcendental. Críticos, leitores comuns e professores que trabalham Grande sertão: veredas em salas de aula devem procurar no texto algo abaixo da superfície.

Há que se mergulhar nas correntes profundas da narrativa, onde é possível garimpar senhas e símbolos de diferentes escolas filosóficas e esotéricas. Rosa procurava dar um sentido profundo e oculto a tudo o que escrevia, fazendo da literatura um jogo que desafia olhares argutos. Não é à toa que ele tinha grande interesse pelo esoterismo e pelas religiões, sendo também aficionado do xadrez.

Os iniciados em sua literatura são constantemente desafiados a enxergar e interpretar sinais sob a luz da Alquimia, da Astrologia, do Hinduísmo, da Maçonaria, do Platonismo, do Taoísmo ou mesmo da Psicanálise. Isso faz de sua obra algo maior que a própria literatura. Há quem considere Grande sertão uma espécie de livro sagrado a ser recitado em voz alta, como o Corão, a Bíblia e o Bhagavad Gita.

Consciência da escrita


Guimarães Rosa não quis nos oferecer uma obra rasa, de fácil leitura ou destinada ao mero entretenimento. Poucos tiveram tanta consciência da escrita quanto ele. A exemplo de autores clássicos como Homero, Dante, Cervantes, Goethe, Borges e Fernando Pessoa, ele tinha a palavra como forma, fôrma e energia. Mais que isso, cada palavra seria um enigma a ser decifrado, transmitindo ideias que poderiam despertar o inconsciente dos leitores.

A sabedoria rosiana no trato com o vernáculo, principal ferramenta de quem almeja se dedicar à escrita, tornou-se o grande diferencial de sua obra. O fio condutor de Grande sertão foi também inovador, se considerarmos que o “doutor” a quem o protagonista Riobaldo narra sua epopeia é ninguém menos que o próprio autor – podendo ser também o leitor. O livro é um monólogo instigante e cheio de desafios ao intelecto de quem tenta decifrá-lo. Uma sinfonia de palavras repleta de variações.

Há que se levar em conta o fato de Rosa ter sido poliglota. Ele deixou isso claro numa entrevista concedida a uma prima: “Falo português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente estudando-se por divertimento, gosto e distração”.

Não satisfeito com isso, e talvez por compreender profundamente a arquitetura das palavras segundo a lógica de vários povos e crenças, o autor se dava ao luxo de recuperar expressões esquecidas do nosso idioma e de criar neologismos. Um bom exemplo é o instigante Môimechego, nome de um personagem do conto Cara de bronze, no qual o autor brinca com significantes da palavra “eu” em diferentes idiomas: MOI-ME-ICH-EGO (francês, português, alemão e grego).

O escritor era fascinado pelo sentido oculto e primitivo das palavras. Sentido este esgarçado ou banalizado pelo uso ao longo dos tempos. Em correspondência com o tradutor alemão Günter Lorenz, chegou a comentar a etimologia do próprio nome, João Guimarães Rosa: “Weihs Mahr” = cavaleiro combatente ou cavalo de combate, passando a “Wimara” ou “Guimara”, forma primitiva de Guimarães.

Cavaleiro da Rosa

Rosa se identificou “Cavaleiro da Rosa do Burgo do Coração”, referindo-se à sua terra natal, Cordisburgo, na região central de Minas Gerais. O termo Cavaleiro da Rosa remete ao movimento esotérico Rosa Cruz e ao grau 18 da Maçonaria. O número em questão simboliza o indivíduo diante do infinito, representado por um oito deitado, símbolo presente nas ilustrações de Grande sertão por sugestão do autor ao ilustrador Poty. Se 18 representa o indivíduo, o 81 (número de nós do encordoamento que circunda o teto das lojas maçônicas) simboliza o infinito diante do homem que ultrapassou as fronteiras do autoconhecimento.

Os personagens rosianos não foram batizados aleatoriamente. Riobaldo, por exemplo, seria rio + aquele que governa; enquanto o nome Hermógenes significa filho de Hermes, o mensageiro de Zeus. Esse personagem lembra o Exu, mensageiro dos orixás, que assim como os anjos está acima do bem e do mal como instrumento da vontade de outrem, seja Deus ou o diabo. No estudo Bruxo da linguagem no Grande sertão (1), Consuelo Albergaria destaca a proximidade da obra com a mitologia, mas prefere associar o antagonista ao símbolo alquímico do mercúrio, elemento cujas propriedades derretem do ouro ao ferro.

Por seus nomes e características, os personagens de Rosa geralmente dão margem a diversas leituras. Talvez o mais intrigante de todos em Grande sertão: veredas seja Diadorim (“dada por Deus”). No livro O mundo movente de Guimarães Rosa (2), José Carlos Garbuglio enumera suas variantes para “traduzir” os significados: Dia + doron ou através + dádiva ou dom, o que não exclui a possibilidade de outros significados, tais como di (dois) + adorar, ou o duplo adorado. Ou ainda diá (através) + dor + in = por intermédio da dor, do sofrimento, da purgação.

Por outro lado, diá é também a primeira sílaba da palavra diabo. Ou dia + dor + in (sufixo indeterminado de gênero, índice da natureza indefinida do personagem). Grosso modo, diabo significa aquele que é dois. Esse é o número da confusão, pois tanto somado quanto multiplicado por si mesmo resulta em quatro. Na verdade, Diadorim chama-se Reinaldo (aquele que governa com o conselho), nome que esconde a verdadeira identidade de Maria Deororina da Fé Bettancourt Marins, filha de Joca Ramiro.

Trata-se, portanto, de personagem andrógino que, segundo Albergaria, assume a função de hierofante (guia espiritual do iniciado no seu rito de passagem). Por isso ela é sacrificada no final de jornada de Riobaldo, cuja preocupação com o pacto diabólico remete a Fausto de Goethe. Outra leitura nos permite dizer que Diadorim simboliza o Ying, enquanto Hermógenes seria o Yang. No duelo final, ambos se consomem como forças opostas e equivalentes que se anulam.

Além dos desenhos de Poty inspirados pelo autor, uma pista mais evidente do esoterismo em Grande sertão: veredas refere-se ao fato de os personagens principais adotarem três nomes ao longo do conto. Elevado a companheiro no bando de jagunços, Riobaldo é rebatizado Tatarana, ou Lagarta de Fogo. Promovido a chefe (ou mestre, segundo o rito maçônico), é renomeado Urutu Branco por sugestão de Zé Bebelo, que na verdade se chama José Rebelo Adro Antunes.

Significado místico

Adro, destaca Albergaria em seu ensaio, “confirma a hipótese de ser Zé Bebelo um chefe de terceira margem, o homem que chega ao limiar da chefia, mas sem conseguir transpor seus umbrais e terminar definitivamente sua luta”. No final da trama, ele se torna fazendeiro. Para ela, o São Francisco, que divide a paisagem do livro em duas margens (o Sertão e os Gerais = o caos e o cosmos), seria uma metáfora do rio da vida. Já o nome Adro indicaria a verdadeira condição de Bebelo, pois designa o espaço físico reservado aos pagãos nas igrejas antigas. Em grego, a palavra “bebeloi” significa profano.

A ensaísta chama atenção para o pentagrama, ou a estrela de cinco pontas simbolizada pelos cinco chefes de jagunços do romance: Joca Ramiro, Medeiro Vaz, Zé Bebelo, Hermógenes e Ricardão. Os dois últimos são os traidores (ou Judas) e, portanto, simbolizam a desarmonia, a divisão e o mal.

Segundo o Dicionário ilustrado de símbolos, de Hans Biedermann (3), “em geometria, o pentagrama é o pentágono regular estrelado. Como a estrela de cinco pontas pode ser construída por uma única linha fechada entrelaçada, os pitagóricos atribuíram-lhe um significado místico de perfeição, equilíbrio entre corpo e alma. Também recebeu nomes pejorativos, como pé de incubo, pegada da bruxa etc.”

“Nas seitas gnóstico-maniqueístas, cujo número sagrado era cinco, porque conheciam cinco elementos (luz, ar, vento, fogo e água), o pentagrama adquiriu um significado simbólico importante, o que influenciaria outras seitas e ordens iniciáticas”, acrescenta Biedermann. Trata-se de um símbolo de sentido dúbio. Com uma ponta para o alto simboliza o equilíbrio ou o bem encarnado, representado no Homem Vitruviano, de Leonardo Da Vinci. Para baixo, a ponta corresponderá à barbicha do bode, e as duas voltadas para cima seriam os chifres de Belzebu, podendo a estrela, nesse caso, trazer confusão e desordem.

Baphomet, o ídolo com cabeça de bode supostamente adorado pela Ordem dos Cavaleiros Templários, tem na testa um pentagrama com uma ponta para cima. E convém lembrar que os romances de cavalaria da Idade Média influenciaram sobremaneira a construção de Grande sertão: veredas, com destaque para Carlos Magno e os doze pares de França. Aliás, essa influência também foi determinante para que Miguel de Cervantes concebesse o clássico Dom Quixote.

Na Maçonaria, a estrela flamejante é o símbolo do companheiro (segundo grau da escala iniciática: companheiro = aquele com quem se divide o pão). Ela tem cinco pontas, sendo também conhecida como Selo de Davi, símbolo pitagórico de rituais de magia como o pentagrama de Agripa. Já o hexagrama (estrela de seis pontas que no Grande sertão será formada com a ascensão de Riobaldo ao status de chefe) corresponde ao grau de mestre, sendo também chamada de Signo de Salomão, rei dos hebreus construtor do templo de Jerusalém.

Visão caleidoscópica

Existem muitas leituras da obra de Rosa que apontam sua relação com diferentes tradições e ordens iniciáticas. Com visão caleidoscópica e holística, Consuelo Albergaria foi pioneira em olhar os ângulos dessa questão. No prefácio de Bruxo da linguagem no Grande sertão, Benedito Nunes afirma que ela recorre às doutrinas do Corpus Hermeticum e dos Mistérios da Antiguidade, às concepções gnóstico-cabalísticas, à Astrologia, à Alquimia, ao Taoísmo e ao repertório do Bramanismo, do Budismo e do Hinduísmo: “Consuelo nos mostra que essas fontes abastecem a metafísica da linguagem de Guimarães Rosa”.

A ensaísta também analisou o significado do nome Otacília, quanto às duas primeiras sílabas. “Parece-nos pertinente a ideia de que se trata simplesmente de um anagrama do Tao, sem maiores complicações”, afirma, lembrando que o Tao tanto pode se referir ao livro fundamental do Taoísmo, o Tao-té-ching de Lao Tsé, como também pode ser compreendido como doutrina filosófica definida. Rosa gostava da grafia de “sertão” sem o til, o que se vê na capa da tradução alemã: “Sertao” = “Ser Tao”.

Muitos outros estudiosos se esforçaram para decifrar o enigma rosiano. No livro João Guimarães Rosa: metafísica do Grande sertão (4), Francis Utéza afirma que “o interesse que Guimarães Rosa dava à metafísica é comprovado, em primeiro lugar, pelo seu engajamento maçônico, que remontava provavelmente à sua estada em Barbacena, em 1934, como deixa entrever a alusão feita no discurso de posse na Academia Brasileira de Letras: Barbacena, o nosso lugar geométrico”.

Utéza aponta várias “evidências” da iniciação maçônica do escritor, como aquela parte na qual Riobaldo afirma que Deus é paciência: “Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola”. Esse trecho alude, de certa forma, à pedra bruta, que deve ser trabalhada pelo aprendiz maçom na sua caminha rumo ao grau 33. No entanto, uma consulta junto às lojas maçônicas de Barbacena não revelou evidência de que o autor tenha sido iniciado na cidade. Apesar disso, o escritor maçom Manoel Lobato ressaltou que, ao conhecer Guimarães Rosa nos anos 1960, trocou com ele palavras e sinais da ordem.

Outro que escreveu sobre as ligações de Rosa com a Maçonaria é o poeta Hugo Pontes. No ensaio Guimarães Rosa, uma leitura mística (5), ele chama atenção para o fato de as palavras Grande e Sertão começarem com letras sagradas: G, de Grande Arquiteto do Universo, Geômetra ou God; e S de sabedoria, saúde e segurança, palavras proferidas no ritual chamado “cadeia de união”. Seria o V de Veredas uma referência aos chifres do diabo? Pontes também analisa o conto Recado do morro sob o prisma da astrologia, ligando nomes de personagens e de fazendas a corpos celestes. E ele não é o único a se basear no Zodíaco para tentar desvendar o “recado” da obra em questão.

Elementos da Cabala

Por sua vez, a professora Sílvia Meneses-Leroy, autora do ensaio A cabala do sertão em Grande sertão: veredas (6), apontou elementos cabalísticos na obra de Rosa. O mesmo fez o médico e psicólogo José Maria Martins, com relação à Alquimia, no ensaio Guimarães Rosa: o alquimista do coração (7). E assim, 65 anos depois de sua primeira publicação pela Editora José Olympio, Grande sertão: veredas é uma obra seminal, aberta e instigante, que permite diversas leituras sob os mais diferentes prismas da compreensão.

No aspecto místico de sua obra-prima, a palavra final é do próprio Guimarães Rosa: “Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é a chamada ‘realidade’, que é a gente mesmo, o mundo, a vida”. Para ele, “o idioma é a única porta para o infinito”.

Sobre o lado mágico da existência, o escritor, que também foi médico e diplomata, dizia: “Minha vida sempre e cedo se teceu de sutil gênero de fatos. Sonhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos… Sou um contemplativo fascinado pelo Grande Mistério”. A respeito de sua obra-prima, confessou no prefácio Sobre a escova e a dúvida, em Tutameia: “Quanto ao Grande sertão: veredas, forte coisa e comprida demais seria tentar fazer crer que foi ditado, sustentado e protegido – por forças ou correntes muito estranhas” (8).

Bibliografia:

  1. ALBERGARIA, Consuelo. Bruxo da linguagem no Grande sertão. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1977.
  2. GARBUGLIO, José Carlos. O mundo movente de Guimarães Rosa. São Paulo, Ática, 1972.
  3. BIEDERMANN, Hans. Dicionário ilustrado de símbolos. Tradução: Glória Paschoal de Carvalho. São Paulo, Melhoramentos, 1994
  4. UTÉZA, Francis. João Guimarães Rosa: Metafísica do Grande sertão. São Paulo, Edusp, 1994.
  5. PONTES, Hugo. Guimarães Rosa, uma leitura mística. Poços de Caldas, Gráfica Sulminas, 1998.
  6. MENESES-LEROY, Silva. A Cabala do sertão em Grande sertão: veredas. Lisboa, separata das “Actas do terceiro congresso” da Associação Internacional de Lusitanistas.
  7. MARTINS, José Maria. Guimarães Rosa: o alquimista coração. Petrópolis, Vozes, 1994.
  8. Vários autores. Cadernos de literatura brasileira – João Guimarães Rosa. São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2006.

. Texto publicado no caderno Pensar do Estado de Minas, no Correio das Artes da
Paraíba e republicado em versão atualizada no Dom Total, em 2021.

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