Jorge Fernando dos Santos

Entrevistas

Jorge Fernando dos Santos

SUMÁRIO

Ao longo de três décadas de atuação no jornalismo, principalmente como colunista, repórter e editor de cultura no jornal Estado de Minas (EM), entrevistei muitas personalidades do mundo artístico. Algumas famosas, outras nem tanto. Foram longas matérias, muitas das quais se perderiam no limbo, não fossem guardadas no meu arquivo.

Como escreveu certa vez o jornalista e escritor Humberto Werneck, “nada mais velho que o jornal de ontem”. Essa constatação foi o que me levou a reunir artigos da coluna Teatro Vivo na coletânea Teatro Mineiro – Entrevistas & críticas, publicada em 1984 pela Imprensa Oficial de Minas Gerais.

Desde aquela época, desejei publicar uma coletânea de entrevistas. Não apenas com personalidades das artes cênicas, mas também da música e da literatura. Contudo, não foi fácil selecionar as principais matérias desse tipo, uma vez que perdi a conta de quantas fiz, algumas das quais nem tive o cuidado de guardar.

Para organizar a presente coletânea, optei por 33 entrevistas no formato pingue-pongue (perguntas e respostas). Acredito que cada uma delas possa dimensionar a importância do depoente na cena cultural de nossa era. Muitas dessas matérias estão interligadas, uma vez que os personagens se conheceram e, em muitos casos, atuaram juntos em algum momento de suas vidas.

Para minha surpresa, tantos anos depois, boa parte desse conteúdo continua atual, uma vez que o Brasil e o mundo mudaram bem menos do que gostaríamos nas últimas décadas. Torço para que o leitor tire proveito, refletindo sobre os temas abordados.

Entrevistei o compositor carioca Aldir Blanc em 2001, por telefone. Publicada no Estado de Minas num domingo, 13 de maio, a matéria foi intermediada por seu parceiro Moacyr Luz. Para um sujeito pouco dado a entrevistas, Aldir me tratou com a maior fidalguia e surpreendente objetividade. Respondeu a todas as perguntas, falou do seu método de trabalho e esclareceu o motivo da interrupção da parceria com João Bosco, que seria retomada pouco tempo depois.

Ourives da canção

João Bosco, César Costa Filho, Maurício Tapajós, Raphael Rabello, Ivan Lins, Edu Lobo, Paulo César Pinheiro, Cacaso, Suely Costa, Paulo Emílio, Gilson Peranzzetta… Eis alguns dos nomes que compõem a imensa galeria de parceiros de Aldir Blanc. Letrista dos mais inspirados da canção nacional, coautor de clássicos como O bêbado e a equilibrista, Kid Cavaquinho, Dois pra lá, dois pra cá, Catavento e girassol, Saudades da Guanabara e a emblemática Orassamba (carro-chefe do CD Cine baronesa, do violonista Guinga), ele é sinônimo de boa técnica, muito talento e extremo bom gosto musical.

No momento da entrevista, Aldir prepara seu primeiro songbook, reunindo cerca de 40 partituras. O autor trabalha também no seu primeiro romance policial, ainda sem nome, escrito sob encomenda para a Coleção Negra, da Editora Record. No rastro das comemorações dos seus 50 anos, que resultaram num CD autoral com participações especiais, publicou os livros Tá tudo misturado e Um cara bacana da 19ª.

Nascido no Estácio, em setembro de 1946, filho de seu Ceceu e Dona Helena, Aldir está no segundo casamento, tem quatro filhos e quatro netos, formou-se em Ciências Médicas para agradar o pai e exerceu a Psiquiatria durante algum tempo. Vascaíno doente, passou a vida toda na zona Norte do Rio. Ninguém na família era músico, mas uma avó tocava piano de ouvido. “Uma coisa muito simples, aquele piano de domingo”, comenta.

Ter acompanhado a avó Noêmia às sessões de Umbanda também o influenciou nos rumos da música. “Eu ficava fascinado com os ritmos e fazia tambores de lata quando chegava em casa”, recorda. Em 1963, organizou o Rio Bossa Trio, depois do chamado GB-4. As primeiras parcerias foram feitas com Sílvio Silva Jr. (entre elas a obra-prima Amigo é pra essas coisas) e César Costa Filho (Mirante e De esquina em esquina), que fundaram com ele o MAU (Movimento Artístico Universitário).

No início da década 1970, Aldir conheceu o mineiro João Bosco, com quem compôs cerca de 100 canções, as mais conhecidas imortalizadas na voz de Elis Regina. Foi o caso de Agnes sei, lançada pelo próprio João num compacto simples distribuído pelo jornal O Pasquim. Do outro lado estava a primeira gravação de Águas de março, com Tom Jobim. A partir dos anos 1980, o poeta se tornou parceiro de Moacyr Luz, Guinga, Jayme Vignoli, Cristóvão Bastos, Ed Motta e outros bambas.

Numa conversa afiada, sem se esquivar de nenhuma pergunta e sem aceitar interrupções, Aldir Blanc abre o verbo e o coração, falando por telefone direto de seu apartamento na Tijuca, Rio de Janeiro. Definindo-se como um “profissional da canção”, o compositor e cronista não gosta de perder tempo, embora nunca force a barra para criar suas letras. Espera sempre o momento exato em que a inspiração baixa, feito santo em terreiro de Umbanda.

Em que pé está a edição do seu songbook?

– Quem está organizando na verdade é o Roberto Moura, da Editora Irmãos Vitale. Não é um songbook completo. Escolhemos mais ou menos 40 músicas, as que eu acho que representam melhor a minha carreira. Não importa que tenha uma música conhecidíssima que eu fiz com o João Bosco ou uma desconhecida feita com o Jayme Vignoli, do grupo Água de Moringa. Usamos o critério da antologia pessoal. Devo ter umas 300 músicas, sem contar as inéditas e as que estão para letrar.

Você também compõe sozinho. Essas músicas vão estar nesse livro?

– Eu devo ter feito umas 20 músicas sozinho. Algumas são muito importantes pra mim. A essa altura do campeonato, não sou eu quem vai julgar se a obra tem importância ou não. Mas eu quero que ela apareça como de fato foi feita. Então, me importa dizer que sou o autor das melodias e das letras de duas composições que foram fundamentais pra mim: O mestre-sala dos mares e O rancho da goiabada. Depois de eu cantarolar em fita a música e a letra é que o João colocou a harmonia, dando aquela feição mais acabada. Inclusive aquela introdução de O rancho da goiabada, muito elogiada pelo Radamés Gnattali e que algumas vezes é atribuída ao João, é uma introdução que eu cantarolei na fita. Só nas comemorações em torno dos meus 50 anos é que contei à imprensa que eu era o autor dessas melodias. No primeiro momento, isso magoou o João, o que é compreensível. Depois ficou tudo claro, que eu só queria separar as coisas. As outras são todas melodias feitas pelo João.

Como é o seu método de trabalho?

– Em mais de 80 por cento dos casos eu coloco a letra em cima da música do parceiro. Procuro respeitar nota por nota. Há casos de compositores como o Guinga, por exemplo, que não admitem que se mexa numa só nota da melodia. É um trabalho difícil. Como técnica de trabalho, se não estou apertado pelo prazo, prefiro ouvir e reouvir. Deixo entrar em água, até que num momento mais absurdo, quando estou na rua ou num táxi, vou letrando na cabeça, sem papel e sem o gravador por perto. É uma experiência fascinante. E é até por isso que eu acho que muitas vezes isso é atribuído a experiências místicas – embora eu não acredite nisso absolutamente – tamanha a velocidade com que a coisa se processa. Lembro que com Dois pra lá, dois pra cá fiquei aterrorizado por letrar tudo sozinho, a caminho de casa, com medo de esquecer.

Você tem uma precisão incrível nas letras. Como é trabalhar isso com um músico com a sofisticação do Guinga, por exemplo?

– Essa proximidade com aquilo que o outro quer e a capacidade de dividir muito rápido as notas, de fazer letra imediatamente e não ter dúvidas de que ela obedeceu à notação… Atribuo tudo isso à experiência muito longa de ritmo. Aprendi violão de letrista, que é aquele violão que o pessoal chama de boca-de-tigre. Mas toquei bateria profissionalmente durante anos. E fui o cara da tumbadora do grupo do João Bosco.

Quais foram suas influências musicais?

– Bem no comecinho, foram os pontos de Umbanda. Depois mudei pra Maia Lacerda, onde havia bloco de rua, e fiquei fascinado com aquilo. Comecei a frequentar o Salgueiro e essa foi uma influência determinante. Na mesma época, misturada com o samba de quadra, surge a Bossa Nova, com um cara influente que é o Vinicius de Moraes. No trabalho como baterista, tive contato com outros ritmos. E havia aqueles trios de jazz…

Uma das suas filhas está seguindo seus passos. Como você vê isso?

– Mariana Blanc fez uma música comigo, uma com o Guinga… Ela já fez parcerias com vários compositores. Vejo isso com certa preocupação, porque direito autoral é fogo. É uma coisa de maluco. Eu fiz esse sucesso nacional aí, Resposta ao tempo (com Cristóvão Bastos), e num dos pagamentos recebi mais num mês por uma música de um festival internacional da canção de 1968 do que pelo sucesso que tocava no país inteiro.

Você sempre lutou pelos direitos autorais. Como está esse trabalho hoje?

– Depois que eu sofri um acidente de carro em que arrebentei a perna esquerda – tenho placa e parafusos, ganchos no fêmur –, eu parei um pouco. Fiquei meio devagar e parei de ir àquelas reuniões em que se falam aquelas mesmas coisas. Tem um problema estratégico, porque o pessoal em que eu confio, o pessoal da Amar (Associação de Músicos Arranjadores e Regentes), Paulo César Pinheiro, Ney Lopes e outros criticam, mas não descartam o Ecad (Escritório de Arrecadação de Direitos Autorais). Eu me enchi do Ecad. Apoio meus colegas, mas sou uma espécie de dissidente. Em certos pontos a coisa avançou, porque antigamente pagavam o que queriam. Lembro que o João Nogueira foi cobrar e ameaçaram jogá-lo escada abaixo. A coisa agora é muito mais light, mas ainda é frustrante. O direito é muito mal pago, é mal arrecadado e não se consegue credibilidade para trazer o dinheiro do exterior, porque isso é usado como caixa dois.

O Guinga me disse que você está escrevendo um livro

– Eu estou vivendo um momento muito interessante. A Luciana Villas-Boas (diretora da Editora Record) me encomendou um livro para a Coleção Negra. É uma experiência fascinante, porque não acabo de escrever. A gente faz uma referência, compra um livro, entra na internet, manda vir um livro dos Estados Unidos… Já estourei o prazo duas vezes. É uma história toda passada na Tijuca. O crime é menos importante do que o rodo que eu vou passar no chamado “tijucano espada”.

Do seu ponto de vista, como vai a MPB?

– Vai muito bem. Ontem mesmo recebi da Lua Discos os CDs do Guilherme de Brito, Jards Macalé e Casquinha. Então, onde está a famosa crise? Na semana passada, recebi os discos do Cláudio Jorge e do Guinga. Um pouco antes, recebi o CD do Elizeu do Rio, que ninguém conhece e é brilhante. Recebi também o disco do Marquinho de Oswaldo Cruz. Enquanto isso, sai a caixa do Noel, a caixa do Caymmi… Sai o disco e o livro do Ney Lopes, que tem uma produção espantosa. O Wilson das Neves está de volta ao estúdio. E sai também a coleção espantosa do SESC de São Paulo, com os programas do Fernando Faro. Saiu agora a caixa da Clementina, que infelizmente não vai ser comercializada, mas os discos serão vendidos separadamente. Fico impressionado como a gente reclama. A única coisa de que podemos falar de barriga cheia é de música. Saiu o disco que eu considerei o melhor dos últimos anos, do Hamilton de Hollanda e Marcus Pereira, A luz das cordas. Um disco independente e assombroso.

Como foi que acabou sua parceria com o João Bosco?

– O João para de cantar as letras, começa a usar onomatopeias, vai aos shows e dá interpretações próprias às letras. Talvez, inconscientemente, por ciúmes das risadas do público, pois modéstia à parte eu sempre provoquei a empatia da plateia. As letras que eu fiz ficam inaudíveis, ou ficam camufladas ou nem são cantadas. Como isso foi acontecendo, eu fui me afastando. Falam numa briga estratosférica, quando na verdade o que aconteceu foi uma coisa assim… Eu parei de ir lá. Passamos a nos falar uma vez por semana ao telefone, ou às vezes nem isso, até sumir e nem notamos o processo. Um ano depois, nos reunimos com um procurador por conta de um problema do exterior, que não conseguimos resolver, não por culpa nossa, mas de uma arrecadadora na França, e ficou por isso mesmo.

Você é aberto a novas parcerias?

– É claro. Tenho uma música aqui, que é um bolero do Elton Medeiros, que estou doido pra fazer. Tenho uma com o Ney Lopes e estou doido pra fazer mais. E tem dois compositores de samba com os quais estou conversando muito, gostaria muito de ser parceiro deles: o Zé Luiz, parceiro do Ney na ala de compositores do Império Serrano, e o nosso querido Zorba Devagar, um parceiro de Paulinho da Viola, lá de Botafogo. Estou acreditando muito também na parceria – já fizemos muitos sambas – com o Sombra, irmão do Sombrinha, da dupla Arlindo e Sombrinha.

Sua obra musical está cheia de citações, o que demonstra que você é um grande leitor.

– Leitura pra mim não é só prazer, é meu hobby, é meu tranquilizante. Eu devo ter aqui uns 15 mil livros. Se você quer me ver feliz é me ver num sebo. Ainda há pouco eu estava acertando um lote de policiais com o sebo Berinjela, que chegou e o cara ligou pra mim. Fiquei louco, tive vontade de pegar um táxi e ir atrás. O Roberto Moura diz que se eu sair com a cara inchada pra ir ao dentista, eu passo na livraria e volto pra casa com a cara inchada.

Você pensa em se lançar também como intérprete?

– A Lua Discos gostaria que eu gravasse um disco cantando os sambas que não gravei, que ficaram na gaveta. É o caso, por exemplo, de um samba que fiz com o Jayme Vignoli, chamado Primos entre Si, sobre os primos do Ney Lopes. Só que a letra assusta, tem quase 80 versos e ninguém grava. Estou pensando com muito carinho nesse disco.

*Morreu no Rio de Janeiro, em 2020.

Affonso Romano de Sant’Anna o considerava “um fenômeno poético”. Ziraldo, por sua vez, afirmou que se “Adélia Prado faz seus poemas para não enlouquecer; Altino faz os seus porque é completamente louco”. Esses dois comentários ilustram o prestígio do poeta erudito que assinava Leão de Formosa. Feita por correspondência, tendo como emissária atriz mineira Maria Olívia, a entrevista foi publicada no EM numa quarta-feira, 22 de maio de 1991.

A poética do Leão de Formosa


“Pastor do Espanto”, assim o poeta Altino Caixeta de Castro, também conhecido como Leão de Formosa, se auto define. Às vésperas de completar setenta e cinco anos, ele é o tema do Suplemento Literário Especial do Minas Gerais, que será lançado no próximo sábado, às 18h, no Social Clube Caiçaras de Patos de Minas, cidade onde reside.

Nascido em 1916, em Lagoa Formosa, MG, Altino Caixeta de Castro estudou no Ginásio Dom Lustosa, em Patrocínio. Começou a publicar seus escritos justamente nessa época, como redator do jornalzinho O Ideal. Mais tarde diplomou-se farmacêutico bioquímico pela Escola de Odontologia e Farmácia da UFMG. Colaborou na imprensa de Patos de Minas, estudou gramática histórica, português e latim. Exerceu o comércio de remédios, mas, a exemplo do farmacêutico Carlos Drummond de Andrade, preferiu “drogar-se” com os versos. Mesmo fazendo parte de uma academia e de um grêmio de trovadores, sempre se orgulhou do seu quase ineditismo. Cidade da rosa: com fissão da flor (1980) é praticamente sua única publicação em livro.

Avesso à autodivulgação e à fama literária, o poeta viu sua obra ultrapassar as fronteiras de Minas. No lançamento de sábado, estarão presentes autores como Fábio Lucas, Ziraldo, Alan Viggiano, Duílio Gomes, Antônio Barreto, Pontes de Paula Lima e Antônio Sérgio Bueno, mineiros que a seu exemplo tiveram a obra reconhecida em todo o Brasil. Outra presença anunciada é a secretária de Estado da Cultura, Celina Albano. Em entrevista exclusiva ao EM – intermediada pela atriz Maria Olívia, incansável divulgadora de sua obra –, Altino nos fala sobre Deus, vida e poesia.

Quando foi que você começou a escrever e qual a sua motivação?

– Comecei na Fazenda do Campo da Onça, quando nem tinha idade. Decorei os versos de um soneto de Augusto dos Anjos (“O homem é triste/ Sobre todos os séculos existe/ E jamais seu pesar se apaga”) que encontrei num almanaque de farmácia. Foi meu primeiro deslumbramento poético: li e antili o poema. Mas não lembro do primeiro verso que escrevi. Sei que o último ainda não foi escrito no poema universal do homem. Nem Shiller, nem Goethe, nem Dante estavam contentes com o último verso. Nem Keats, que disse: “se eu vivesse mais, me tornaria mortal”.  Beleza seria uma doença do poeta? A ostra cria a pérola para distrair-se do mar; o poeta cria a beleza para distrair-se do efêmero; só Deus cria a rosa para distrair-se do eterno. A criação literária deve estar envolvida num pathos. Escrever ou morrer? Dizia Rilke: “as palavras ainda precisam de ti”.

Quais as influências recebidas e quais os seus autores prediletos?

– Recebi influências de Tagore, Raul de Leôni, Daudet, da Bíblia, de Borges, Scholem Asch, Éxupery, Emily Dickinson e dos poetas do Êxodo. Além desses, meus poetas prediletos são T. S. Eliot, Pound, Cabral, Octávio Paz, Chardin, Barthes, Vargas Villa e o filósofo Heidegger. Em Introdução à metafísica, aprendi que o “admirável” poeta é o “pastor do ser” e a poesia “mera realização do ser pela palavra”… Com Costa Axelos e Heidegger aprendi os caminhos eidéticos do campo e as errâncias da rosa. E com a Crítica pura, de Henrique Abílio, aprendi o valor da manipulação das estesias.

Por que sua obra ficou inédita por tanto tempo?

– Porque a vigília da escritura me obriga a permanecer no inédito, que já fazia parte da minha “libido scribendi”.

Como você vê a poesia que se faz hoje no Brasil e no mundo?

– O Brasil é um país de poetas, de poetas, de poetas. Vejo a poesia brasileira de hoje sempre melhor, procurando sempre novos caminhos. A semiótica de Pierce, a escritura de Barthes, o “new cristicism” de Elliot têm adentrado e influenciado a produção poética contemporânea, o que só valoriza o poema e o poeta. Belas traduções feitas hoje no país também são responsáveis pelo enriquecimento do gosto e da lírica dos nossos poetas.

Em sua opinião, para onde caminha a poesia e a literatura como um todo?

– Respondo com Pangloss: caminha cada vez no melhor dos mundos possíveis. A “crise” não detém a pena do poeta.

Qual é a sua visão de Deus, da morte e a que se destina a vida?

– A visão de Deus deve ser para um místico, um teólogo, um santo, que nem sempre a alcançam. A minha vida é profundamente limitada, apenas dentro do fenômeno humano. Vivo a vida com a visão ou com a cosmovisão de um poeta. “No horizonte que se afasta pela esfera… numa eterna esperança que se adia”, apenas. Não sou necrófilo. Sou mais um biófilo. Não estou com os destruidores do mundo. Não indago se a vida tem um destino, mas não sou estoico.

E como você vê o Brasil de hoje, de ontem e de amanhã?

– Só uma palavrinha faz o avanço dos povos: cultura. Cultura e educação. Tecnologia também. Só se obtém tecnologia com educação e cultura. Enquanto o Brasil não se alfabetizar e não ficar por dentro das tecnologias de ponta, ele não será nem de ontem, nem de hoje, nem de amanhã. Creio que, com coragem (de ser), esforço e trabalho organizado poderemos deixar o tacape… ainda…

Qual é a expectativa que o poeta Leão de Formosa tem sobre o que escreve?

– Não tenho expectativas sobre o que escrevo ou escreverei. Permaneço, apenas, na vigília da escritura. Parafraseando Machado de Assis, “se tenho pensamentos poéticos formulados são pensamentos idos e vividos”.

Deixo uma questão aberta para o poeta falar o que quiser ou para dizer quem é Altino Caixeta e o Leão de Formosa?

– Uma obra poderá ser aberta, mas não será uma questão aberta, porque a arte no homem poderá adquirir dimensões inesperadas, antes, durante e depois do “cerimonial” (como eu já disse num poema); antes do nascer da estátua promanam os prenúncios da forma: “é o cerimonial da arte”. Já minha biografia é pobre e não tenho biografia. Filho de Leão Teotônio de Castro, camponês, e Júlia Fernandes Caixeta, camponesa, dona de rebanho de carneiros, nasci em Lagoa Formosa de Patos de Minas. Daí o meu pseudônimo. Sou casado com Alfa Amorim de Castro, tenho três filhos e dois netos. Sou farmacêutico, mas fiquei drogado com a literatura.

*Morreu em Patos de Minas, em 1995.

Entrevistei esse grande ator brasileiro duas ou três vezes, por ocasião das apresentações de sua companhia teatral de repertório em Belo Horizonte. A conversa aqui registrada girou em torno de duas peças protagonizadas por ele e de outros temas importantes, como a paixão pelo palco, o trabalho na televisão, os desafios do cinema nacional, a ação da censura e a realidade política do país naquele momento. A matéria foi publicada no EM de sábado, 15 de setembro de 1984.

Teatro à flor da pele

 

Fagundes Produções Artísticas traz a Belo Horizonte duas peças: Morte acidental de um anarquista, de Dario Fo com direção de Antônio Abujanra, e Xandu Quaresma, de Chico de Assis com direção de Adriano Stuart. Ao lado de grande elenco, o astro é Antônio Fagundes. Ele começou no antigo Teatro de Arena, em 1966, com Farsa de cangaceiro com truco e padre, de Chico de Assis. Depois fez Arena conta Tiradentes, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri; O círculo de giz caucasiano, de Bertolt Brecht; A receita, de Jorge de Andrade; e Verde que te quero verde, de Plínio Marcos.

Fagundes também se destacou no monólogo Muro de arrimo, de Carlos Queiroz Telles; Gata em teto de zinco quente, de Tennessee Willians; A história é uma história, de Millôr Fernandes; e O homem elefante, de Bernard Ponerance. Faz televisão há vários anos, atuando em novelas e minisséries da Rede Globo, como Carga pesada, ao lado de Stênio Garcia, na qual também se exercita como autor. Trabalhou ainda no cinema, com destaque para os longas-metragens Pra frente, Brasil, de Roberto Farias, e A próxima vítima, de João Batista de Andrade.

Como é pra você o teatro como instrumento de emoção?

– No teatro você está vendo o ator ao vivo, transpirando na sua frente e num esforço de comunicação direta. E aquilo que você está vendo ninguém mais vai ver, nem ele, mesmo no dia seguinte. É uma coisa que não se repete porque acaba ali. Tem uma definição que o Carlito Maia deve ter tirado de algum lugar, mas que é fantástica: “o ator é aquele que é capaz de ir até o fim da linha a cada dia onde a plateia leva uma vida inteira pra percorrer”. Isso daí é a definição de emoção do Carlito Maia. Essa emoção existe no teatro. E ela existe também no cinema, com a diferença de que no cinema você fez aquilo e está pronto. Você não repete. Mas há uma emoção também, só que você fez, está registrado e cristalizado o momento mágico da criação. O ator geralmente se refere ao teatro com um carinho maior. Ele geralmente diz que prefere o teatro. É fácil de explicar, pois é no teatro que o ator aprende e lá ele pode descobrir os seus limites. É no teatro que ele se exercita e tem a resposta imediata do seu trabalho.

E na televisão, como se dá esse processo?

– A televisão tem o corte. Tem-se dois atores conversando, a imagem pula de um para o outro de acordo com a vontade de uma série de técnicos que estão trabalhando juntos com esses atores. No teatro quem faz esse corte é você. Isso quer dizer que o ator tem que estar inteiro o tempo todo. Qualquer momento pode ter uma pessoa na plateia que esteja olhando pra ele, embora ele não esteja falando.   

Você sofreu um arbitrário corte da censura quando atuava na série Amizade colorida, da Rede Globo. Como você vê a censura? Ela aumentou ou diminuiu com a abertura política?

A censura nunca para de atrapalhar. A própria existência da censura é uma coisa que atrapalha, mesmo que ela não funcione. Só o fato de você saber que a qualquer momento um determinado departamento pode proibir milhões de pessoas de assistirem qualquer coisa… E aí eu acho que a entrevista devia ser feita com esses cento e trinta milhões de pessoas que não puderam ver o nosso trabalho.

E simplesmente chegam e tiram o programa do ar assim…

– É, chegaram e tiraram do ar. Geralmente é simples assim. 

Dá pra falar um pouco sobre A morte acidental de um anarquista?

É um espetáculo que a gente está cada vez mais emocionada com ele, porque já faz dois anos que estamos fazendo. Nós já tivemos mais de seiscentos mil espectadores e é uma peça que atinge esse público. O público se identifica com ela por diversas razões. É um espetáculo bem cuidado. O cenário é o mesmo de São Paulo. Não há nenhuma adaptação. O elenco é o mesmo, com exceção da Monaliza. É uma comédia muito engraçada e que fala de problemas sérios, mas de uma forma que não é sisuda. Fala da repressão, fala da posição do estado na sociedade. É um texto completo, porque tem diversos níveis de leitura.  

Você faz televisão, cinema, teatro, comerciais. Como é que você vê toda essa gama de atividades artísticas?

A televisão não é arte, é um veículo de comunicação. Fica difícil a gente falar do teatro porque naturalmente você tem o seu enfoque. E, pra nós, se a gente fosse falar, o nosso ponto de vista é o de que o teatro está maravilhoso. Nós estamos há dois anos fazendo um trabalho estupendo e com resposta absoluta de público. Mas isso não se aplica a todos os grupos. O cinema está passando por problemas gravíssimos, inclusive com a diminuição de público. Os cinemas estão fechando devido a isso e às medidas tomadas pela indústria cinematográfica norte-americana, que vão fechar mais de setecentos cinemas aqui. Paralelamente a isso, o custo de um filme nacional está subindo cada vez mais. O custo sobe de acordo com o preço do dólar, pois o material é importado e o cinema não tem nenhuma regalia do Estado. O filme é comprado com todos os impostos em cima e é todo feito nos Estados Unidos. Então, o cinema está mal do ponto de vista financeiro. Mas a gente está vendo aí um Memórias do cárcere sendo feito, um Pra frente Brasil sendo feito, um A próxima vítima sendo feito… Tem aí uma série de filmes de excelente qualidade e com resposta do público que só não é maior porque o cinema está sozinho e entregue à iniciativa privada.

Como é que você está vendo o Brasil nestes últimos tempos?

Estou vendo mesmo. Está todo mundo de espectador. A gente está vendo há muito tempo. Não estão deixando a gente fazer outra coisa e a gente vê, né?

Mas você acha que tem saída para o que está aí? Para o que fizeram com o nosso país?

– Se a gente continuar só vendo, não.

Você participou do comício pela volta das eleições diretas? Em quem você votaria hoje para presidente da República?

– Eu não participei… O meu voto seria em branco.

Essa posição é para corresponder ao título da peça atual ou é por que os candidatos que estão aí não correspondem aos seus anseios?

– Eu acho que as duas coisas servem nesta hora.

Voltando ao teatro, como tem reagido o público das diversas regiões do país?  

– Bem, eu acho que a crítica não existe. Não tivemos críticas em nenhuma cidade, com exceção de Porto Alegre. A diferença é muito grande, principalmente no norte-nordeste. A gente sente que o público de lá é menos habituado com o teatro e menos informado. É mais difícil a gente se relacionar com esse público do que com o de Belo Horizonte, onde têm grupos estáveis de teatro e aonde as companhias vêm com mais frequência. Mas no Brasil nós não temos um público de teatro. A composição do público, mesmo em São Paulo, é de difícil determinação. É uma plateia muito mistura.

Você acha que existe uma crise no teatro?

– Eu quero lembrar o Ernesto Sábato. Ele se referia à literatura, mas dá para se usar para o resto: “vida é crise”. Se você não estiver em crise, você não consegue caminhar. A arte, como documento e registro da vida, tem que estar em crise, senão morreu, porque existe a continuidade. Se você disser que realizou o trabalho da sua vida, você morreu.

A novela Champagne deu problemas com os advogados. Como foi isso?

– Aqui em Minas, principalmente. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Minas Gerais disse que advogado não faz aquilo que tá na novela. E eu acho que foi um lamentável erro da OAB se manifestar contra a novela das oito num momento em que o país tem coisas gravíssimas para serem discutidas. Eu acho que o que menos interessa é como se comportado o personagem José Maria, da novela das oito. Eles estavam discutindo o fato da televisão estar divulgando uma imagem errônea de uma profissão liberal. Aí é uma idiotice, porque se for assim você não pode escrever nenhuma história. É um tipo de censura muito mais violeta, porque tem ares de moralismo, tem ares de verdade, de justiça. Quando a gente sabe que, mesmo sendo uma profissão respeitadíssima, têm advogados que matam, tem advogados que roubam, tem advogados que são seres humanos. Aquilo não quer dizer que todos os advogados roubam ou que todos sejam ladrões. E também não interessa esse tipo de discussão, porque é uma besteira.

Como anda a dramaturgia brasileira, do seu ponto de vista?

– Está parada mesmo. A própria televisão contribuiu para deslocar os seus autores. Os autores de televisão são dramaturgos conceituados. O que é um erro deles, inclusive financeiramente, porque uma peça de sucesso pode dar para um autor uma retirada que nenhuma televisão poderia dar. Mas, fora isso, existe o problema que, durante os últimos anos, a dramaturgia foi reprimida de todas as formas. O autor brasileiro começou a falar por parábolas e foi um longo exercício pra driblar a censura. De repente, foi dito que era possível escrever sobre a realidade brasileira e toda vez que alguém acreditou nisso foi proibido. E a nossa realidade está sofrendo mudanças muito rápidas. O dramaturgo tem que parar e pensar muito antes de escrever, porque no dia seguinte a coisa já não é do jeito que ele escreveu.

Finalizando, como é viajar com dois espetáculos num programa de teatro de repertório?

– São quatro caminhões de cenário, dezoito pessoas na equipe e nenhuma ajuda do Estado. Respondi? Mas tem sido muito bom. Quer dizer, o Estado pode não ajudar, mas aquele que financia o Estado, que é o público, está indo nos ver.

Um dos momentos mais emocionantes da minha curta carreira de crítico teatral foi o encontro que tive com a grande dama do teatro brasileiro. Bibi era exemplo de artista, pois dedicou sua vida aos palcos. Embora tenha feito televisão algumas vezes, sempre teve no teatro sua profissão de fé. Interpretou grandes papéis, inclusive em musicais festejados pela crítica. Sua entrevista foi publicada no sábado, 19 de maio de 1984, na coluna Teatro Vivo do EM – ao lado da crônica de Carlos Drummond de Andrade.

Conversa amena com a grande atriz


Não, Bibi Ferreira não é apenas mais uma estrela do teatro nacional, mas, ao lado de outras poucas de brilho maior, ela forma a mais importante constelação dos palcos brasileiros. Considerada a maior show woman do país, praticamente nasceu no palco. Filha do grande ator Procópio Ferreira, contracenou várias vezes com ele e depois organizou sua própria companhia, percorrendo todo o país. Daquela época, a peça mais importante foi Senhora. Seguiu para Portugal, onde ficou por vários anos, participando dos melhores espetáculos lusitanos e fazendo cursos de aperfeiçoamento.

De volta ao Brasil, Bibi fez My fair lady, ganhando o prêmio de melhor atriz. Fez shows e especiais de TV e sua mais recente vinda a Belo Horizonte foi em Gota d’água, do marido Paulo Pontes e Chico Buarque, interpretando a protagonista Joana. Agora ela está de volta, sob a direção de Flávio Rangel e ao lado de grande elenco, no musical Piaf, em cartaz no Palácio das Artes. Muito gentil e sempre sorridente, Bibi exala uma forte energia. Na noite de quinta-feira, ela ensaiava algumas canções da peça. Depois de vestir-se de Piaf, maquiou-se, recebeu os jornalistas no próprio palco, retornou aos ensaios e estreou com o sucesso de sempre.

Vamos começar com uma pergunta de praxe: o que é o teatro pra você?

– O teatro não é nada de invulgar para mim como não é nada de invulgar perguntar para um médico o que é a medicina. É porque ele tem vocação, gosta daquilo, ama aquilo e faz aquilo profissionalmente. Para mim, o teatro é a minha carreira. Uma carreira que eu respeito, que já vem de meu pai e que eu amo.

Você já nasceu com esse amor?

– Aprendi a amar, porque eu não ia fazer teatro. Eu nasci e aos vinte e quatro dias eu já estava no palco. E, por termos uma família muito grande, tudo artista vindo de circo, toda a minha família era de artistas, conforme escrevi no programa de Piaf. Então, de um picadeiro para o palco, de um palco para… Veja só o cenário de Piaf. Justamente parece um circo, não é? Um picadeiro.

Uma arena…

– Não deixa de ser. Então, eu nasci e sempre vivi nisso e se renasci algumas vezes eu sempre nasci aqui dentro. O teatro, para mim, é a minha carreira, a minha profissão que aprendi a amar, porque logo que deixei o colégio e me perguntaram “o que é que você vai ser quando crescer?”… Eu não tinha muito a ideia de ser atriz de teatro. Eu pensava no picadeiro, mas não como teatro, a arte de falar. O atleta da palavra, como eu costumo dizer. Eu pensava mais como parte musical da vida, que eu fosse pra qualquer coisa de música.

Sua vontade, então, era mesmo ser cantora?

– Podia ser regência, podia ser orquestração, podia ser talvez solista, porque eu toco alguns instrumentos. Quer dizer, eu tocava instrumentos direitinho quando era mocinha, porque eu os tocava frequentemente e aí você tinha a técnica pra chegar a uma música até o fim. Eu hoje toco um piano que não consigo chegar à segunda página inteira, porque os dedos não dão conta, não tenho mais o dedilhado, a prática e o mecanismo do instrumento. Hoje, o meu instrumento é todo vocal.

E você se dedicou mais ao teatro…

– Mas que talvez tenha seguido o caminho da música. Vocês podem verificar que eu fiz muita coisa com música, não é? Fiz Alô darling, fiz My fair lady, fiz O homem de la Mancha, fiz…

Gota d’água…

– A Gota d’água… Então, sempre lidando com músicas. Fora disso, revistas que, em 1950, e vocês nem eram nascidos, eu fiz Escândalos de 50, Escândalos de 51, na Praça Tiradentes do Rio de Janeiro, que foram espetáculos que deram um cunho assim mais elegante à Praça Tiradentes, porque eram de um luxo extraordinário esses espetáculos. Daí eu não segui, por uma questão do destino e, quando perguntam “seus planos?”, eu nunca digo, porque justamente tudo aquilo pegou fogo e não sobrou uma lantejoula ou uma pluma pra contar a história. E era uma coisa cara demais e me deixou numa situação muito má naquela ocasião, voltando novamente à comédia, que sempre era menos responsabilidade quanto ao tamanho, ao vulto do negócio em si.

E o seu primeiro papel mesmo, já com a consciência do fazer teatral?

– Meu pai me arrancou de uma mesa de almoço. Eu estava almoçando com a minha mãe, porque meu pai e eu moramos muito pouco juntos, embora várias vezes juntos, porque papai e mamãe parece que se desquitaram umas três ou quatro vezes… Separaram-se mais umas três, enfim, sempre esse jogo.

Casa e separa…

– É, jogo de pingue-pongue, né? Mas, nessas idas e vindas, eu fui ouvindo meu pai recitar, dizer monólogos de várias peças, enquanto eu estudava piano… Depois mamãe quis que eu fizesse um pouco de violino, mas não achei que violino fosse a minha. Eu queria mesmo era a parte teórica da música. Aprendi bastante e avancei muito no piano e, quando eu estava pra me decidir, nesse almoço, chega um telegrama do meu pai, dizendo: “Aida – nome de minha mãe – veja possibilidade estrearmos Bibi próxima temporada Teatro Serrador com papel clássico”. O único papel, por sinal, que a grande Eleonora Duce (atriz italiana entre 1859 e 1924) representava. O único papel cômico que ela representava e chamava-se La locandiera, de Carlo Goldoni, no Teatro Commedia Dell’arte. E eu fiz La locandiera, que se chamava Mirantolina. Inclusive outro dia, num programa de TV, até passou um pedacinho dessa minha estreia, eu entrando em cena com o meu pai. E daí eu fui me apaixonando por outro tipo de música, que é a música da palavra.

E aí não parou mais?

– Gostei do ambiente, voltei novamente a sentir o bastidor, o camarim, de hotel em hotel, de turnê em turnê, como eu canto aqui nessa peça. E o teatro tornou-se uma coisa muito séria na minha vida e uma forma de sobreviver. Tornou-se a minha profissão, que eu respeito e, acima de tudo, eu acho que é uma profissão para aqueles que a escolheram e a aceitaram. Eu acho uma profissão muito bonita, rodeada de aplausos, de reconhecimentos. E o teatro é um momento de grande comunhão, a comunhão plateia-palco e, portanto, é um momento sério. O momento no qual a gente se abraça a uma quantidade de gente que nem sabe bem o que é que vai ver. De repente, essas pessoas se abrem todas num momento muito importante para elas, porque teatro é, sobretudo, um momento de lazer para o público. O público vem aqui pra esquecer todos aqueles grandes problemas que tem.

Você vê o teatro como diversão?

– Isto aqui é uma faculdade onde eu vou ensinar teatro nos meus espetáculos, mas podem levar daqui uma grande mensagem não apenas dessa peça, mas de outras que realmente são escritas com esse valor literário. Mas eu vejo o teatro mais como o distrair uma plateia e isso é uma coisa que eu acho importante. É aquele momento em que você já foi ao médico, já foi à faculdade, já esteve no advogado tratando de um assunto seríssimo que está lhe preocupando. Você saiu do seu grande problema e agora nós não vamos ter mais problemas. Vamos entrar no lugar onde se pode ter uma grande emoção. E hoje tem muita gente descobrindo-se aqui nessa plateia. Acho que o teatro é pra isso e tem vezes que você chora pra burro, mas o importante é emocionar. E se o teatro não te emociona pela beleza, pela inteligência, pela emoção do choro à gargalhada, então eu acho que ele não serve pra mais nada.

Você esteve afastada dos palcos por um tempo. Por quê?

– Eu vivo do teatro e me afastei um pouco por razão emocional. Um acidente que aconteceu com a minha mãe e que não devo dizer. Foi uma razão que me impedia de sair do Rio, de viajar com um espetáculo. Mas eu fiquei dirigindo, por trás do pano, porque eu gosto de dirigir.

Além de grande atriz, você é também diretora de teatro.

– Eu sou diretora de teatro e gosto muito e quase sempre estou dirigindo musicais, porque gosto muito de música e uma das minhas grandes alegrias-tristeza foi o último show da nossa mineira guerreira, Clara Nunes. Fui eu quem dirigiu. Foi o show Clara mestiça, no teatro que leva o nome dela e foi um momento muito bonito nosso, Clarinha e eu. Fiquei muito feliz de ter privado com ela, que foi uma grande amiga minha, e já havíamos trabalhado juntas no Brasileiro, profissão esperança, que esteve aqui no Teatro Francisco Nunes, com o Paulo Gracindo. E fiz também a direção do espetáculo Nossos momentos, com a nossa magnífica intérprete Maria Bethânia.

Você fez preparo vocal para Piaf, naturalmente.

– Não foi bem um preparo, foi a sorte que eu tive com o maestro-regente e arranjador da nossa peça, o pianista e músico excepcional, Nélson Mellim, que durante dois meses conseguiu que eu cantasse as músicas escolhidas para a peça. Ele conseguiu colocar a minha voz num tom importante pra mim. Para que eu me sentisse à vontade pra poder dar a emoção da maior cantora que foi Piaf, em sua época o maior cachê do mundo. O maestro e eu trabalhamos durante dois meses pra eu encontrar o tom melhor para exprimir a alma de Piaf. Porque eu não sou parecida com ela e tampouco gosto de rei de baralho. Rei de baralho é quando você bota a coroa do rei, bota a calda do rei, bota o trono do rei… Mas e o rei? A fantasia é só no carnaval. No teatro, não. No teatro o principal é a alma e eu quero dar nessa peça a alma de Piaf, o grito dela, o choro dela, o amor dela, a paixão e não tentar ficar igual a ela.

Como é que você vê a Piaf e quais os pontos que aproximam vocês duas?

– Piaf era uma pessoa maravilhosa, generosa. E aí me perguntam qual a diferença entre nós duas, já que existem os pontos afins. Por exemplo, somos pessoas muito à vontade, mulheres dadas à paixão e eu sempre amei muito. Agora uma diferença, por exemplo, é que Piaf nunca teve uma refeição em família, sabia? E eu tive e é uma coisa muito importante.

O ponto em comum entre vocês seria principalmente a paixão?

– A paixão. Eu não me interessava, por exemplo, se o homem era mais jovem do que eu. O Paulo Pontes, que faleceu, meu grande amigo, meu querido Paulo Pontes, era dezoito anos mais novo do que eu e nunca me senti dezoito anos mais velha e sim dezoito anos mais jovem do que sou.

Piaf lhe deu os prêmios Molière, da Air France, e Mambembe, da crítica carioca. Como é isso e como você vê a crítica no Brasil?

– O prêmio é dado pela crítica, praticamente. E eu acho que a crítica é muito importante. É muito importante que nas páginas dos jornais de todas as cidades se fale de teatro, se escreva sobre teatro, se critique o teatro, se incentive o teatro. Se por um lado você recebe uma crítica que não é boa, por outro está se incentivando outro. Eu acho que o importante não é o que a crítica diz de você, mas que a crítica está constantemente ali, abrindo as suas colunas para o público.

Como é pra você cantar e representar no Grande Teatro do Palácio das Artes?

– O público mineiro é exigente, porque vem para cá os melhores espetáculos do mundo. Isto aqui é um mundo de arte que vocês têm em Belo Horizonte e isso faz tradição, vai plantando e a plateia vai ficando exigente. E nós, do Rio e São Paulo, pra chegarmos aqui, temos que trabalhar muito lá fora e muito nos honra um convite do Palácio das Artes… Meu pai sempre me dizia: “eles começam na expectativa”.

E seu pai veio muito a BH. Inclusive um dos nossos veteranos do palco, o Manoel Teixeira, me dizia que o Procópio Ferreira fazia apresentações para ajudar os amadores locais.

– Papai amou o teatro desde sempre. Estudou direito, mas sempre quis o teatro. Formou-se na Martins Pena, no Rio de Janeiro.

O que representa Piaf pra você?

– Representa todos os momentos da minha vida de uma vez só. É uma personagem riquíssima, porque vai da galhofa à tragédia. Por isso, ela foi apelidada de Le Kid Piaf, a moleca Piaf, a garota Piaf. Ela se auto-gozava se achando feia, mas por dentro ela deveria saber o que valia realmente e tinha aquele charme…

Sensualidade…

– Sensualidade! E pra ter aqueles homens todos, que a amaram, era preciso muito charme.

O melhor momento da sua vida se deu no palco?

– Não foi propriamente no palco, foi quando soube que eu podia ter um filho. Inclusive minha filha está encarando a carreira e isso me deixa muito feliz. Ela estreou na Piaf, fazendo Madeleine, mas assinou contrato com a TV Manchete e vai fazer uma minissérie.

Filha de peixe.

– Acho que ela é neta de peixe…

Como é atuar sob a direção de Flávio Rangel?

– O Flávio é um amigo e tanto, além de ser um dos maiores técnicos de teatro e entender de tudo. Fora isso, a direção dele é esplêndida, porque deixa a gente à vontade e isto é muito importante para o ator. É um diretor da maior qualidade, da maior técnica possível, uma pessoa bondosa, muito meu amigo há muitos e muitos anos e é um dos responsáveis por esse espetáculo ser o que é.

Para encerrar, uma curiosidade: você ainda tem receio de subir no palco?

– Estou sempre receosa. O dia que isso passar eu não faço mais teatro. Duas coisas que eu não quero é ficar indiferente às estreias, a cada noite no palco, e ter que deixar de acreditar no ser humano. Por mais decepções que eu tenha, eu quero sempre acreditar no ser humano e, no dia em que eu não acreditar mais, eu prefiro morrer.

*Morreu no Rio de Janeiro, em 2019.

Na função de marceneiro, meu pai trabalhou na montagem de um estúdio de dança do professor Carlos Leite, a quem eu seria apresentado em 1981, no Teatro Universitário da UFMG. A exemplo do pintor Alberto da Veiga Guignard, Leite foi um mestre das artes em BH, quando Juscelino Kubitscheck era governador de Minas. Deu aulas para bailarinos famosos, como Klaus Vianna e Décio Otero. A principal entrevista que fiz com ele foi publicada no EM, numa terça-feira, 13 de março de 1990.

Mestre da dança

Carlos Leite é o grande pioneiro da dança em Minas Gerais. Com sua famosa varinha, ele formou gerações de bailarinos e abriu caminho para que aqui se situasse um dos polos da dança no Brasil. Nascido em Porto Alegre a 23 de junho de 1914, filho de um industrial e diplomata, descobriu cedo a vocação para as artes. Depois de estudar e trabalhar no Teatro Municipal do Rio transferiu-se para Belo Horizonte e, no dia 15 de março de 1948, inaugurou o primeiro curso de dança clássica da cidade. Integrou o Balé Russo, sediado em Londres, herdando dessa época a pontualidade britânica. Atuou como bailarino e coreógrafo em óperas, balés, teatro, cinema e televisão. Conviveu com muita gente famosa, como Luz Del Fuego, Oduvaldo Viana, Madame Morineau, Bibi Ferreira, Eva Todor, Margot Fontayn, Mikhail Barishnikov e Carmen Miranda. Lecionou no Palácio das Artes e no Teatro Universitário da UFMG. Aos 76 anos, reside no Hotel Magalhães, no centro da cidade, e leciona no Centro Mineiro de Danças Clássicas, no Studio Tereza Cristina e na Academia Maria Olenewa.

Professor, de onde veio este amor pela dança?

– Foi uma dádiva do destino. Sempre tive amor pela arte, mas não desejava, conscientemente, ser bailarino. Queria ser cantor lírico, tanto que, em Porto Alegre, depois de me bacharelar em direito, entrei para o Conservatório para estudar música e me dedicar ao bel-canto.

Como é que o senhor foi parar no Rio de Janeiro?

– Havia chegado à Capital Federal um dos maiores professores de canto da Itália e a diretoria do Conservatório de Porto Alegre resolveu que eu deveria ser seu aluno. Fui ao Rio de Janeiro para me submeter a um teste com esse professor. Ele me elogiou muito, mas disse que, para seguir a carreira profissional, eu tinha que ficar um ano inteirinho sem cantar. Não poderia cantar nem mesmo no banheiro, pois poderiam aparecer calos nas minhas cordas vocais. Aquilo foi uma decepção muito grande para mim. Levei um choque, pois já havia me mudado de armas e bagagens. O que eu ia fazer durante um ano sem poder cantar?

Então decidiu ser bailarino?

– Então eu me matriculei na Escola de Direito para prosseguir meus estudos e, cinco meses depois, descobri que a minha queda não era mesmo pelo direito. Aí me matriculei na Escola de Arte Dramática, que tinha como diretor o famoso Coelho Neto e professores como Oiticica, Abgail Maia e Oduvaldo Viana, o pai, entre outros. No final do primeiro ano de curso, abri o Jornal do Brasil e li: “abertas inscrições para se formar o primeiro elenco nacional de brasileiros natos na dança. Não se quer pessoa que já tenha conhecimento. Ao contrário, deseja-se pessoa que não tenha feito dança para poder iniciar do ABC, mas que tenha vocação artística etc. etc.” Eu me submeti ao teste, muito rigoroso. O candidato escolhia uma música e a interpretava à sua maneira. Escolhi a Marcha fúnebre, de Chopin, e os jurados escolheram um tema místico de Macinet.

Naturalmente, o senhor foi aprovado.

– Pior! Acabou o teste e logo depois a secretária me disse que eu deveria fazer outro teste. Entrei na sala e lá estavam doze jurados da banca examinadora cochichando e eu logo vi que falavam de mim. Um deles tomou a palavra e disse que desejavam de mim um juramento franco. “Mas não precisava ficar nervoso”, disse ele, e depois me informou que era unânime a opinião de que eu já havia me iniciado na dança. Eu contei tudo o que havia acontecido até então, desde o Conservatório de Porto Alegre até o motivo da minha mudança para o Rio de Janeiro, a decepção com o canto e as aulas de arte dramática. Recordei também que, aos cinco anos de idade, eu montava cenários com os tapetes lá de casa para brincar de dançar. 

Que dizer que, se existe reencarnação, o senhor foi bailarino também na noutra vida.

– Ao que tudo indica. Mas, voltando à banca de testes, os jurados escolheram outro tema e eu o interpretei. O resultado seria publicado no Jornal do Brasil de domingo e eu esperei ansiosamente, mas um pouco magoado, pois os jurados pensaram que eu estava mentindo quando disse que nunca havia estudado dança. No domingo, quando abri o jornal, me deu uma tremedeira nas pernas. Meu nome era o primeiro da lista. Iniciei-me no curso diário, no Teatro Municipal, de nove às treze horas.

Quais foram suas primeiras atuações já como bailarino?

– Atuei no corpo de baile das óperas Romeu e Julieta, Sanção e Dalila e Rigoleto. Como primeiro bailarino, subi ao palco pela primeira vez em 1945, em Prelúdios, de Liszt. Isso me valeu a medalha de ouro maciço como o melhor bailarino brasileiro daquele ano. Tive como padrinho o Sr. Arnaldo Guinle, que me outorgou o prêmio.

O senhor teve uma ligação indireta com Ana Pavlova, não foi?

– Minha primeira mestra, a quem devo praticamente tudo, foi a madame russa Maria Olenewa. Ela era do Teatro de Moscou e depois se tornou solista da Companhia de Ana Pavlova. Quando essa companhia passou pelo Brasil, vinda de Buenos Aires, madame Olenewa ficou no Rio de Janeiro para se tratar dos pulmões. Gostou tanto da cidade que se radicou lá. Foi a pioneira da dança clássica no Brasil desde 1927, quando criou a Escola de Bailados Clássicos. Em 1934, formaram o primeiro corpo estável de dança clássica brasileira no Teatro Municipal do Rio, e madame Olenewa foi expoente principal dessa escola.

Como surgiu a ideia ou oportunidade de ser pioneiro da dança em BH?

– Eu sempre me apresentava em Belo Horizonte e gostei da cidade desde o primeiro momento. A primeira coisa que me cativou foi o clima seco, que é ótimo para a dança. Depois, esse belo horizonte, com um por do sol magnífico, e também o povo mineiro em si, que é muito afinado com o gaúcho, apesar de ser meio retraído e desconfiado, talvez pela topografia que não lhe permite saber o que há do outro lado. Desde os primeiros dias na cidade eu já pensava: “quando eu deixar o Teatro Municipal do Rio e for abrir a minha academia, a cidade escolhida será esta”. Quando fundei a Academia de Danças Clássicas, que funcionou primeiro na sede da União Estadual dos Estudantes e depois no décimo primeiro andar do Brasil Palace Hotel, eu encontrei elementos humanos de muita potencialidade e boa vontade, pessoas realmente sensíveis, sobretudo, para a arte da dança. Isso me animou bastante.

Como foi o tempo em que o senhor trabalhou lado a lado com Guignard?

– Bom, em 1953 foi criado o Balé Minas Gerais e eu me mudei do Brasil Palace para o edifício do IAPI, na Amazonas com Tupinambás. Viajávamos muito e tomávamos parte de todas as temporadas oficiais do Estado. Fui então chamado, devido ao meu trabalho pioneiro da dança e aos serviços prestados à municipalidade e ao Estado de Minas. Escava convidado a trabalhar no local das obras do futuro Palácio das Artes. Aliás, aquilo eram escombros e só funcionava no local a escola de pintura de Guignard. As aulas eram dadas ao ar livre, sem nenhum conforto, sob as intempéries do tempo. Guignard dava suas aulas no primeiro andar e eu, no subsolo. Havia um ribeirão que cortava o Parque Municipal de fora a fora e, quando chovia, a enchente inundava o estúdio e a coisa ficava impraticável. Para se ter uma ideia, não havia nem instalações sanitárias. Rapazes e moças faziam suas necessidades no matinho. Lembro-me de que, quando recomeçaram as obras, o barulho era infernal, pois usavam até dinamite.

Por quê?

– O projeto do Niemeyer teve que ser alterado. O palco original era ciclorâmico e tinha vinte e oito metros de profundidade. Tenho muito respeito pelo Niemeyer, mas tem coisas que ele faz que só são bonitas no papel, pois na prática não funcionam. Então, a gente ficava no meio da poeira, da fuligem e daquele barulho infernal. O engenheiro veio reclamar certa vez: “Ih, professor, suas meninas não deixam meus operários trabalhar. Eles não se concentram vendo tantas moças bonitas vestidas de malha”. 

O senhor tem saudades do Palácio das Artes?

– Saudade daquela burocracia, daquela política toda, não. Pelo contrário. Foi o motivo político que me forçou a adiantar a minha aposentadoria e, de tabela, tive que me aposentar também do Teatro Universitário. A política naquele Palácio das Artes é uma coisa medonha. Eu pensei que ia chegar o momento em que eu ia provocar um escândalo tão grande, uma briga tremenda, de repercussão nacional… Então, concluí que os incomodados é que devem se mudar. E o Palácio das Artes, todo mundo sabe, decresceu muito. Não só por falta de ajuda do governo, pois isso aconteceu em todos os governos já que, no Brasil, infelizmente, a arte nunca teve o merecido apoio. Mas as coisas pioraram muito e chegou ao que está aí.

Quais entre seus alunos de maior destaque na dança o senhor citaria e qual a sensação de vê-los fazendo sucesso?

– Foram muitos os meus alunos. Não posso lembrar todos assim, de cor. Mas cito assim, a queima roupa, Klaus Vianna, Décio Otero, Lúcia Tristão, Maria Luíza Bouchardet e Maria Heris Aquino, ambas nos Estados Unidos, e Adelina Moris, na Alemanha, entre outros. É muito gratificante ver o resultado de todo o meu trabalho. Os alunos refletem aquilo tudo que eu fiz e isso me dá uma satisfação muito grande. Pena saber que eu e muitos deles ainda estamos no Brasil, aguentando a pau e corda isso aqui. Mas, se não fôssemos nós e mais meia dúzia que tem por aí, seria a derrocada final.

Qual o seu recado para os jovens iniciantes da dança?

– Perseverança, humildade e muito trabalho, sempre naquele lema de que o querer é poder. Eu considero a dança como a mais sublime e mais nobre de todas as artes, porque é o espírito e o corpo unidos a serviço da beleza.

Dizem que o senhor utiliza uma varinha para instruir ou corrigir alunas e alunos.

– Sim. Existem determinadas partes do corpo que um professor não pode tocar. Como é que eu vou enfiar a mão nas entre pernas de uma aluna para mostrar que ela está numa posição incorreta? Vão dizer que sou tarado. A varinha é para isso, e também para marcar o compasso. Mas, apesar das reclamações de algumas alunas, eu até hoje nunca surrei nem matei ninguém. Podem ficar tranquilos.

*Morreu em Porto Alegre, em 1995.

Poucos me ensinaram tanto sobre teatro e literatura quanto o meu mentor lusitano, Cunha de Leiradella. Ele morou por mais de 40 anos no Brasil, metade desse tempo em Belo Horizonte. Tornou-se um dos autores mais premiados do país, como romancista, contista e dramaturgo. Convivemos por duas décadas, até sua volta à terra natal, onde o visitei tempos depois. Entrevistei-o algumas vezes, sendo que a presente matéria foi publicada no Suplemento Literário do Minas Gerais, em 30 de março de 1985.

Português redescobre o Brasil

 

Em 1966, a literatura nacional foi sacudida pela manchete: “Dramaturgo português descobre o Brasil”… Nascido e criado em Póvoa do Lanhoso, norte de Portugal, Cunha de Leiradella estudou em Coimbra e estagiou no Théâtre de L’Equipe, de Paris, aproximando-se de Albert Camus e Jean Villar. De volta ao seu país, colaborou no jornal Portugal Democrático, até vir para o Rio de Janeiro, em 1958, fugindo do salazarismo. Com o Teatro de Equipe do Estado da Guanabara, chegou a montar peças experimentais de própria autoria, como Inúteis como os mortos, O homem só, O homem calado e O homem sentado. Andou pelo Teatro Tablado, de Maria Clara Machado, e foi um dos fundadores do Tuca-Rio, juntamente com Amir Haddad e Maria Helena Khuner.

Antes de se tornar conhecido no mundo das letras, Leiradella foi vendedor de livros e crítico de teatro. Colaborou em vários jornais, andou por Salvador e finalmente se fixou em Belo Horizonte. Foi finalista do Prêmio Status de Literatura, em 1980, com o conto A luz amarela. Ganhou o Prêmio Fernando Chináglia, em 1981, com o romance O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior, personagem que seria protagonista de outros livros seus, como Cinco dias de sagração e A solidão da verdade. Em 1982, venceu o primeiro concurso de dramaturgia promovido pela Rede Globo Minas, com o texto As pulgas, encenado também em Portugal. Escreveu várias outras peças, entre elas Cor local, Judas e Laio ou o poder, encenada com Elvécio Guimarães e grande elenco.  

 

Inicialmente, eu gostaria que nos falasse o que é o teatro pra você.

– Teatro é o meio através do qual eu mostro a minha interpretação da realidade. A realidade está aí para todos nós, mas a missão maior do artista é interpretá-la. Não basta apenas vivê-la. Pra que alguma coisa fique do que somos e fizemos, ou até do que deixamos de fazer, é necessário que mostremos como e de que maneira interpretamos as coisas e como projetamos o resultado dessa análise. O teatro é o meu principal meio de comunicação e não o meu fim, como artista.

 

E como você vê a dramaturgia?

– A minha dramaturgia nada mais é do que o resultado do meu “estar no mundo”. Isto é, o como e o quanto a realidade me agride. Por formação, eu sou um existencialista. E sendo o denominador da humanidade deste século a angústia e a incomunicabilidade, o meu teatro reflete a minha própria condição absurda. Eu sou um dramaturgo de vanguarda. Tenho, para mim, que a única arte capaz de interpretar a realidade que nos cerca é a arte de vanguarda, a arte do absurdo. Você quer coisa mais natural e normal do que se dizer que “o trabalho dignifica o homem”? Mas quando os alemães colocaram essa frase nas entradas dos seus campos de concentração, como interpretar isso? Como decodificar essa realidade? Não digo que o Teatro de Absurdo seja o único teatro possível de ser feito, mas que é o único capaz de nos posicionar, disso não tenho a menor dúvida.

 

Como vai o teatro nos dias de hoje, inclusive em Minas Gerais?

– Dizer que o teatro anda mal é chover no molhado. Mas é um fato. O teatro de qualquer país e de qualquer época sempre interpretou a realidade que lhe deu origem. E o teatro brasileiro não foge à regra. Nós estamos num imenso quarto fechado, brigando de foice e com a luz apagada. É uma luta insana, cada um por si e Deus por ninguém. Daí o caos, sob todos os aspectos. Em Minas, onde tudo se faz em função do Rio-São Paulo, a situação é ainda pior. Como o teatro não existe sem o espectador, em Minas nós assistimos a um fato deveras conclusivo. Temos bons atores, excelentes diretores, autores de primeira linha, mas não temos público. Por quê? Bem, se pararmos uma noite só que seja na porta do Palácio das Artes, essa magnífica casa de espetáculos, ainda que fechada às produções mineiras que não tenham ido ao Rio ou São Paulo beijar a mão da crítica de lá, notaremos uma coisa interessantíssima: o público que vai lá, só vai lá. Não importa o que esteja passando, desde que o espetáculo seja de fora e que tenha no elenco alguns astros das novelas da TV Globo. No oco do mundo do subdesenvolvimento, aparentar é ainda muito mais importante do que ser. Infelizmente!

 

Há muita discussão sobre a participação do governo na área cultural. No Brasil, o incentivo à cultura e à educação tem decaído muito. Como você acha que deve ser a participação do poder governamental no que se refere às artes e à cultura?

– Criar é um ato puramente individual. O artista cria segundo sua própria sensibilidade. E o governo, entendido como mecenas cultural, não funciona. Compete ao governo, sim, melhorar as condições de vida do povo. Não cercear-lhe a liberdade, não dizer-lhe o que deve ou não deve fazer, não prendê-lo, pisoteá-lo, matá-lo e, de repente, sair por aí e dar uma de bonzinho: “olha, só pra você ver o quanto nós somos bonzinhos, nós vamos te dar um brinquedinho, viu?”. E pegar um artista qualquer que seja e promovê-lo. Que os governos deixem o artista e olhem o povo. Quando o povo tiver condições, ele próprio olhará os seus artistas. Mas primeiro há que lhe dar de comer, saúde, escolas e tudo o que está faltando.

 

Você ganhou um dos maiores concursos de dramaturgia do país, promovido pela Rede Globo Minas em parceria com a Associação dos Produtores, Artistas e Técnicos de Teatro de Minas Gerais (Apatedemg). Qual a importância disso do seu ponto de vista?

– Como será que o laureado vê o Prêmio Nobel? Agora, já pensou se todos os anos os escritores tivessem que andar atrás dos acadêmicos suecos perguntando se ia ter ou não o prêmio? Concursos são bons, são ótimos. Estimulam a competição e mostram novos valores. Eu sou absolutamente favorável aos concursos. Só que, aqui em Minas, onde temos o maior concurso de dramaturgia da América Latina, entra ano, sai ano, e nunca se tem certeza se ele vai continuar ou não. Você já pensou se o Casa de Las Américas, em Cuba, o Pulitzer, nos Estados Unidos, ou mesmo o Nobel andassem tão enovelados como o nosso concurso de textos teatrais? Meu caro, ainda que muito nos fira o orgulho e nos humilhe, o narigudo De Gaulle tinha razão. Por isso é que, nas novelas da Globo, a diferença entre os ricos e os pobres é sempre sutilíssima: os ricos moram em casa de vinte quartos e os pobres moram em casas de dez quartos.

 

Você já ganhou vários concursos de contos e romances. Isso significa algo em termos de profissionalização para um escritor em nosso país?

– Deveria significar, mas, infelizmente, não só em Minas Gerais, como em todo o Brasil, um concurso literário pouco ou nada representa em termos de projeção profissional. Já ganhei diversos concursos, só para citar os dois últimos, Prêmio Fernando Chináglia e o de dramaturgia da Rede Globo Minas e Apatedemg. Pois bem. Onde estão esses prêmios? O romance continua inédito, apesar de mandado para várias editoras. E a peça, cadê ela? E pensar a gente que um paisinho do tamanho de Portugal, por exemplo, só de prêmios de âmbito nacional, entre outros, tem o Prêmio Luís de Camões, o Prêmio APE (Associação Portuguesa de Escritores), o Prêmio Círculo de Leitores, o Prêmio Mateus, o Prêmio Internacional Miguel Torga, o Prêmio Cidade de Lisboa, sem falar no Prêmio Pen Club ou no da Academia de Ciências e Letras de Lisboa. Qual a premiação? De três a treze milhões de cruzeiros (dinheiro brasileiro da época). 

Qual a projeção desses prêmios?

– Para se ter uma ideia, o Prêmio da Associação Portuguesa de Escritores, além de movimentar a Presidência da República, já que ele é entregue pelo presidente, representa em números editoriais o seguinte: quem vibra com os prêmios são os editores. A atribuição da APE de 1983 ao romance Balada da Praia dos Cães, de José Cardozo Pires, contribuiu seguramente para o sucesso fulgurante da obra, com tiragem global que já ultrapassou cinquenta mil exemplares. Agora, será que em Portugal, país com menos de dez milhões de habitantes, subdesenvolvido também, se lê mais do que no Brasil com centro e trinta milhões de brasileiros? Duvideodó, apesar de tudo o que dizem os nossos editores. 

 

E a influência dos best-sellers?

– A nossa dependência da má cultura americana é tanta e tamanha que qualquer autor que tenha sido citado uma vez no Jaw’s Post, lá de Fractured Jaw City, para os editores daqui, já é um sério candidato ao Prêmio Nobel e, como tal, todo brasileiro deve ler imediatamente. Agora, um Dino Buzati, um John Fante, um Ítalo Svevo, chegam aqui com quarenta, sessenta anos de atraso. E um Robert Misil, com O homem sem qualidade, ainda nem chegou. Nem um Cesar Pavese, o maior romancista contemporâneo da Itália. Será que só lá fora é que os jurados entendem de literatura e, consequentemente, os livros premiados são bons e dignos de serem editados? Ou nós, no Brasil, é que não entendemos de coisa nenhuma? Com a palavra as senhoras e senhores editores.

Encerrando essa nossa conversa, gostaria que você falasse de Sargaços, seu livro recentemente publicado.

– A revista Ele & Ela, ao indicar o livro aos seus leitores, disse que é “um flagrante na saga de um grupo de jovens desgarrados em sua aventura pela praia, ruas, noites e bares de uma Salvador joyciana”. Eu escrevo uma literatura existencialista, como é o meu teatro. Os seres humanos estão no mundo. E, paradoxalmente, embora a cada dia que passa o mundo fique menor, dado ao avanço tecnológico dos meios de comunicação e de destruição, quanto menor o mundo fica, também mais incomunicável o ser humano se torna. O mundo ficou menor e mais vulnerável. E nós vivemos esse contexto. Mesmo bancando os avestruzes ou alienados, não podemos cair fora. E é esse conhecimento de impotência que nos faz covardes e medrosos, mas tentando sempre aparentar coragem.

 

Qual é o enredo do livro?

Sargaços mostra um grupo de jovens, o que eles são, onde estão e para onde vão? São as questões básicas do livro. Mas não é um romance ideológico. É só um romance cru. Mostra os personagens como eles são. Eu não gosto de interferir na vida dos meus personagens. Em Sargaços, cada um vive a sua vida… Esse é um romance dolorido e nu. E se os personagens são verdadeiros sargaços boiando nesse mar que a gente vê por aí, o autor também é. Nem mais, nem menos.

Encontrei Dercy numa tarde, deitada num sofá no camarim do Teatro Marília. Ela disse que não gostava da solidão dos hotéis e que o teatro era o lugar onde se sentia em casa. Aos 77 anos, com o humor e a irreverência de sempre, a comediante sem papas na língua não tinha nada de licencioso ou pornográfico, como alguns poderiam supor. Pelo contrário, mostrou-se até certo ponto uma pessoa moralista e conservadora. A entrevista foi publicada num sábado, 7 de julho de 1984, na coluna Teatro Vivo do EM.

Humor de cabo a rabo

Nascida na cidade fluminense de Santa Maria Madalena, filha de família humilde, Dercy Gonçalves é com certeza a última grande representante do teatro popular brasileiro. Dona de estilo marcante, que fica entre a revista e a comédia ligeira, é uma comediante de grande recurso e, segundo alguns críticos, lembra um pouco os atores da Commedia Dell’arte. No espetáculo Dercy de cabo a rabo – ainda hoje a amanhã no Teatro Marília – podemos notar um público diferente, saído do povo, em busca da verdadeira terapia que se desenvolve no palco. Dercy conta trechos de sua vida pessoal, conta piadas, canta e dança ao lado de Luiz Carlos Braga.

A atriz faz questão de afirmar que tem setenta e sete anos e que vem daqueles tempos em que atriz era considerada prostitua. Ao longo de sua vida artística, ela fez teatro, cinema e televisão e sempre conseguiu bater recordes de audiência ou bilheteria. Para desespero de seus rivais – os pseudo-intelectuais do teatro brasileiro –, promete morrer aos 150 anos e afirma que sua avó morreu aos 113, “de parto”.

 

Gostaria, inicialmente, que você falasse um pouco da sua origem artística?

– Eu não tenho muita origem, não. Eu comecei no teatro assim na ignorância, né? Eu saí de casa e achei que devia de ser cantora, uma artista mesmo. Eu cantava no banheiro, na cozinha, no quintal e eles já diziam que eu era isso e aquilo. Mas nunca pensei na vida de teatro e que ela fosse essa coisa. Não sabia que teatro tinha tanta importância na vida social. Eu entrei como cantora e não permaneci cantora. Quando saí de Santa Maria Madalena, eu entrei numa companhia teatral que andava pelo interior, que era a Companhia Maria Castro.

 

Como você se sente sendo a comediante mais popular do Brasil?

– Não sou a mais popular, sou a mais antiga e que nunca parou. Então, automaticamente, eu sou a única, porque não tem mais artistas da minha época. Tinha a Alda Garrido, tinha a Chica Pelanca, a Lia Binati, a Utília Amorim, que eram atrizes cômicas. Mas hoje não tem ninguém desse gênero. Hoje tem umas copiazinhas muito ordinárias por aí.

 

Você disse numa entrevista que é mais velha que a censura.

– Mas sou mesmo.

 

E como a Dercy, com toda sua irreverência, vê a censura?

– Hoje não existe mais censura. Hoje eles não têm mais moral pra censurar nada. Então, hoje a coisa está aí na baderna. O que eles tinham que fazer era pagar a dívida e respeitar, botar polícia na rua e organizar o país. Não ficar censurando Dercy Gonçalves por falar palavrão. Isso é perder tempo. Como o Brasil está perdendo tempo com a Roberta Close. Francamente, só mesmo num país avacalhado pra fazer uma coisa dessas… 

 

Não acha que ao invés disso e do palavrão, o que deveria ser considerado imoralidade é a fome, a miséria, a violência?

– É uma imoralidade isto que o país está atravessando. Imagine que outro dia, no Rio de Janeiro, eles assaltaram um edifício inteiro e ninguém viu. Quer dizer, é uma esculhambação generalizada que eu, com os meus setenta e sete anos de idade, nunca vi o país numa vergonha tamanha. Nem no princípio da minha carreira, quando o Brasil pra mim era uma colônia, naquela época. Em Belo Horizonte tinha três ruas, não tinha nada. E o meu sonho era conhecer Belo Horizonte, que pra mim era perto do céu.

 

E como você vê BH nos dias de hoje?

– É uma cidade como outra qualquer. Hoje, pra mim, não há mais novidade. Nada é mais surpresa pra mim. Hoje eu conheço mais da metade do mundo, inclusive o Oriente. Então, Belo Horizonte, Rio de Janeiro… O Rio é uma das cidades mais bonitas do mundo, como cartão postal, pra se olhar no papel, porque pra ir morar lá é preciso ter peito. É preciso ser machão mesmo, paraíba. Porque é uma pouca-vergonha e um desrespeito total. Agora, não sei aqui como é que está. Eu sou brasileira e falo de qualquer lugar se eu achar isso. Eu sempre falo.

 

Como você vê a implosão do PDS e essa mudança no quadro político brasileiro?

– Isso eu já esperava. E é tudo um esquema, ô menino! Tem que passar alguém pro PMDB, porque o PDS avacalhou e ninguém vai votar no governo. O governo está abaixo da crítica, porra! Então, todo mundo tem que sair de lá, senão eles não entram noutra. Agora, burro é quem votar.

Em sua opinião, qual seria a saída política?

– Eu não sei qual é a saída. Se eu quisesse ser política eu não seria artista. Agora, me embromar? Não. Eu tinha dito: vai todo mundo sair do PDS e entrar no PMDB. Avisei isso há três semanas. O time do PDS morreu.

 

Você definiria alguns nomes da política nacional de hoje?

– Não, porque eu não conheço. As únicas pessoas que a gente conhece, mesmo assim através dos jornais, é o Delfim Netto e o Figueiredo (presidente João Batista de Figueiredo). Isso porque a toda hora eles estão aí… Porque, se for atrás do adversário, ele também tem os seus podres. Quem é o dono? Eu quero saber quem é o dono pra ver se eu vou puxar o saco dele depois que ele estiver lá dentro. Porque se não puxar o saco dele eu entro bem… Agora, eu respeito quem está lá, porque é que vai comandar o meu país. Venda barato, venda caro ou venda à prestação o meu país, eu quero saber quem vendeu.

 

Dá pra você falar um pouco sobre o espetáculo Dercy de Cabo a Rabo?   

– Esse meu espetáculo é um show de entrevistas, reportagens, denúncias. É um depoimento. Eu conto coisas da vida de teatro com as quais o público se distrai. E é um show de uma mulher de setenta e sete anos e a maioria das mulheres nesta idade já nem fala direito. Então, eu falo muito e sou vaidosa, mostro as pernas e isso deixa o público admirado.

 

Como você vê o teatro brasileiro, hoje?

– O teatro no Brasil sempre foi a mesma coisa. No bom espetáculo o povo sempre vai. O público gosta de novidade e há seis anos que eu não venho aqui. E falam das famílias mineiras… É tudo igual, pô. Gostam muito de mim, me aplaudem muito. O mineiro, o nordestino, o paulista, sempre com o mesmo carinho. Pra mim, o teatro no Brasil está muito bem. Eu posso comprar café, posso comprar manteiga, posso comprar leite. Posso comprar o que eu quiser, porque eu vou atrás do público. Eu ando o Brasil todo e não tenho queixas. Eu trabalho e, se tem desemprego, é porque eles querem escolher. Eu estou precisando de duas empregadas e não tem. É tudo sindicalizada, com a lei debaixo do braço. Quero saber se elas valem.

 

Você vai sempre ao teatro?

– Quando a peça é boa, eu vou. Como a da Fernanda (Montenegro), a da Bibi (Ferreira), que eu fui ver. Gostei muito das peças e vou sempre aos bons espetáculos. Agora, ver essa gente que fica embromando, eu não vou. O que eles estão fazendo, dizendo que é inovador, eu já faço há cinquenta anos. Eu já nasci antecipada.

 

E a televisão?

– Não exige nenhuma experiência. Não é bicho de sete cabeças. Aquilo ali é uma moleza, mais que o teatro, porque tem um diretor que te ensina tudo, tem uma máquina que te joga bonita, feia, com roupa ou sem roupa e você até voa… Tudo são eles que fazem. Televisão é sopa de garfo.

 

Sempre quando você aparece na TV é aquele aplauso.

– O público me aplaudiu de pé e o Brasil inteiro, quando mostrei o meu peito na televisão. Eu recebi telegramas e cartas dizendo que sou formidável. Porque tenho coragem de dizer a verdade e os meus peitos não são imorais, não é silicone. É um peito mamado. É um peito que criou minha filha, que me deu dois netos e uma bisneta. E a minha família pra mim é a razão de ser.

 

Você diz que quando começou o teatro era uma barra. Vocês nem podiam se hospedar nos hotéis das cidades. Mandavam vocês irem pra zona boêmia.

– Mandavam, não. A gente ia. Não entrávamos no hotel e, em muitos lugares, nem tinham hotel. Eram poucas as cidades que tinham hotel e na porta deles tinha escrito: “hotel familiar”. E só entrava atriz que tivesse documento de casada. A gente ficava em quartos de famílias que não tinham escrúpulos ou então ia pra zona…

 

E hoje o artista virou ídolo.

– Hoje, claro, imploram pra gente ir pros hotéis deles. Aquela hipocrisia acabou totalmente, porque vocês jovens avacalharam com essa porra que eles dizem que é moral. Não se podia nem beijar. O dia em que eu fiquei noiva o cara me deu um beijo no rosto e eu levei três dias sem ver ele, me sentindo desmoralizada, com medo que alguém tivesse visto. A virgindade era a coisa mais importante da mulher. Hoje a moça tem vergonha de dizer que é virgem. E isso me deixa meio embasbacada. Você vê os atores beijando na televisão. Beijando não, mamando um na boca do outro. Lambendo. É uma safadeza e se você não tiver um pouco de freio você também vai junto ali.

 

Você vê filmes pornôs? Como é que você vê essa indústria?

– Filmes eu não vejo e tenho até vergonha. Eu sou antiquadíssima e não vejo nem filme nacional e nem de fora. A indústria pornográfica é uma forma e quem manda não sou eu. Eu me nego, mas também não condeno. Cada um que faça o que tem vontade. O país tem aquilo que merece. Quando eu vi o filme Emanuelle, em Paris, entrei no escuro e saí no escuro e eu dizia pra minha filha: “que horror!” E eu já fui considerada uma mulher prostituta totalmente e até hoje sou falada. Aquilo de mostrar os seis na televisão: “Nossa, aquela mulher é uma louca”. E eles nem sabem com que carinho eu fiz aquilo!

 

E quem fala de você acaba idolatrando a Roberta Close.

– Idolatram um símbolo sexual gay. E ficam com vergonha de dizer que Dercy Gonçalves mostrou o seio. O seio não, o peito de uma bisavó de setenta e sete anos. Você vê a incoerência. Eles querem falar qualquer coisa. Moralismo? Mas o Brasil tem moral?

 

É um país falido?

– Falido? Tem hora que eu acho que estou na Grécia ou na Turquia, no meio de turcos loucos lá, porque o Brasil está pior que aquilo lá. Tenho saudades daquele Brasil em que eu andava com as minhas joias na rua. Eu ia daqui do teatro ao hotel a pé. Hoje, eu não tenho coragem. Deus me livre! Tenho saudade do tempo em que você fazia serenata na praça. Você subia a Rua da Carioca a pé, no Rio. Aqui em Belo Horizonte, você ia ao parque… Fizeram uma escola dentro de um cemitério, em Niterói. As crianças brincam dentro das catacumbas, comem merenda sentadas nos túmulos e pegam nas cabeças dos cadáveres, nas caveiras e nos ossos. Lá em São Gonçalo. E o prefeito disse que fizeram porque não tinham outro lugar… Num Brasil deste tamanho!

 

E qual é a saída pra tudo isso?

– Saída? Vocês não têm saída, menino. Estão fodidos, estão no fim de círculo e de século. Fim de tudo. Têm que descobrir outra língua. Não vejo saída e não vou te dar uma esperança perdida.

 

Você é religiosa?

– Não. Eu tenho a minha religião, que é não fazer o mal porque tenho medo do revertério. Eu procuro não fazer o mal, porque volta pra mim. Eu vivo a minha vida e luto pelos meus. Eu me amo, me adoro e gosto muito de mim. Agradeço, não sei a quem, pelo meu trabalho. Foi uma coisa dada e agradeço. Venho de uma família humilde, muito pobre. Minha mãe era lavadeira e o meu pai, alfaiate. E hoje eu sou conhecida e respeitada no Brasil inteiro. Sou proclamada e endeusada, o que faz de mim uma mulher gloriosa.

*Morreu no Rio de Janeiro, em 2008.

Um dos maiores dramaturgos do país, Alfredo Dias Gomes esteve em Belo Horizonte em 1983, para participar do antigo projeto Encontro Marcado, no Palácio das Artes. Estive com ele rapidamente, pouco antes do evento. Também participou da conversa nosso colega Cunha de Leiradella, que já o conhecia do Rio de Janeiro. A entrevista saiu na coluna Teatro Vivo de 05 de outubro de 1983 e foi registrada no meu livro Teatro mineiro – Entrevistas & críticas.

O autor bem-amado em BH

 

Sorriso no rosto, gentileza e extrema fineza com as pessoas que o interpelavam, Dias Gomes falou um pouco sobre seu trabalho no teatro e na televisão. Nascido em Salvador, a 19 de outubro de 1922, ele não concluiu nenhum dos dois cursos universitários que iniciou: direito e engenharia. Foi premiado já aos quinze anos, pelo Serviço Nacional de Teatro, com a Comédia dos moralistas. Sua primeira encenação, no entanto, foi Pé de Cabra, em 1942. Na sequência, escreveu Zeca Diabo, Doutor Ninguém e Amanhã será outro dia. Atuou no rádio nos anos 1950 e voltou ao teatro com Os cinco fugitivos do Juízo Final. Em 1959, tornou-se conhecido com O pagador de promessas, cuja adaptação cinematográfica de Anselmo Duarte ganharia a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962.  Escreveu, entre outros sucessos, A invasão, A revolução dos beatos, Odorico, o bem-amado, O berço do herói, Santo inquérito e Dr. Getúlio, sua vida e sua glória.

Dias Gomes foi um dos autores mais proibidos pela censura durante o regime militar. Escreveu as telenovelas Verão vermelho (1969), Assim na Terra como no céu (1970), Bandeira 2 (1971), O bem-amado (1973), O espigão (1974), Roque Santeiro (1975), Saramandaia (1976), O grito e Sinal de alerta. Escreveu ainda as peças As primícias e O rei de Ramos, esta musicada por Francis Hime e Chico Buarque. Seu personagem mais popular inspirou a minissérie Odorico, O bem-amado, que bateu recordes de audiência pela Rede Globo.

  

Inicialmente, gostaria de saber o que é o teatro pra você?

– Pra mim teatro é a justificação da minha própria existência. Esse é o meu ponto de vista particular. Eu encaro o teatro como uma prova que eu procuro dar, a todo o momento, de que mereço estar vivo. Isso talvez tenha um pouco de ligação com a minha infância, não é? E vamos entrar aí em explicações freudianas. Eu fui um filho temporão. Eu não era mais esperado, não é? Que dizer, quando eu nasci meu pai disse: “esse menino não devia ter nascido, não estou mais em idade pra criar”. Então, isso gerou em mim, no meu inconsciente, uma necessidade de justificar, através de alguma coisa, que eu merecia ter nascido sim. Que eu tinha o direito de nascer. Eu não encontrei outra maneira de justificar isso, embora tenha tentado várias, senão através do teatro. Então é por isso que eu digo que o teatro é a justificativa da minha própria existência perante mim mesmo.

 

Com que idade você se descobriu dramaturgo?

– Autor de teatro mesmo? Aos doze, treze anos eu fiz as minhas primeiras experiências teatrais amadorísticas, em casa e tal… Mas a primeira peça mesmo eu escrevi aos quinze anos, não é? Desde os quinze anos de idade que eu me identifico com o teatro. E encontro no teatro uma espécie de remédio assim para uma doença congênita. Uma necessidade de provar alguma coisa, de me exprimir e de me justificar.

 

Pergunta feita por Cunha de Leiradella: o pessoal conhece mais o Dias Gomes teatrólogo e o novelista da televisão, do que o novelista de rádio. O que você diz sobre esse período que você passou pela Rádio Nacional? 

– Esse novelista da Rádio Nacional não tem nenhuma importância. Até mesmo porque eu fiz poucas novelas na Rádio Nacional. Eu fiz mais outros tipos de programas, como teatros completos de uma hora, programas musicais, programas chamados de montagem e fiz, realmente, algumas novelas, não é? Mas no meu trabalho de rádio a novela é realmente o menos importante. Não teve nenhuma importância e eu não fui nenhum novelista de sucesso no rádio. E, de modo geral, a minha passagem pelo rádio eu considero extremamente desimportante, porque sempre fiz rádio unicamente pra ganhar dinheiro e mais nada. Eu detestava o rádio. Sempre pensava em sair do rádio e sempre encarei a minha passagem pelo rádio como uma passagem episódica, decorrente de uma necessidade econômica momentânea e por isso a minha obra radiofônica não tem realmente nenhuma expressão.

 

Gostaria que você falasse um pouco sobre O bem-amado, que foi teatro, foi novela de televisão, virou série e agora está também em livro, e sempre com sucesso.

O bem-amado é uma peça de sorte. Ela começou como peça de teatro, uma peça da qual eu não gostava, aliás. Levei muito tempo para engolir esta peça. Eu não gostava, mas era sempre solicitada por diversos veículos, desde que a escrevi e resolvi não encenar. Aí tive uma solicitação para publicá-la, ela foi publicada. Depois tive uma solicitação para transformá-la em roteiro de cinema, fiz o roteiro, mas não chegou a ser filmado, até que eu me dispus a reescrever a peça e tal, e reescrevi. Mesmo assim, não achava que era uma peça que me satisfizesse. Ela foi encenada, teve algum sucesso, mas não foi assim nenhum estouro. Até que chegou à televisão e na televisão é que foi realmente um sucesso nacional e internacional. 

 

E o texto O pagador de promessas, dizem que foi baseado numa notícia de jornal? Como foi isso?

  – O ponto de partida do texto foi uma notícia de jornal que pouco tem a ver com a peça. A partir dessa notícia de certa promessa que foi feita na Europa, não aqui, veio essa ideia que desencadeou o processo de criação, fabulação. Mas aí já em termos nacionais, no contexto nacional e daí surgiu a fábula de O pagador de promessas. O ponto de partida é esse e não tem nada quase a ver realmente com a própria peça, com a proposta da peça em si.

 

Você deixaria alguma mensagem para o seu público ou para os novos autores de teatro?

– Não… O monopólio das mensagens é da Embratel (risos) e eu não costumo dar mensagens, porque eu costumo não me intrometer no negócio dos outros.

*Morreu em 1999, em São Paulo.

O produtor fonográfico Arnaldo DeSouteiro me telefonou na redação sugerindo uma entrevista com o músico Dom Um Romão. Este havia feito uma carreira de sucesso nos Estados Unidos, a partir da Bossa Nova. Ele e Milton Banana se revezaram na bateria, no primeiro álbum que Tom Jobim gravou com Frank Sinatra. O motivo da entrevista seria o CD solo intitulado Rhythm traveller. Dom Um foi supersimpático ao telefone e a entrevista foi publicada no EM numa segunda-feira, 23 de novembro de 1998.

Baquetas de ouro

 

Um “santo” da MPB volta ao Brasil para fazer milagres em casa. Emblemático baterista da Bossa Nova, o carioca Dom Um Romão lança o CD Rhythm traveller (Viajante dos ritmos), uma rara joia fonográfica que coloca os ritmos nacionais em primeiro plano. São ao todo onze faixas, com o mestre das baquetas e vários convidados. Além de composições próprias, Romão gravou peças de Eumir Deodato, Quincy Jones, Pingarrilho, Nelson Angelo, Wayne Shorter e outros. O artista realizou shows de lançamento no mês passado, em Londres, Frankfurt e Rio de Janeiro. Esta semana ele repete a dose em São Paulo: sexta-feira, no SESC-Santo Amaro; sábado, no SESC-Paulista.

  Falando assim, sem muita explicação, o nome Dom Um Romão alude mais ao jazz. Não é pra menos. Há muitos anos ele vive e trabalha nos Estados Unidos, apresentando-se também na Europa e no Japão. Mas os fonomaníacos, aqueles que têm nas fichas técnicas dos discos uma leitura obrigatória, sabem da importância desse músico na história da MPB. Lembram aquele disco da Elizeth Cardoso, chamado Canção do amor demais? Aquele com arranjos de Tom, composições dele e Vinicius e a batida diferente de João Gilberto ao violão em duas faixas? Pois é, a bateria foi pilotada por Dom Um Romão. E lá se vão décadas de Bossa Nova, pois naquela mesma época o próprio João lançaria Chega de saudade, fincando de vez as bases do movimento.

Em 1962, o Itamaraty enviou um grande número de artistas a Nova York para a realização de um megasshow no Carnegie Hall. Na lista de atrações estavam Tom, João, Astrud Gilberto, Carlos Lyra, Roberto Menescal e, dentre outros, Dom Um Romão. De volta ao Brasil, ele trabalhou com Jorge Ben (ainda sem o Jor) na revolução rítmica de Samba Esquema Novo, em 1963. Dois anos depois, a exemplo de Tom e João, resolveu estreitar laços com o ambiente musical norte-americano. Decisão sábia, pois as portas foram se abrindo cada vez mais para o seu talento.

Do Beco das Garrafas e dos estúdios cariocas, de repente ele se via lado a lado com os grandes nomes da música americana. Tocou no grupo de Sérgio Mendes e Brazil 66 e participou do histórico álbum Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, gravado em 1967. Nos anos 1970, integrou o Weather Report, de Jacó Pastorius e Joe Zawinul, grupo que ele define como “a própria evolução da música”. Atuou também com Quincy Jones e Wayne Shorter.

Rhythm traveller chega ao Brasil pela Natasha Records, o mesmo que acaba de lançar Nova Bossa Nova, o CD que Marcos Valle gravou entre Londres e Rio. A produção é de Arnaldo DeSouteiro e Toninho Barbosa para o Jazz Station Records, selo encarregado da divulgação internacional do disco. A ficha técnica inclui nomes como Ithamara Koorax. Nelson Angelo, Nivaldo Ornelas, Jorjão Carvalho, Fábio Fonseca, Novelli e Pingarrilho – outra lenda vida da Bossa Nova: músico, compositor e vocalista, responsável pela arte da capa.

Como todo grande músico, Dom Um Romão sabe valorizar o silêncio. Talvez por isso possa ser definido como um homem de poucas palavras. Falando por telefone do Rio de Janeiro, ele demonstra extrema simpatia: “Diga aí, São Jorge”… Abre a conversa como se já conhecesse o repórter. Nascido na Gávea, aprendeu música com o pai, Joaquim Romão, que também era baterista. Em plena forma aos 73 anos, mostra-se antenado no que há de mais novo na música planetária. Jungle carnival, de Marcelo Salazar e do DJ Marcelinho da Lua, comprova isso. Presente no seu CD, a faixa foi remixada por meio mundo do dance.

Em sua opinião, a Bossa Nova ainda dá samba?

– Estamos batalhando para que a Bossa Nova sobreviva. Se Deus quiser, vamos continuar nessa luta. Mas isso depende também de outras pessoas, pois só uma andorinha não faz verão.

 

Você vê novos compositores dedicando-se a esse gênero musical?

– No que se refere ao Brasil, estou um pouco por fora, porque moro nos Estados Unidos há muito tempo. Lá existe gente fazendo música nessa linha. Inclusive músicos brasileiros, como Dom Salvador, Cláudio Rodite e Manuel Gusmão.

 

Como você vê a música que se faz atualmente no Brasil?

– A meu ver, a música brasileira caiu muito de qualidade. Hoje não se fala mais em Bossa Nova e em samba. Está um negócio deteriorado. É uma calamidade falar isso, mas é a verdade. Isso que estão tocando no rádio não é samba nem música brasileira. Fiquei oito anos sem vir ao Brasil. Estive aqui no Rio, no ano passado, para gravar esse disco. Fiquei horrorizado com o que ouvi no rádio e na tevê. Estão seguindo um caminho que eu não entendo, nem sei aonde vai dar.

 

Por que só agora você lança um disco solo no Brasil?

– Porque eu estava trabalhando muito lá fora. Tenho feito muita percussão solo nos Estados Unidos e na Europa, onde o caminho pra esse tipo de música é mais aberto. Lá, o pessoal gosta de música brasileira mais que aqui. Estive na Alemanha e no Japão recentemente e vi o quanto gostam da nossa música nesses países.

 

Lá fora as rádios tocam música brasileira?

– Tocam muito. Nomes como Tom Jobim, João Gilberto, Itamara Koorax, Luiz Bonfá… Aqui no Brasil as editoras procuram enterrar a nossa música. Eu não consigo entender porque fazem isso.

 

Em 1958, quando gravavam Canção do amor demais, você, Elizeth, Tom, João e outros músicos já percebiam algo de novo naquele trabalho?

– Nada daquilo foi casual. Já existia ali uma atmosfera um tanto revolucionária, que já abria um caminho na música brasileira. Já tinha cheiro de sucesso aquele trabalho que a Elizeth vinha criando.

 

Que lembrança você guardou do álbum de Tom e Sinatra?

– Eu fiquei muito feliz em participar da gravação desse disco do Frank Sinatra e Antonio Carlos Jobim. Aquele trabalho foi uma ponte para mim. Foi muito importante para a minha carreira, sobretudo no exterior. Tive um convívio maravilhoso com os dois.

 

Qual é a sua visão da linha evolutiva da percussão brasileira, de Dom Um Romão a Lincoln Cheib, de Naná Vasconcelos e Carlinhos Brown?

– Em geral, eu vejo que lá fora a música e a percussão brasileiras são coisas milagrosas. Todo mundo gosta, todo mundo quer ver e ouvir. Airton Moreira e Naná, que fazem concerto de percussão, quase sempre têm casa cheia. O mesmo acontece comigo. Do pessoal mais novo, eu ouço pouca coisa. Vivo no exterior e trabalho muito. Mas sei que estão fazendo coisas muito boas por aqui.

 

Finalizando, o que representa pra você esse novo disco?

– Representa muita coisa na minha carreira. Estou muito contente com esse disco. Ficou muito bom e está tocando bem na Europa, principalmente nas rádios de Londres. Espero ouvir minhas músicas também nas emissoras brasileiras.

*Morreu em 2005, no Rio de Janeiro.

José Ribamar Ferreira foi um dos poucos autores nacionais que conseguiu somar poesia e engajamento político sem comprometer a qualidade do seu texto. Tive a oportunidade de encontrá-lo em três eventos literários, um em São Paulo e dois em BH. Fiz com ele duas entrevistas para o EM e escolhi a que foi publicada no domingo 10 de setembro de 2000, data do seu aniversário de 70 anos. Em 2012, mediei um debate com ele na Serraria Souza Pinto, no Salão do Livro promovido pela PBH.

Poeta de sete instrumentos

 

A poesia está em festa. Ferreira Gullar completa hoje setenta anos de uma vida plena de realizações. Poeta, dramaturgo, prosador, roteirista, pintor, crítico de arte, parceiro de compositores da MPB, esse maranhense de São Luís confessa que viveu intensamente cada momento dessas sete décadas, da infância à militância no PCB, do exílio em Moscou à glória literária de Toda poesia, coletânea que está sendo relançada numa edição ampliada pela José Olympio juntamente com a versão em CD do disco Antologia poética, no qual ele fala alguns de seus poemas. 

Também para marcar as comemorações do aniversário, o poeta que conquistou recentemente os prêmios Jabuti e Multicultural coloca no ar seu site pessoal e realiza uma grande exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. No início de outubro, ele irá a Montes Claros, como convidado de honra da décima quarta edição do Psiu poético

Na manhã de quarta-feira, Gullar, que reside no Rio, atendeu ao telefone e falou conosco com bom humor. Entre outras coisas, disse que a vida não tem receita e que às vezes fica surpreso em ver que ela passa tão depressa. Foi casado com a atriz Thereza Aragão, morta em 1992, com quem teve três filhos, oito netos e um bisneto. Atualmente, vive com a poeta Cláudia Ahinsa.

 

Quem mudou mais nesses setenta anos, você ou o Brasil?

– Eu mudei bastante. O Brasil também mudou muito. Talvez mais do que eu. As pessoas são sempre a mesma pessoa. Elas mudam, mas são sempre a mesma pessoa. Mas o país não é uma pessoa. O país muda até de alma, né? Então, eu acho que o Brasil mudou bem mais do que eu. Eu fui testemunha de uma mudança muito grande. A cidade onde eu nasci, por exemplo… O que era São Luís do Maranhão quando eu era menino, e o que é São Luís hoje, mostra uma mudança fantástica. Ainda existe muita desigualdade, mas as condições de vida melhoraram sob determinados aspectos. Eu me lembro, por exemplo, que todo garoto tinha pereba. Éramos todos perebentos. Isso era decorrente da falta de saneamento e de higiene na cidade. E isso era no Brasil inteiro. Eu me lembro que havia em frente à cidade a colônia do Bonfim, colônia de leprosos. Lembro do dia em que uma lancha desembarcou no cais do porto um punhado de leproso e isso foi uma coisa que me impressionou para o resto da vida. De noite eu me debruçava na amurada do rio e via aquelas luzes distantes, que eram as luzes do Bonfim. Era uma coisa horrível! Hoje, o próprio conceito da lepra é outra coisa. A medicina descobriu que a doença não é o que se pensava.

 

E o país?

– O Brasil era basicamente rural. A maior parte da população morava no campo. Depois veio o processo de migração e as grandes cidades cresceram de maneira desordenada, gerando os problemas de hoje, que são gravíssimos. As cidades estão inchadas e as condições de transporte, moradia, saneamento e saúde não atendem a todos devido à quantidade de gente. Então, a coisa mudou muito. Mudou para melhor em certos aspectos e para pior, em outros.

 

O que você pensa do título de melhor poeta brasileiro vivo? A crítica passou a compreendê-lo melhor ou a poesia brasileira tem dificuldades para se renovar, tendo sempre o melhor poeta vivo de plantão?

– Veja bem, eu não sei qual a razão disso. Isso é uma coisa que já está me causando certo constrangimento. É uma coisa que não existe. Isso é a opinião de algumas pessoas. Esse negócio de o maior poeta não tem cabimento.

 

Em sua opinião, quais foram os grandes poetas brasileiros?

– O Brasil teve grandes poetas. Na minha opinião, o maior de todos é o Drummond. Mas tiveram outros. Teve o Murilo Mendes, o Jorge de Lima, o Vinicius, o João Cabral e muitos outros. Teve Cecília Meireles, Mário Quintana… O Manuel Bandeira, grande poeta. Além do Mário de Andrade, do Oswald… Agora, eu acho que o Drummond talvez seja o poeta maior de todos. Essa é uma opinião minha, pois tenho muita identificação com ele. Vejo nele o poeta que tem um grau de consciência, de humanidade, ligado à consciência social, ligado ao afeto. É um poeta comovido que tem tudo. Ele tem a reflexão social e filosófica, e tem ao mesmo tempo a emoção, que é a grande coisa da poesia, sem a qual a poesia não se justifica. A poesia realmente não serve pra nada se não comove as pessoas. Sem isso ela serviria pra quê? Se ela não cura doença nenhuma.

 

Entre os anos 1950 e 1970, você se destacou também como crítico de arte. O fato de ter se afastado dessa atividade revela desencanto com os rumos que as artes plásticas tomaram no mundo contemporâneo?

– Eu me afastei por várias razões. Primeiro que o espaço que as revistas davam para os críticos foi ficando cada vez menor. Eu escrevia numa revista que foi diminuindo de tal maneira o meu espaço que eu falei: “Não dá”. Eu mal começo a dizer de quem se trata, quem é o pintor, e já acabou o espaço.

 

Mal cabe o lide…

– Mal cabe o lide. Então eu não vou ficar escrevendo à-toa. Se é só para noticiar a exposição, então manda outra pessoa. O crítico tem que dar os antecedentes, tem que dar as referências para que a opinião dele tenha cabimento. Outro fator foram coisas que aconteceram com a arte contemporânea. Hoje, o maior número de exposições é de coisas sobre as quais não pode haver crítica. Um cara faz um chapéu enorme e bota cinco pessoas embaixo, você vai dizer o quê? Que o chapéu está grande? Que deveria ter dez ou mais pessoas ali embaixo? O crítico não tem nada a dizer sobre isso. Não estou dizendo que não presta, que não tenha sentido. Acho apenas que a crítica não pode dizer nada, porque é uma arte que não tem referência crítica alguma. Não tem norma, não tem nada. São improvisos e às vezes é uma coisa esnobe, a novidade pela novidade, o exotismo pelo exotismo. Eu, pessoalmente, não tenho nada a ver com isso. Ainda escrevo sobre arte quando se tratam de artistas que para mim tenham importância, artistas que me comovem. Se tenho algo a dizer sobre esses artistas, sempre que solicitado, eu escrevo sobre eles.

 

Você citaria algum desses artistas?

– O Siron Franco eu acho um grande artista. É uma coisa tão louca esse país, que eu participei outro dia de um debate e um crítico teve a coragem de me dizer que Siron não é artista, não é pintor. Isso é inacreditável! Eu acho um escândalo tão grande quanto o cara dizer que Villa-Lobos não era compositor. O Siron é um talento indiscutível. Quem diz que ele não é pintor não entende de arte e não pode ser crítico.

 

Você fez a letra de O trenzinho do caipira, de Villa-Lobos, e é parceiro de Fagner, Milton Nascimento e Paulinho da Viola. Como a música aconteceu na sua vida?

– O Fagner, por sua conta própria, pegou os meus poemas e começou a botar música. Depois me procurou e falou: “ô, poeta, eu quero mostrar pra você as músicas que coloquei nos seus poemas”. E assim começamos as parcerias e ele a me chamar de parceiro. Depois ele fez uma música e pediu pra eu botar letra. Foi o único caso, porque no geral ele bota música no poema. O Milton foi o seguinte. Em 1979, o pessoal fez um espetáculo com o Poema sujo. Tinha a Esther Goes e o Rubens Correia. O Milton foi chamado para fazer a música e ele musicou uma série de trechos do poema. Num outro caso, numa peça francesa sobre o Tiradentes montada pelo Fagundes (Antônio), cujo texto eu traduzi para o português, havia um poema que eu reescrevi e o Milton pôs música nesse poema também.

 

E o Paulinho da Viola?

– O Paulinho da Viola, que é meu amigo próximo, porque mora no Rio e às vezes me procura para bater papo, me pediu uma letra para seu novo disco. Eu fiz a letra e assim nasceu Lição de vida, que tem como subtítulo Molejo dialético.

 

Por que você está tanto tempo sem ter uma peça em cena?

– O teatro é muito complicado. Eu mergulhei na experiência teatral na época do CPC (Centro Popular de Cultura da UNE). Eu, o Vianinha (Oduvaldo Vianna Filho), o Vereza, o Paulo Pontes, o Armando Costa, o João das Neves… Era um grupo de pessoas que fazia teatro. Então eu me envolvi com eles. Depois do golpe militar, criamos o Grupo Opinião, que era de protesto, e estreamos com o Show opinião, que foi escrito pelo Armando, Paulo e Vianinha. Depois fizemos Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, escrito por mim e pelo Vianinha. Mais tarde fiz com o Dias Gomes o Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, que depois teve outra versão com o nome de Vargas e músicas de Chico Buarque e Edu Lobo. Foi dirigido pelo Flávio Rangel. Mas veja bem, teatro é muito complicado. O Dias, meu querido e saudoso amigo, dizia: “eu tenho 50 anos de teatro, mas cada peça minha é como se eu fosse estrear. As dificuldades são as mesmas”. Eu, pessoalmente, não tenho saco pra isso. Tenho três peças inéditas, mas nem penso em montar, pois a dificuldade é total até para se formar um elenco.

 

Como velho militante vê hoje a situação do país? Até que ponto o plebiscito da dívida externa pode reaquecer a discussão em torno das questões nacionais?

– Eu acho esse plebiscito uma bobagem. Não tem cabimento. Você está fazendo para o povo em geral uma pergunta induzida para que ele diga “não, não pague”. Só que o povo não conhece o problema. Como é que eu vou opinar sobre uma coisa de tamanha gravidade sem conhecer o problema? Imaginar que a maioria do povo sabe de fato quais são as condições dessa dívida e como é que ela foi constituída, o que é devido de fato… O governo diz que sessenta por cento da dívida não é dele e sim da iniciativa privada. Como é que você vai julgar por plebiscito se as empresas privadas devem ou não pagar suas dívidas? Eu me lembro de um presidente do Peru que se elegeu dizendo que não ia pagar a dívida externa. E não pagou. O Peru entrou num desastre no qual está até hoje. Resultou no Sendero Luminoso. A situação que já era difícil ficou ainda pior. Cortaram empréstimos e toda forma de ajuda ao país. Não é assim que se resolve o problema. Essa dívida que aí está foi constituída com a independência do Brasil. E outra coisa: Todo país tem dívida externa.

 

Mas e os problemas nacionais, como vamos resolvê-los?

– Eu acho realmente que o Brasil tem graves problemas. O principal deles é a desigualdade social. É a concentração de renda por uma minoria e uma vasta maioria que não tem condições de viver. Isso é um negócio que tem que acabar. Mas para acabar com isso não há milagre. Por que a Igreja não manda o Cristo resolver o problema? Mas não existe isso, não é? O problema tem que ser encarado de frente. E tem que ir em cima daquele que burla o fisco, daquele que sonega o imposto, daquele que rouba os cofres públicos. É isso que tem que ser feito. Mas não, aqui tudo é culpa do presidente, do governador, do prefeito. Estamos num país onde a culpa ainda é sempre do papai. Mas e a nossa responsabilidade, onde fica? Quem tem que resolver os problemas somos nós. Não dá para ficar fazendo demagogia.

 

Você é da geração que viveu a guerra do Vietnã. Como você vê a anunciada intervenção norte-americana na Colômbia? Isso poderia influenciar os destinos da América Latina?

– Isso realmente é uma coisa muito delicada. Eu creio que qualquer intervenção de natureza militar nas condições em que as coisas transcorrem na Colômbia pode se tornar uma coisa muito séria. Eu não tenho capacidade para avaliar o que pode acontecer. Mas que é uma coisa atemorizante, é. E de consequências imprevisíveis. Eu de fato acho que alguma coisa tem que ser feita com relação à situação da Colômbia. É um país que está sendo dominado pelas gangues da droga. Isso é um problema grave, que tem que ser resolvido. Mas primeiro tem que ser resolvido o problema do consumo de drogas nos Estado Unidos. Se não há quem consuma, como é que eu vou vender a minha mercadoria? Se a demanda aumenta, a oferta cresce. Então, eu acho que os Estados Unidos tinha primeiro que resolver o problema lá.

 

Com a sua experiência, e agora com um site na internet, como você vê o fenômeno das novas mídias e sua relação com a literatura?

– Eu acho que a internet é um instrumento de transformação fantástico. E nem se pode calcular o que vem por aí, inclusive no que envolve o livro, o direito autoral, as editoras, as livrarias… Isso vai ser um negócio muito sério. Vai ser uma revolução muito importante. Do ponto de vista da venda, da distribuição, da difusão, da relação do escritor com o leitor, aí existem outros problemas. Eu, pessoalmente, não acredito que o livro vá acabar. Ou melhor, eu não quero. O livro de papel tem um significado que não dá para achar que ele vá acabar. E essa tecnologia funciona do ponto de vista da difusão, mas do ponto de vista da criação ainda é coisa rudimentar. No nosso site, estou trabalhando nos poemas concretos que eu fiz no passado. Estou inclusive pensando numa série de coisas para que esses poemas tenham uma nova apresentação. Acho que dá para fazer algumas coisas interessantes com os poemas concretos. Os outros não. Eles estão sendo colocados simplesmente para serem lidos.

 

Nessa reedição do Toda poesia você foi tentado a mexer no texto?

– Já antes eu fiz a mudança de uma ou outra palavra. Na nova edição eu procurei corrigir tudo o que tinha de errado, principalmente no que se refere à distribuição espacial dos poemas. Desde a primeira edição de Toda poesia que vinham ocorrendo erros gráficos sucessivos. Então, dessa vez, eu e a editora fizemos um esforço enorme para publicarmos um livro que realmente tenha uma edição definitiva.

 

Na letra de Lição de vida, sua parceria com Paulinho da Viola, você diz que “a vida não é equação / a vida não tem solução”. É uma frase de extrema felicidade. Sendo assim, qual é a sua receita de vida?

– É eu faço aí uma ironia, que ficou engraçada. O que tem solução é a equação e não a vida. Isso não é da natureza dela. A vida é para ser vivida. Eu não tenho e nunca tive receita de vida. Acho o seguinte: nunca faça nada que a sua consciência não aprove. Isso é uma coisa fundamental, uma das condições para você sofrer menos.

 

E qual é o seu posicionamento diante da morte?

– Não a desejo, mas também não a temo. Eu acho que a morte é um fenômeno natural. É parte da vida. De modo que eu não tenho nenhum medo da morte. Acho chato ter que sair do mundo. E não acredito que de mim vá sobrar alguma coisa. Tudo o que sobrará de mim, sobrará dos outros. O outro é o nosso herdeiro e a nossa posteridade. Foi o outro que me viu, que gostou de mim, a mulher que me amou e que compartilhou comigo, e o leitor da minha poesia. Eu tenho no meu último livro um poema chamado Os mortos, em que no fundo eu tento responder essa questão dizendo: os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos. Ouvem eventualmente com os nossos ouvidos alguma sinfonia, algum bater de porta. Os meus mortos estão em mim, vivendo em mim, vendo as paisagens e ouvindo as canções.

*Morreu no Rio de Janeiro, em 2016.

Fiz uma entrevista com o maestro Francis Hime em 1998, por ocasião do lançamento do seu disco Choro rasgado. Compositor, pianista, arranjador e regente de formação erudita, ele sempre interpretou as próprias canções com extremo charme e competência. Parceiro de Chico Buarque, Cacaso, Paulo César Pinheiro, Ruy Guerra, Vinicius de Moraes e Olívia Hime, sua mulher, consagrou-se como um dos nomes mais importantes da moderna MPB. A matéria foi publica no EM, mas não localizei a data.

Entre o cello e a cuíca

 

Carioca da gema, cinquenta e oito anos, o compositor Francis Hime tem formação erudita, mas desde cedo sua vocação inclinou-se para ritmos genuinamente populares, como o samba, o choro e a canção romântica. Arranjador inspirado, autor de elaboradas harmonias, tem um talento todo especial para misturar a suavidade do cello com a picardia da cuíca. Disso resultaram composições que se tornaram clássicos do cancioneiro nacional, como Meu caro amigo, Passaredo, Trocando em miúdos, Pivete e a obra-prima Atrás da porta, todas com letras de Chico Buarque.

Parceiro de outras feras, como Ruy Guerra, Vinicius de Moraes, Cacaso, Paulo César Pinheiro, Milton Nascimento e sua mulher Olívia Hime, Francis volta à cena musical depois de ficar por doze anos longe dos estúdios. Lança pelo selo Universal o CD Choro rasgado, coletânea de doze composições, entre elas três com letras da própria lavra. Segundo ele, o convívio com os maiores letristas da MPB inibiram seu lado poético, que finalmente se mostra maduro. O atraso de Chico em compor uma letra para o samba Gente carioca levou-o a realizar a tarefa. O resultado é uma exaltação ao Rio de Janeiro. Tanto a letra quanto a linha melodia devem muito pouco ao samba-enredo Vai passar, uma das últimas parcerias da dupla.

Nesta entrevista, Francis Hime não se furta a falar de sua formação erudita e do amor que sempre nutriu pela música popular. Confessa a grande influência que Tom Jobim exerceu sobre sua obra e homenageia o amigo com Gente carioca e Jardim botânico, canção cuja letra desejou – em segredo – que fosse composta pelo maestro. Ele cumpre temporada no Tom Brasil, em São Paulo, e depois se apresenta no Canecão, Rio de Janeiro. O show em BH está agendado para 06 de novembro, no Teatro Sesiminas.

 

O padrão radiofônico geralmente exige canções curtas, com introduções rápidas. No entanto, você sempre grava músicas que duram em média até quatro minutos. Isso significa que você não liga se o rádio vai ou não tocar suas composições?

– Isso para mim já não é mais importante. Pessoalmente, procuro ir pelos caminhos que a música exige e não pelas exigências do mercado. No tempo das bolachas havia limitação de tempo. Mesmo assim, cheguei a fazer um LP com quatorze faixas. Hoje, com o CD, o artista tem mais tempo para mostrar seu trabalho. Choro rasgado, por exemplo, tem cerca de uma hora de duração.

 

Por que você demorou tanto tempo para fazer as próprias letras?

– Pouco a pouco eu fui me envolvendo com a palavra. Acho que pela qualidade do trabalho dos meus parceiros eu fiquei um pouco inibido durante algum tempo. Mas, de uns anos para cá, eu fui vencendo isto e me tornei parceiro de mim mesmo. Mas rasguei muitas letras até chegar a concluir as primeiras composições.

 

Você presta duas homenagens nesse disco a Tom Jobim. Como foi a influência dele sobre o seu trabalho?

– Foi uma influência fundamental. O Tom é o meu ídolo, é o maior nome da MPB

de todos os tempos. O Tom tem uma riqueza maravilhosa, como gente e como artista. Mandei pra ele essa canção, Jardim botânico, alimentando certo desejo não revelado de que ele fizesse uma letra. Quando ele morreu, eu mesmo fiz a letra.

 

Dentre os compositores populares de sua geração que tiveram formação erudita, você parece ser aquele que mais conserva essa base. Suas composições são longas, com introduções bem desenhadas e harmonias muito ricas.

– Isso é decorrente mesmo da minha formação. É uma tendência que se acentua inclusive devido ao trabalho com a música erudita. Engraçado que, ao lado dessa sofisticação, eu consigo atingir um equilíbrio na forma, uma maneira direta de chegar às pessoas. Na minha obra, o popular e o erudito formam uma dualidade, o que é bem ilustrado no arranjo do samba Maracanã, cuja letra é do Paulo César Pinheiro. E isso está muito presente também no meu show.

 

A sua geração foi muito rica, musicalmente falando. Você viveu a Bossa Nova, viu o Tropicalismo, a Jovem Guarda, Beatles, Concretismo, os festivais da canção… Como você vê essa música chinfrim que hoje predomina em todo o país?

– Eu acho que o Brasil tem uma situação única no setor da música popular, que é essa diversidade de ritmos e esse grande número de grandes compositores. Mas as gravadoras limitam muito o seu investimento. Insistem com um ou outro gênero e isso faz com que muita gente de talento desista da carreira musical. Isso é lamentável.

 

Você acha que o fato de as escolas não mais ensinar canto e iniciação artística contribui pra isso?

– Isso também influencia. Na medida em que tem mais educação e cultura, você fica mais exigente. Mas acho que isso tudo é uma coisa orquestrada. É um negócio intencional.

 

Como você vê o Brasil de hoje?

– Vejo com certa decepção. Não sou exatamente um desanimado, porque acredito muito no povo brasileiro. Mas acho que a classe política deixa muito a desejar. Eu não acreditei no Fernando Henrique Cardoso, portanto, para mim, o resultado do seu governo não foi tão surpreendente. Mas a história política das nações é assim mesmo, é feita de idas e vindas. Tivemos aí vinte anos de ditadura e temos que aprender a participar das decisões do País. Não podemos cruzar os braços, acomodar, ficar esperando milagres. Mas o momento, realmente, é de desalento.

 

Você e Olívia estão casados há 32 anos. O fato de ambos fazerem música e realizarem parcerias contribui para nutrir essa convivência de marido e mulher?

– Facilita muito por causa do contato. O trabalho, no sentido de um produzir o trabalho do outro, alimenta não só nossas carreiras, mas o próprio casamento. A Olívia é fundamental na minha vida. A gente se conheceu na música. Ela tocava violão e eu, piano. Era o tempo da Bossa Nova e Vinicius de Moraes era nosso amigo. Hoje, além das parcerias, ela produz os meus discos. 

 

Numa recente estada em BH, Paulinho da Viola revelou que está devendo duas letras a você. O que leva um compositor de formação erudita a procurar esse contato com um músico de raiz popular, oriundo de uma escola de samba?

– Ainda estou esperando as letras do Paulinho. Gosto muito dele. Além do mais, ele é vascaíno como eu. É um grande músico e futebolista. Logo que eu comecei a aparecer, eu sempre investi no samba, no choro e acho que compus sambas muito populares. Acho essa parceria natural.

 

Uma novidade no seu novo CD é a ausência do Chico Buarque. Vocês pararam de fazer parcerias?

– Essa ausência não é por vontade minha. O Chico está com algumas canções minhas pra por letra. Às vezes sai, às vezes não. Eu me lembro, por exemplo, do Trocando em miúdos, quando ele ficou um bom tempo tentando fazer a letra. De repente, ele adentrou o estúdio no qual eu estava gravando, às duas da manhã, com a letra na mão.

Lembro do Guarnieri da minha infância, quando atuou nas novelas Meu pé de laranja-lima e Éramos seis. Ali já percebi se tratar de um grande ator e de pessoa extremamente simpática. Bem mais tarde, tive a sorte de estar com ele mais de uma vez. Numa delas, ele interpretava Pablo Neruda no espetáculo O carteiro e o poeta, adaptado do livro do escritor chileno Antonio Scármita, a quem também entrevistei. A presente matéria foi publicada na coluna Teatro Vivo do EM, em 6 de setembro de 1983.

Um cavalheiro sem black-tie

 

Até o fim da década de 1950, a dramaturgia brasileira esteve mergulhada num clima de total marasmo, no que se refere à retratação da realidade nacional. Alguns jovens começaram então a questionar o teatro e a propor novas filosofias de trabalho. Entre eles estava Gianfrancesco Guarnieri, nascido em Milão, na Itália, que com apenas vinte e um anos escreveria a peça Eles não usam black-tie, revolucionando o teatro nacional e dividindo águas juntamente com a nova tomada de posição do Teatro de Arena. Posteriormente, Guarnieri escreveria A semente, Arena conta Zumbi, Ponto de partida, Um grito parado no ar e outras peças, que para sempre ficarão na história teatral brasileira. 

Black-tie foi transformada num de filme de sucesso por Leon Hirszman, sendo a mais premiada produção brasileira, com dez prêmios no exterior e seis pelo Brasil afora, conseguindo aplausos de público e crítica no Canadá, na Rússia, nos Estados Unidos e em diversos outros países. Recentemente, Guarnieri fez duas palestras na Faculdade de Direito da UFMG, a convite do teatrólogo Pedro Paulo Cava. Após os debates do último domingo, fomos com ele ao o bar do hotel onde estava hospedado e lá batemos um longo papo sobre sua trajetória. Além de grande autor e ator, o entrevistado revelou-se uma pessoa simples e sincera.

 

Qual trabalho você acha que marcou sua trajetória nesse tempo todo de teatro, televisão e cinema?

– Escolher um trabalho não dá. Esse trabalho todo de se chegar à procura de uma interpretação que fosse a nossa, a questão da dramaturgia que gerou inclusive a ocupação do Teatro Brasileiro de Comédia, pois queríamos fechar o TBC, que nos serviu como referência negativa… A defesa que fizemos do teatro e conseguindo que o teatro ficasse aberto aos textos nacionais foi um momento muito importante. E no TBC, nessa época, foi onde estreou O pagador de promessas, do Dias Gomes; A semente; Os ossos do barão, do Jorge Andrade; A revolução dos beatos, também do Dias Gomes… Eu acho que não existiram essas peças se não houvesse essa reação, digamos, anterior ao Teatro de Arena,

Na defesa do teatro nacional e da dramaturgia brasileira. Eu acho que nessa época, esse trabalho do Arena teve importância assim grande e estrutural mesmo do teatro brasileiro, a atividade múltipla, né? Como ator, como autor e como participante do grupo de discussão, da direção desse grupo.

Você foi também diretor?

– Eu não me considero diretor de teatro. Às vezes em que eu dirigi foi porque não encontrei no momento que pudesse dirigir a peça. Não é questão de confiança, mas questão de identidade.

 

E na televisão, como é a sua participação como ator?

– A minha participação como ator é muito simples, porque você chega lá, você tem as suas cenas, você grava as suas cenas e acabou, vai embora. Então, é como qualquer outro lugar, o seu contato mesmo é com os colegas, como em qualquer coxia de teatro.

 

Como você está vendo o teatro que é feito hoje no Brasil?

– Em geral, o teatro não está dando resposta. Quer dizer, o teatro de hoje, o teatro contemporâneo, dos nossos dias, acho que não está dando resposta em termos de dramaturgia…

 

Por isso estão dando preferência aos clássicos, inclusive na Europa? Parece que na França e na Alemanha estão com quase dez montagens do Fausto, de Goethe.

– Realmente você montar um belo Shakespeare, por exemplo, muito bem feito e tal é muito mais gostoso do que algumas peças que estão por aí. Por outro lado, o que o teatro tinha, contava história, né? O teatro de gabinete com aquela historinha simples e tal, esse espaço foi totalmente ocupado pela televisão. Não faz mais sentido o teatro chegar e contar uma historinha.

Tem um texto da década de 1950, agora publicado no livro Vianinha – teatro, televisão, política, na página trinta, em que você diz que a nossa dramaturgia apresentava duas tendências: a idealista, representada pelos autores católicos, e a materialista, pelos marxistas. E hoje, isso ainda tem a ver?

– Não, essa divisão é simplista demais. Aquele negócio da nossa época que tá aí realmente… Isso aí é uma bobagem que não era por aí não. Agora, eu continuo achando que há realmente uma divisão de posicionamento do dramaturgo em julgamento da burguesia e da não burguesia. Então aí eu restrinjo o negócio. Assim, realmente, os da não burguesia em geral são marxistas… E você pode fazer o teatro do ponto de vista do operariado sem conhecer o Marx.

 

Você não acha que o artista deve ser uma espécie de anarquista?

– Eu acho que a arte é livre, ela tem que ser livre. Na medida em que você vai querer tratar de um tema ou expressar uma série de questões a priori, a coisa se complica. Acho que o cara tem que ter liberdade na sua criação. Agora, de onde vem essa criação? É de um cara, de um sujeito, de um indivíduo. O trabalho dele, a função dele é escrever e ele deve ter um posicionamento diante das coisas, né? Então, acho que essa definição para si mesmo é muito importante… Agora, o que eu acho que não faz bem a ninguém, nem ao próprio cara nem aos outros nem àquilo que ele produz, é ter uma posição inteiramente desligada das coisas, dos fatos objetivos e materiais da existência. Acho que o cara que diz: “eu sou artista e não dou a mínima bola pro negócio, não me interesso por política…”

 

Tipo Mephisto?

Mephisto… É terrível. Se vende e é usado totalmente. Vira boneco. Então, essa mentalidade não é legal. O cara tem que se posicionar.

Gostaria que você falasse do seu relacionamento com o público. Você estava falando na palestra das duas senhoras que saíram do filme Black-tie chorando e vieram abraçá-lo na rua. Como é que você encara isso?

  – Na maior. Eu me divirto e levo na maior esportiva. O fato delas chorando é engraçado, eu rio muito, acho graça… Não me irrita, não. Eu trato com a maior atenção as pessoas que vêm. Mesmo o negócio de pedir autógrafo em qualquer lugar.

 

E sobre o burguesão sem educação?

– Quanto mais sofisticado o local, tanto mais grosso o cara é. Isso me lembra novamente o Mephisto, quando o cara xinga ele de “ator”. No fundo é um bruto preconceito que existe e é um negócio que não dá. Na minha experiência, o relacionamento com o burguês rico, mas inculto, que não sabe nada, é muito desagradável, porque te trata como o bobo da corte. Não o homem educado, esse não, ele é incapaz de te fazer psiu.

Você fala burguês e aí eu pergunto: quando você faz, por exemplo, uma novela e mostra toda aquela mentira sofisticada de luxo, coisa tal, e sabe que aquilo tudo tá chegando numa favela… Artista bem sucedido em função inclusive do seu talento e do seu trabalho, você não fica meio sem jeito, já que grande parte do público está bem abaixo de você, economicamente falando?

– Não, não chega a isso, porque a gente se coloca como o profissional liberal, o advogado que às vezes defende um cara que é um crápula. Mas aí ele tem que defender a profissão dele e ele defende o cara. O Vianinha dizia muito isso: “eu sou ator e aonde é eu trabalho? O mercado agora é a televisão, então o advogado não entra no tribunal?” O que é esse tribunal aí? Ele é melhor que a televisão? Do outro lado, o fato de você ter realmente um nível de vida que eu acho que todo mundo deveria ter, e também não há nada nesse nível de vida que seja indigno. Isso não é problema, porque eu não estou explorando ninguém. Isso eu já pensei: não ganho do trabalho alheio, o que a gente ganhar é do trabalho da gente.

 

O seu relacionamento com os parceiros Edu Lobo, Sérgio Ricardo e outros é de amizade ou é apenas profissional?

– Relacionamento de amizade, sempre de amizade. Não dá pra separar uma coisa da outra… É claro que a gente não se vê muito. A gente se vê pouco, inclusive por questão geográfica mesmo. Mas somos amigos sim.

 

Você assistiu Galileu Galilei (de Brecht com direção de Pedro Paulo Cava), aqui em Minas. O que você achou?

– É uma das peças mais difíceis e é até um desafio incrível. E uma encenação que passa desse desafio já daí ela merece toda atenção e respeito. Só que eles vão além disso. Eles conseguem botar essa peça de pé. Acho que conseguem transmitir o que estavam querendo, o que a direção e o elenco pensaram está aí. E eu gostei muito da interpretação dos atores. Têm um nível de trabalho que realmente você pode pôr em qualquer lugar, que os caras estão por dentro mesmo, fazendo a coisa com garra. Têm técnica já e são jovens, a maioria, e isso sem técnica não dá. Esse espetáculo sem a técnica você morre, você tem que saber relaxar, saber usar o corpo, se poupar em momentos pra se jogar noutros. Montar o Galileu em Belo Horizonte em 1983, eu acho que é importante para o teatro brasileiro, como em Recife foi também importante.

 

E o público mineiro?

– Toda vez que estivemos aqui o público deu a maior receptividade. E mais, acho que o público mineiro saca o que a gente quer fazer.

 

Inclusive o filme Eles não usam black-tie fez muito sucesso e está fazendo agora, em sua volta ao Cine Jaques.

– Pois é. O público aqui se posiciona direito. Tem determinados públicos… O público da zona sul do Rio é fogo. Entende as coisas como ele quer entender, não vai na tua, entende?

 

Dá pra falar um pouco do homem Guarnieri: política, religião e amor?

– Tudo o que eu falo está muito referido. Eu tenho uma convicção: acho que você tem que encarar as coisas politicamente e procurar se exercitar nisso, procurar cada vez mais ter uma cabeça política e poder atuar melhor. Quanto ao problema religioso, não tenho religião. Agora, compreendo a necessidade de Deus e a fé. E, muitas vezes, tenho consciência absoluta de que sou movido pela fé. Não sou movido pelo conhecimento, essa consciência eu tenho, e tenho a honestidade de declarar. Fui batizado na Igreja Católica, mas meu pai era protestante e eu fui batizado mais por um ato social. Nunca tive uma formação católica. Inclusive, minha mãe era estudiosa de teosofia e eu tive muito contato com literatura teosófica e acho fascinante a história das religiões. Entendo perfeitamente a necessidade de Deus, porque muitas vezes a realidade se apresenta de uma forma tão cruel e tão dura.

 

Você veio da Itália, não é?

– Nasci em Milão e vim com dois anos para o Brasil. Meu pai era maestro e antifascista. Fiquei contente em ter vindo pra cá, pois eu poderia ter ido para os Estados Unidos, mas se eu tivesse ido pra lá eu tinha morrido na Guerra da Coréia.

 

E o amor na sua vida?

– O amor é a mola, eu vejo o amor em tudo. É a alavanca. Sem a possibilidade desse sentimento, acho que a coisa não pode, tem que ser cultivado e que estar presente. Nós vivemos numa sociedade que quer acabar com isso. Você não pode explorar o próximo e depois dizer que o ama. Negócio estranho! E tem o amor pela parceira, pelos filhos, especificamente… Eu gosto muito da minha mulher, mas amo as mulheres. Mulher pra mim é um negócio muito importante (silêncio)… Acho que a mulher (risos)… Agora quietei um pouco.

 

Pra finalizar, gostaria que você falasse um pouco sobre o filme.

– Eu sempre quis ver Black-tie no cinema. Desde que estreou no palco, um grupo argentino comprou os direitos da peça pra filmas, mas felizmente não o fez. Eu acho que não ia ser legal. Iam botar coisas exóticas, porque se passava no Rio de Janeiro. Depois chegamos a iniciar um roteiro com o Roberto Santos e esse também, em sessenta e poucos, não teve condições… E o Leo queria fazer o Black-tie. Trabalhamos muito tempo pra ver que tipo de adaptação. Começamos a ver o que mudava. O que era óbvio, colocar em São Paulo, que era centro industrial. Bráulio, no filme, que não peça ele não morre. O Tião não foi preciso mudar. Inclusive, quando escrevi a peça, o pessoal ficava meio assim… Hoje, o Tião existe realmente.

   *Morreu em São Paulo, em 2006.

A primeira vez que entrevistei Guilherme de Brito foi em 1986, ao lado do seu parceiro Nelson Cavaquinho, quando a dupla se apresentava em BH a convite do Centro Cultural Leonel Brizola. Entre goles de uísque e boas risadas, falaram das parcerias e cantaram algumas de suas “pérolas” para o meu gravador. A segunda conversa foi por telefone, quando fiz reportagem sobre sambistas pintores. A terceira foi em 2000, quando lançou seu último disco. Este bate-papo foi publicado no EM num domingo, 1º de outubro.

As flores em vida

 

O compositor carioca Moacyr Luz homenageia um dos maiores poetas da MPB. Através da gravadora Lua Discos, ele produz o terceiro disco solo de Guilherme de Brito, o parceiro mais constante de Nelson Cavaquinho, com quem dividiu a autoria de clássicos como A flor e o espinho, Degraus da vida e Folhas secas. O projeto inclui ainda o CD Macalé canta Moreira da Silva e o primeiro álbum de Casquinha, compositor da Velha Guarda da Portela.

Guilherme de Brito Bolhorst está eufórico. Aos setenta e oito anos, autor de alguns dos versos mais poéticos do cancioneiro nacional, há muito tempo ele não entrava num estúdio de gravação. O disco, segundo ele, reúne canções inéditas feitas com Nelson, conservadas numa pasta cinza organizada por sua mulher, Dona Nena, com quem está casado há mais de cinquenta anos. São ao todo doze faixas, inclusive parceiras com Nelson Sargento e Juarez de Brito, seu filho. Luiz Melodia tem uma participação especial.

Ao falar por telefone com a reportagem, o compositor não escondeu a emoção. Recentemente homenageado com um museu na cidade fluminense de Conservatória, ele vê realizado o desejo expresso no samba Quando eu me chamar saudade, parceria com Nelson Cavaquinho, de receber as flores em vida.

 

Como o senhor começou a compor e qual a importância do samba na sua vida?

– Eu comecei muito cedo, compondo o samba Calça balão, que nem me lembro mais como é. O que me inspirou foram as humilhações que enfrentei quando fui trabalhar para ajudar minha mãe. Eu tinha que me apresentar de paletó e gravata. Só que eu não tinha paletó e gravata. Então, minha mãe arranjou lá um paletó e uma calça com o vizinho, recortou pra mim e deve ter ficado muito engraçado. Quando eu cheguei ao trabalho, os colegas começaram a me sacanear, porque a calça parecia um balão. E por isso eu fiz o meu primeiro samba. Continuei compondo sozinho. Compus com o Pedro Caetano e outros, antes de me encontrar com o Nelson Cavaquinho.

 

Como foi esse encontro?

– Eu trabalhava na Casa Edison e morava em Ramos. Descia de trem, né? Um dia passei no botequim São Jorge e vi um aglomerado em torno de uma mesa. Fui olhar e era o Nelson Cavaquinho, como sempre dando aquele show. Eu parei e fiquei ouvindo o Nelson. Quando voltei à noite, lá estava ele ainda… Um dia, passando por ali, depois de fazer a primeira parte de um samba, muito timidamente cheguei perto dele e falei: “Nelson, o que você acha disso?”. Ele olhou e falou: “ah, tá muito bom, meu filho”. Então, ele fez a segunda parte e ali fizemos o trato de só compor juntos. Foi uma parceria que durou quarenta anos, até a morte dele, em 1986.

 

Depois de Nelson Cavaquinho, quais foram seus principais parceiros?

– Eu e o Nelson tínhamos o trato de só compor juntos. Depois que ele se foi, outros compositores me procuraram. Entre eles o Monarco, o Nelson Sargento, o Alcir Pires Vermelho, o Tito Madi… Porque eu não podia compor com ninguém até então, devido ao trato que fiz com o Nelson Cavaquinho. Mas, depois disso, todos vêm me procurar aqui e eu estou muito feliz com o fim da minha carreira, nesse final da minha vida. E me surpreendeu muito quando me convidaram pra fazer esse disco que acabamos de gravar.

 

O senhor poderia falar um pouco sobre esse novo disco?

– O Moacyr Luz veio propor a mim fazer um disco pela Lua Discos, uma companhia de São Paulo, e eu fiquei muito feliz. Ele foi quem escolheu as músicas. Tem música inédita com o Nelson Cavaquinho, música que eu fiz com o Nelson Sargento, com o meu filho, Juarez… Ficou muito bonito o disco. Assim que acabamos de gravar, eles me deram uma cópia da fita e eu não me canso de ouvir. Eu estou muito agradecido ao Moacyr. Esse é o meu primeiro disco comercial e vai sair no fim do ano.

 

O senhor tem opinião formada sobre a onda do pagode?

– Eu acho que isso é um transcorrer natural das coisas, que vão se modificando com o passar do tempo. Só que eu não aprecio muito esse estilo, não. O ritmo eu acho bonito, mas das letras eu não gosto. Não gosto de pagode e jamais faria isso. Eu continuo com a minha tradição, com a minha poesia, naquele estilo do que eu fiz com o Nélson Cavaquinho. Tenho também muitas poesias, sonetos… Quer que eu recite um soneto?

 

Claro, por favor…

– Este é um soneto que fiz para a minha mulher, quando éramos namorados. Às vezes eu chegava na casa dela antes do horário combinado e ela estava descalça, lavando roupa. As irmãs diziam: “o Guilherme vem aí…” Ela então saía correndo para se arrumar. Então, eu fiz o soneto, que diz assim: “Sempre que eu chego inesperadamente/ E te encontro assim despreocupada/ Sinto minh’alma mais apaixonada/ E te adoro mais sinceramente// Com os pés descalços pisas levemente/ Sem perceber, bem sei, minha chegada/ E a tua tez tão linda e delicada/ Ao teu carmim é bem indiferente// Mas quando vês que estou te admirando/ Qual borboleta no buquê voando/ Teu rostinho envolves na pintura// Não julgues mal minha sinceridade/ Mas quando voltas cheia de vaidade/ Trazes oculta a tua formosura”.

 

Qual a recordação que o senhor tem de Vila Isabel?

– Eu morava na Vila, que naquele tempo não tinha o movimento que tem hoje. Então, eu andava de patinete na Avenida 28 de Setembro e conhecia a mãe de Noel de passagem. Passava em frente da casa deles, que foi demolida depois, e via ela de cabeça branquinha. Eu passava também no bulevar e via o Noel bebendo no botequim. Gritava para a turma: “olha lá o Noel”. Ele já era um ídolo naquele tempo, um sujeito muito admirado. Mas eu era garoto e, infelizmente, nunca pude me aproximar dele. Outras vezes ele passava de carro na Rua Teodoro da Silva, paquerando. Ele e o Chico Alves, o carro indo devagarinho. Aquele negócio de seguir as moças na calçada… E eu pegava carona sobre a roda traseira do carro. Ele então dizia: “desce daí, menino”. Então, o meu relacionamento com ele foi só esse, o que me orgulha muito.

 

Esse tipo de lembrança é o principal motivo do seu desejo de voltar a morar em Vila Isabel?

– Eu nasci em Vila Isabel e tinha vontade de morrer lá. Mas a dificuldade de grana ainda não permitiu. Os apartamentos naquela região do Rio custam muito caro. Agora vamos ver se com o novo disco eu consigo essa força. Aí eu vendo aqui e completo o dinheiro pra comprar um apartamento lá. Eu adoro aquela boemia de Vila Isabel. Quero voltar a participar daquela vida. Meu sonho é morar lá, é morrer lá. Mas se não der, eu morro aqui mesmo, em Bonsucesso, que é um lugar muito agradável. Estou muito bem aqui, mas tinha vontade de findar meus dias em Vila Isabel.

 

O senhor continua pintando quadros?

– Eu estou participando de uma exposição na Universidade Gama Filho. Eles inauguraram uma filial perto da Candelária. Uma moça veio aqui em casa e levou oito quadros meus para expor lá. Já faz quase um mês que a exposição está lá, mas eu ainda não tive tempo pra ver. São vários pintores, inclusive o Nélson Sargento. Eu só não tenho pintado ultimamente porque operei os olhos de catarata. Operei na Policlínica e erraram na cirurgia. De maneira que eu tive que reoperar o olho direito, o que melhorou a coisa. Estou enxergando bem, mas vou ter que usar óculos. Estou com saudade da minha pintura. Tenho inclusive uma encomenda para atender, que é a pintura de um cavalo muito bonito. Sou comendador da Ordem do Mérito das Belas Artes.

 

Como foi que o senhor recebeu a recente homenagem em Conservatória?

– Foi muito emocionante, muito bonito. Lá já tinha o museu do Vicente Celestino. Agora resolveram fazer um museu homenageando o Sílvio Caldas, o Nélson Gonçalves, o Gilberto Alves e eu. Levei tudo para lá, as medalhas, fotos, reportagens… Fiquei muito feliz com a homenagem. Adoro aquela cidade, onde sou muito querido. Agora mesmo inauguraram um bar que tem sobre o balcão uma parte da partitura do samba Quando eu me chamar saudade, que fiz com o Nelson Cavaquinho.

 

Fiquei sabendo que seu bisneto de três anos gosta de cavaquinho.

– É, o Gabriel… Ele tem um cavaquinho de brinquedo e toda vez que vem aqui em casa, ele pede pra eu pegar o violão: “pega o violão, vô, pega o violão”. Depois, ele pega a cadeirinha dele, se senta em frente a mim e diz: “vovô, dá o tom, dá o tom”.

 

O senhor acha que o samba é hereditário?

– Não sei, mas o meu pai tocava violão. Minha irmã Lena, que hoje mora em Brasília, toca violão. Meu filho é compositor. Eu comecei a tocar cavaquinho ainda pequeno, lá em Vila Isabel. Tocava para o português da venda e ganhava alguma coisa como pagamento, uma banana ou uma laranja. E gostava de desenhar as figuras da revista Tico-tico na calçada em frente à casa da dona Calota. Eu andava com um pedaço de carvão no bolso e o cavaquinho na mão. Já tinha vocação para as duas artes, o samba e a pintura.

 

Como o senhor vê a relação das gravadoras com a mídia, nos dias de hoje?

– A coisa mudou muito e ficou muito complicada. Antigamente era o artista que levava o disco às rádios, pedira para tocar e eles programavam. Hoje, as companhias é que fazem isso e ficou mais difícil. Mas não me preocupo com isso. Nessa altura da vida, eu não espero mais fazer sucesso.

*Morreu no Rio de Janeiro, em 2006.

Cunha de Leiradella foi quem me apresentou a esse grande escritor. Desde então, passamos a nos corresponder. Uma vez, minha ex-mulher e eu nos hospedamos em seu apartamento, na Tijuca, Rio de Janeiro. De outra feita, marcou comigo na sede da ABI na esperança de me apresentar a Carlos Drummond de Andrade, mas o poeta se resfriou e não compareceu. João era um grande amigo. Quando esteve em BH, jantou em nossa casa e gravei com ele a presente entrevista, publicada no EM, a 13 de outubro de 1987.

Um ilustre “desconhecido”

 

“Com o tempo, a História vai-se gastando e vira ficção, enquanto a lenda, por conter em si força e colorido, cresce e vira realidade.” Foi seguindo este preceito que João Felício dos Santos tornou-se o maior romancista histórico brasileiro dos últimos tempos. Nascido a 14 de março de 1914, na cidade de Mendes, alto da Serra do Mar, Estado do Rio, começou a carreira de escritor em 1934, quando publicou o livro de poesia Palmeira real. Já fez literatura infantil, contos, livros técnicos, roteiros e argumentos cinematográficos, dentre os quais Ganga Zumba e Xica da Silva, dirigidos por Cacá Diegues, e Parceiros da aventura, por José Medeiros.

João é também trovador e letrista musical, mas encontrou sua verdadeira vocação escrevendo romances históricos como João Abade, Major Calabar, Carlota Joaquina – A rainha devassa, Cristo de Lama, Ataíde azul e vermelho, Xica da Silva, A guerrilheira, Benedita torreão da sangria desatada, A forca vermelha e Ganga Zumba, o mais editado – prêmio da Academia Brasileira de Letras em 1962. É também autor dos romances Os trilhos e Margueira amarga, tendo parte de sua obra ilustrada por Caribé e Poty.

O escritor trabalhou no Ministério dos Transportes, onde exerceu, inclusive, o cargo de diretor de Comunicações. Foi jornalista por quase quarenta anos e hoje é conselheiro da ABI, tendo colaborado em diversos jornais, entre eles o Estado de Minas, o Jornal das Letras e o Suplemento Literário do (Diário Oficial) Minas Gerais. Do alto dos seus setenta e três anos, de passagem por Belo Horizonte, sempre bem-humorado, depois de saborear um feijão tropeiro com lombo e torresmo regado a vodca com laranja, João Felício dos Santos falou de sua obra e sua vida.

 

Você nasceu em Mendes e é cidadão honorário carioca, não é?

– Nasci em Mendes e como todos que nascem lá, sou mendigo… Sou cidadão horário carioca, embora não mereça esse título, porque eu não gosto do Rio. Gosto, por exemplo, de Belo Horizonte. Morei aqui no tempo em que a Avenida Afonso Pena não era nem calçada. Isso foi em 1924. Eu tinha um irmão que os médicos acharam que era tuberculoso e a minha mãe nos mandou para cá. Dizia-se que a poeira de Belo Horizonte curava aquele mal. E até hoje eu guardei uma recordação. Eu morava na Rua Sergipe, 84, na pensão da Dona Tininha e ela nos servia doce quente. E até hoje eu adoro pudim quente.

 

Mas você tem outras ligações com Minas, não tem?

– Sim, a família do meu pai era toda de Diamantina. Eu sou sobrinho-neto do primeiro bispo de lá, Dom Antônio dos Santos, que foi uma figura interessantíssima, mesmo no clero brasileiro daquela época. Ele brigou com o clero porque não mandava esmolas para Roma. Dizia que o povo brasileiro era muito pobre para mandar esmola pro Vaticano e gastava o dinheiro que arrecadava com a pobreza de Diamantina.

 

Quando foi que pintou a literatura na sua vida?

– Fui pro colégio muito cedo, já aos seis anos. Era jardim de infância, essas coisas. Era o Colégio Santos Ignácio, dos Jesuítas, e a única coisa que eu gostava era de escrever. Uma ocasião um padre mandou a gente escrever sobre um portão e eu escrevi sobre o portão velho do cemitério. E foi um sucesso, porque eu tinha apenas seis anos e como é que podia imaginar que um portão de cemitério tivesse aquela coisa lúgubre? Em compensação, a Matemática… Até hoje eu não sei tabuada. Tenho tanta idiossincrasia pelos números que ninguém entende quando eu escrevo um algarismo. Meu negócio é letra, é palavra. Modéstia à parte, eu tenho um vocabulário muito rico, porque sempre gostei de folhear os dicionários em busca de palavras novas.

 

Você morou com os índios. Dá pra falar dessa experiência?

– Eu estive com os índios há quase sessenta anos. Eram os índios jurumãs, uma tribo que ficava na Serra dos Dois Irmãos, naquele saco do Piauí com a Bahia. Fiquei lá durante três anos e oito meses, sem sair de lá pra nada, sem nenhum contato com luz elétrica, com cerveja, com a civilização. Quando eu saí da tribo já não tinha mais roupas. O sapato gastou completamente. Perdemos a noção do tempo.

 

Qual foi a coisa que mais te impressionou entre os índios?

– A coisa que mais me marcou foi a antiviolência. Eu nunca vi um índio violento. Nunca ouvi entre eles uma fala áspera, mais bruta. Nunca vi um índio gritar com uma criança ou com uma mulher. Eu nunca vi eles levantarem a mão ou dar um empurrão no outro. A maior mágoa que eu tenho é não ter ficado lá até hoje. Talvez eu fosse um pajé velho e não tivesse permitido exterminarem com a tribo, como já deve ter acontecido. Lá a gente não sabia quem era o pai ou a mãe. O indiozinho se machucava e o que tivesse mais perto era a mãe ou o pai naquele momento. Quando era um arranhão, a pessoa passava saliva no lugar e acabou. Se fosse um talho mais profundo, eles urinavam na mão e passavam no lugar. Eram os dois remédios principais deles: a urina e o cuspe. Com isso eles se arranjavam. 

 

Como você se considera como escritor?

– Não posso me considerar um escritor de primeira água, porque realmente não sou conhecido. Sobre isto tem uma anedota do Álvaro Moreira. O Alvinho me dizia: “ô, Felício, você com esse nome de João Felício dos Santos, nome de trocador de ônibus, nunca que você vai ser escritor na sua vida. Ou você arranja um pseudônimo ou não vai ser escritor”. E eu acho que ele estava certo, porque até hoje ninguém sabe que é João Felício dos Santos.

 

Como saíram seus primeiros livros?

– Como todo brasileiro, o primeiro livro que publiquei foi um de poesia chamado O canto da palmeira real. Aos dezessete anos eu dizia: “não procure saber de que maneira faço versos com lágrimas no rosto. Bebe o vinho, não cuide da parreira. A parreira certamente é ruim de gosto”. Publiquei esse livro em Natal, Rio Grande do Norte, e com uma sorte grande, porque eu nunca paguei para publicar um livro meu. O primeiro romance foi O pântano também reflete estrelas. Esse pântano são as pessoas simples da vida que também refletem coisas bonitas. É um livro que se passa durante o ciclo paulista do café.

 

E o primeiro romance histórico?

– O primeiro romance histórico foi João Abade. Nesse livro, eu escrevi a história de Antônio Conselheiro e de Canudos. Fui a Canudos e tive um choque. Era uma região horrível e miserável. Hoje está tudo sob as águas da represa de Sobradinho, se não me engano. Eu cheguei lá no fim de uma tarde chuvosa e fiquei num sótão de vidros quebrados e cheio de teias de aranha. A janela dava pra rua principal, uma rua cheia de lama, com galinhas e cachorros miseráveis. Três sírios sentados na porta de uma loja. Inclusive eu que fazer um elogio ao povo sírio. Um povo fabuloso, que foi o maior emigrante que o Brasil já teve. Então, eles estavam lá, sentados naquelas pilhas de fazendas muito sujas.

 

   E como você imaginou escrever a história de Canudos?

– Eu já conhecia a história através do romance de Euclides da Cunha (Os sertões). Ele havia contado a história de fora pra dentro e eu queria contá-la de dentro pra fora, partindo daqueles jagunços que atraíam os soldados para dentro da caatinga usando sinos e cincerros. Os macacos, que era como eles os chamavam, pensavam que eram cabras e adentravam a caatinga, famintos. Conheci lá um daqueles jagunços. Devia ter cinquenta e cinco anos, embora aparentasse ter quase 100. Perguntei a ele: “ô, Humberto, quantos macacos vocês mataram?” E ele se negava a falar no assunto. E eu insistia: “quantos, uns 300?” E ele: “ah, que é isso seu doutor? Pelo amor de Deus, foi muito mais”.

 

Como é escrever um romance histórico num país que carece de registros?

– É uma dificuldade. O último livro que escrevi foi sobre a vida da maior mulher pública do Brasil. Mulher pública no bom sentido. A Anita Garibaldi. E foi uma luta conseguir dados sobre ela. Tem historiadores que dizem que ela nasceu em São Paulo, outros dizem que foi em Santa Catarina. Então, a gente tem que criar muita coisa em cima da verdade. A verdade não tem muita força. Nunca dei muita importância a ela. Procuro ser verdadeiro no nome das pessoas, nas datas e números. Mas o resto é fantasia. Afinal, quem sabe o que pensou Getúlio ou Tiradentes na hora da morte? Inclusive não tenho bom relacionamento com os historiadores. É claro que tenho amigos entre eles, como o Hélio Silva, por exemplo. Mas, em geral, acho o historiador um romancista fracassado. Ele se prende à história porque não tem força de imaginação.

 

Qual o personagem histórico que você mais gosta?

– Todos eles me apaixonam, embora tenha alguns que… Veja por exemplo o Conde de Linhares. Ele foi um homem fabuloso, mas Carlota Joaquina, inimiga dele, foi uma personalidade tão forte que me roubou a história. Acabei escrevendo a vida dela. E isso acontece muito. Eu sempre digo que a personagem é como maionese. Você vai pondo ovo, vai batendo e, de repente, ela toma ponto e fica pronta. Afora, se depois de certo tempo não tomar ponto, então é melhor rasgar e jogar fora.

Você atuou nos filmes que escreveu. Como foi essa experiência?

– Eu gosto de atuar nos filmes que escrevo. Sou um ator frustrado. No Ganga Zumba, eu faço um fazendeiro que logo toma uma punhalada e morre. No Cristo de lama, eu fui Lorena, governador de Minas. Em Quilombo, fiz o governador de Pernambuco. Em Xica da Silva, o padre. E em Parceiros da aventura, um bêbado caído no botequim. Mas eu acho que sou mesmo é um grande canastrão.

 

Como você se afastou do serviço público?

– Fui funcionário do Ministério de Aviação durante anos. Ocupei vários cargos, até que a gloriosa e redentora revolução de 1964 me anulasse. Fui convidado para vários cargos, mas chegava lá no tal de SNI (Serviço Nacional de Informações) e ele riscava tudo com muita honra para mim. Essa revolução, que salvou o Brasil, só não me deu a honra de ser cassado.

 

Você conheceu grandes homens, entre eles, dois mineiros: O Juscelino e o Carlos Drummond…

– Ah, o JK… Eu fui muito amigo do JK. Almocei muitas vezes com ele, conversamos muito. Isso depois dele já ter sido cassado pela redentora, estando já com onze processos em cima. Tenho várias cartas dele. Com Carlos eu convivi um pouco menos. Mas eu gostava muito dele. Uma coisa que me impressiona é que ele me falou pouco antes de morrer que gostaria de entrar para a Academia Brasileira de Letras. Ele disse: “todo mundo fala que eu devia entrar pra Academia. Eu gostaria muito, mas não tenho nada para dar a ninguém. O voto é secreto, então você pode estar certo de que eu não seria eleito”. Isso me calou fundo. Se algum dia eu tive a veleidade de entrar pra Academia, o que não verdade, agora mesmo é que eu não terei mais essa veleidade.

 

Você foi grande amigo do Campomizzi Filho e perdeu também um filho recentemente. Como é a morte pra você?

– Eu gostava muito do Campomizzi. Foi uma grande perda para mim e apara o Brasil. A morte do meu filho Alexandre foi outra grande perda. Ele era capitão aviador da FAB e sumiu num voo de teco-teco, indo de Belo Horizonte para o Rio. A morte para mim é o seguinte: Tudo que passou não existiu. Meu filho nunca existiu pra mim. Passou, acabou. Agora isso é uma filosofia muito complexa, entraríamos no campo da religião e eu sou um agnóstico. A Carmem, minha mulher, até hoje se sente arrasada com a morte do filho. Eu não. Sinto é inveja dele. Poder morrer num avião, desaparece, sem pagar medido, casa de saúde, enterro, caixão, cemitério, essa coisas, isso é o ideal. E ele morreu fazendo o que gostava. Ele adorava voar. Voei junto com ele muitas vezes. Ele adorava aquilo, gostava de voar na chuva e desapareceu em meio a uma tempestade.

 

Você acredita em Deus?

– Não sei. Eu acho que ele não acredita em mim, embora eu não tenha muito do que reclamar. Agora, se eu acredito nele, eu realmente não sei. Para mim, Deus é alguma coisa que não tem interesse nenhum pela gente. Ele é o grande indiferente… É isso.

  *Morreu no Rio de Janeiro, em 1989.

Confesso que nunca li um livro dele. Nosso encontro se deu em 11 de março de 1992 e a matéria foi publicada no dia seguinte. Como era responsável pela página de livros do EM, lá fui eu ao encontro do escritor que viera conhecer o Brasil. Foi um bate-papo mediado por um intérprete, mas acho que pouco se perdeu da essência da nossa conversa. Updike foi um dos autores mais importantes dos Estados Unidos na segunda metade do século XX. Um intelectual respeitado pelas ideias e pelo talento literário.

A timidez por trás da fama

 

Um dos principais autores norte-americanos das últimas décadas, John Updike se despede hoje de Belo Horizonte, rumo ao Rio de Janeiro, onde deverá conhecer Rubem Fonseca e Chico Buarque. Afinal, há algo em comum entre os três além da literatura. Todos são editados pela Companhia das Letras, que acaba de colocar nas livrarias sua tetralogia do Coelho (Coelho corre, Coelho em crise, Coelho cresce e Coelho cai). 

Ganhador de dois prêmios Pulitzer, Updike é um típico cidadão americano preocupado com a decadência econômica de seu país, cuja dívida chega a 400 bilhões de dólares e cujo presidente se esforça em ser reeleito, mesmo que para isso tenha que voltar ao Japão para pedir aos empresários de lá maior flexibilidade na concorrência que praticam com seus produtos em território americano. 

Assim como o autor, o personagem da tetralogia do Coelho – Harry Rabbit Angstrom – viveu todos os períodos econômicos do seu país, desde o apogeu do pós-guerra, passando pela guerra fria, sobrevivendo ao Vietnã e constatando que o sonho acabou. Em outras palavras, é como se Angstrom fosse a própria encarnação americana, ou o mais legítimo dos sobrinhos do velho Sam. O próprio nome, Angstrom, pode ser dividido em Angst, do alemão que significa medo ou angústia, e Strom, que significa corrente.

Mas nem só de Coelho vive Updike. O autor escreveu mais de uma dezena de obras importantes, algumas adaptadas para o cinema, como As bruxas de Eatwick, grande sucesso de bilheteria também no Brasil. Crítico literário preocupado não apenas com a literatura de seu país, mas aberto para toda boa literatura, inclusive latino-americana, confessa-se admirador da obra de brasileiros como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Numa rápida entrevista ontem pela manhã, pouco antes de embarcar para Ouro Preto, Updike reforçou a impressão que já passava por meio de seus artigos e de outras entrevistas. Simpático e sincero, falando sempre num tom realista, ele disfarça a timidez com um sorriso quase mineiro, mas sem se furtar a encarar a questão de frente, com a desenvoltura de um verdadeiro cowboy nascido num vilarejo da Pensilvânia há sessenta anos, numa época em que os Estados Unidos ainda viviam sob os efeitos do crach da bolsa de Nova York sem, contudo, perder a pose.

 

A literatura americana foi muito marcada na primeira metade do século XX por autores como Hemingway, Faulkner e Steinbeck. Como o senhor vê a literatura americana de hoje, em comparação à daquela geração?

– A literatura americana contemporânea continua sendo muito importante. A diferença básica é que hoje ela não traz notícias novas, de outras partes do mundo, como aconteceu até a Segunda Guerra. Hemingway, Faulkner e Steinbeck, entre outros, moraram na Europa e de lá irradiaram informações não centradas na América e, com isso, influenciaram muito mais autores de outras partes do mundo do que os autores que os sucederam.

 

(Updike lembra, por exemplo, que o colombiano Gabriel García Márquez reconhece profunda influência recebida de William Faulkner).

 

O senhor explicaria isso melhor?

– Os autores americanos da primeira metade do século XX tinham mais energia do que aqueles que vieram depois. Daí a influência que exercem até hoje sobre os escritores de várias partes do mundo. Nos anos 1970, os autores latino-americanos foram muito mais importantes que os norte-americanos. Gabriel García Márquez, Julio Cortazar e Jorge Luis Borges passaram a influenciar mais que os autores americanos.

 

O senhor tem reconhecido publicamente a decadência econômica e social do seu país. Gore Vidal defende a tese de que o que está no fim é a hegemonia da raça branca. Para ele, o mundo será dominado economicamente pelos negros e amarelos a partir dos próximos dez anos. O senhor concorda com ele?

– Eu penso diferente de Gore Vidal. Não quero opinar sobre a decadência hegemônica, embora reconheça que a hegemonia europeia tenha acabado. O que eu penso é que a partir de agora as riquezas do mundo tendem a ser mais bem distribuídas entre todos os povos e não a se concentrarem nas mãos desse ou daquele povo.

 

(Updike acredita, por exemplo, que o projeto de unificação da Europa talvez não venha a ser tão bem-sucedido quanto se espera).

 

O que o senhor pensa a respeito do embargo econômico americano a Cuba?

– Eu não fui proponente do boicote a Cuba. Isso inclusive foi feito durante a guerra fria, uma coisa que já acabou. Portanto, acho que está na hora de se acabar também com esse boicote. Mas creio que isso só será possível com a morte ou a aposentadoria de Fidel Castro.

 

(Updike lembra que, em 1964, quando esteve na URSS, percebeu que os soviéticos não fumavam o tão famoso charuto cubano. Achou ridículo o fato de os norte-americanos, bons consumidores do produto, terem de importá-lo do Canadá, já que seu país não compra nem vende nada para a Ilha de Fidel).

 

Qual a imagem que o senhor tinha e qual a imagem que o senhor leva do Brasil após essa visita ao país?

– Eu tinha aquela imagem folclórica e exótica do candomblé e do carnaval, da imensa floresta com poucos índios e muitos bichos. Uma energia muito forte. Essa visão foi um pouco reforçada pela leitura de Tristes trópicos, de Levy Strauss, e pelo filme Orfeu do carnaval, de Marcel Camus. Agora eu vejo o Brasil mais ou menos como os Estados Unidos. Um país grande demais, com uma gente esperançosa e gentil. Eu fiquei impressionado com São Paulo, que jamais imaginei ser tão grande.

 

O que o atraiu a Belo Horizonte e, especialmente, Ouro Preto?

– Eu não queria limitar minha visita ao Brasil às cidades costeiras. Acho que, assim como nos Estados Unidos, o coração do Brasil bate mais forte no interior. As cidades costeiras não são as mais típicas de um país. Eu queria conhecer o coração brasileiro. Ouro Preto foi a cidade escolhida pela poetisa Elisabeth Bishop e isso também me atraiu, além da arquitetura e da arte barroca.

 

O que representam os prêmios para o senhor?

– Os prêmios são estimulantes, mas um escritor não escreve necessariamente para ganhar prêmios ou competir com seus colegas, como fazem os atletas numa olimpíada.

 

O senhor gostaria de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura?

– O Nobel é um prêmio fora da imaginação. É um prêmio incrível! Mas hoje, mais do que nunca, ele é dado a escritores num sentido global. Em todo o mundo existem bons candidatos e os Estados Unidos já tiveram muito escritores premiados em outras épocas.

 

Como conhecedor da obra de Machado de Assis, o que o senhor diria dele em comparação com um Dostoievski, por exemplo?

– São dois autores bem diferentes. Dostoievski é um autor caudaloso, quente demais. Machado de Assis é um autor contido, preciso, bem controlado. Mas é, sem dúvida, um escritor muito importante, universal.

*Morreu em Massachusetts, nos EUA, em 2009.

Confesso que sempre tive dificuldade para ler Saramago, mas isso nunca me impediu de admirá-lo. Fui o primeiro a entrevistá-lo em Minas Gerais, em sua primeira visita oficial ao Brasil. Em companhia dos escritores Pedro Tamen e Isabel da Nóbrega, sua mulher naquela época, o romancista veio conhecer Ouro Preto. A entrevista foi publicada no Suplemento Literário do Minas Gerais, em 3 de dezembro de 1983. Quinze anos depois, desembarquei em Lisboa justamente no dia em que ele ganhara o Prêmio Nobel.

A nova safra portuguesa

 

A literatura portuguesa começa a refletir a experiência pós-salazarismo e marcha para a total e sistemática libertação das influências colonizadoras da cultura francesa. Rica principalmente em qualidade e possuidora de uma variada gama de grandes e importantes escritores, tal literatura visitou o Brasil no mês de setembro, representada por 11 importantes autores que estiveram na Bienal Internacional do Livro de São Paulo, e que depois se dividiram em grupos e se dirigiram a outros estados brasileiros.

Minas Gerais mereceu a visita de José Saramago, Isabel de Nóbrega e Pedro Tamen. Saramago nasceu em 1922, é jornalista, ficcionista e poeta. Autodidata, entre outras profissões, ele foi diretor de produção e diretor literário numa editora lusitana. Dirigiu também o jornal Diário de Notícias em 1975 e é hoje um dos escritores mais populares de Portugal, com 16 livros publicados.

Como o senhor vê essa visita de 11 escritores portugueses ao Brasil? Qual a principal importância desse fato?

– Eu penso que devemos dividir essa importância em duas: a importância que tem pra nós e a importância que talvez tenha pra vocês. A importância que tem pra nós, e particularmente pra mim, que é a primeira vez que venho aqui, é a de confirmar por contato com escritores que eu conhecia já, quer por leitura, quer apenas de nome, e mais aqueles escritores das gerações mais recentes e pouco conhecidos em Portugal. A vossa literatura está com muita força e muita pujança e não está em crise. O Brasil pode estar, como nós estamos do outro lado do Atlântico, numa crise econômica, mas não há crise cultural. Quanto à importância para o Brasil da nossa vinda aqui, seria um pouco estúpido da minha parte supor que nossa vinda possa influir os caminhos próprios da literatura brasileira… Desejamos que a nossa vinda sirva para que os leitores brasileiros pensassem um pouco mais e atendessem um pouco mais a uma literatura que está a ser feita em nossa terra, que me parece a mim ter mérito suficiente para que o leitor brasileiro se interesse. É possível que os escritores portugueses não sejam muito conhecidos do público brasileiro, mas são com certeza bastante conhecidos e muito estimados nas faculdades, por professores de literatura portuguesa e por estudantes.

 

Como é o seu contato com a literatura que hoje é feita em outros países de língua portuguesa, como Angola, por exemplo?

– Não tenho grande contato com aquilo que está a se fazer nesses países, nas antigas colônias. Eu poderia enumerar aqui meia dúzia de nomes como Antônio Jacinto e Ondino Vieira, mas é um conhecimento meio disperso porque, embora em Portugal já se editem autores desses países, essa divulgação é feita de maneira um pouco anárquica, não organizada. E por razões de concentração no meu próprio trabalho eu me sinto nesta altura mau leitor. Não deixei de ler, mas não leio com aquela persistência e continuidade que já foram minhas. Agora levantou-se um problema sério. É que eu vou daqui com tantos livros que tenho que ler por dever e satisfação, e terei que rever o meu comportamento como leitor, porque os escritores brasileiros com quem estive foram tão gentis que terei que me tornar agora um melhor leitor e é possível que a literatura que se está fazendo em outros países de língua portuguesa ganhem com esse balanço.

 

Quais os escritores brasileiros que o senhor mais leu? 

– Eu não posso dizer que há mais uns que outros. Não vinha também a fazer uma leitura sistemática, mas há nomes para além dos grandes escritores do passado, como o que eu acho ser o vosso maior escritor deste século, que é o Graciliano. Para mim, o grande escritor brasileiro é o Graciliano Ramos. Conheço Jorge Amado e leio livros de Jorge Amado, Autran Dourado, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector. Nomes que li mais recentemente, como Orígenes Lessa e, mais para trás, o Raul Pompéia. Enfim, nomes, e sem esquecer o insubstituível Machado de Assis. De gente mais recente eu só conheço o José J. Veiga, o Evaldo Coutinho, o Márcio de Souza e estão com certeza a fugir nomes da memória.

 

O senhor integra o grupo que preferiu vir a Minas. Por que essa escolha?

– Eu preferi vir aqui. Há uma razão essencial. É que eu acabo de ser publicado aqui, após ser publicado em Portugal no ano passado o meu romance Memorial do convento, que decorre no século XVII entre 1711 e 1739 e que aborda sobre a construção do convento de Mafra, que foi financiado com riquezas do Brasil e, particularmente, aqui de Minas Gerais. Ouro, diamante e tudo mais. Sendo assim, além do meu interesse pelo Barroco, eu não concebia sequer como possível vir ao Brasil e não ir a Ouro Preto e Congonhas. No fundo, esse meu desejo de vir a Minas, Ouro Preto e Congonhas é para eu confirmar num sentido próprio, pôr a mão em cima, já que eu via em fotografias. Eu tinha um conhecimento a duas dimensões e agora quero ter a três dimensões, pondo as mãos nos profetas do Aleijadinho e vendo Ouro Preto, pondo as mãos em cima.

*Morreu em Tiás, Espanha, em 2010.

Entrevistei o menestrel maldito uma única vez, a princípio para o EM. Contudo, a matéria foi censurada e acabei vendendo-a para o Minas Gerais (Diário Oficial), no qual foi publicada em 3 de agosto de 1990. Juquinha estava em BH para apresentar o show Vergonha, no Palácio das Artes. Elegante e bem-humorado, mandou servir champanhe e caviar para os jornalistas que compareceram à entrevista coletiva, realizada num pequeno hotel localizado no coração da Savassi.

O menestrel do Brasil

 

Por que Vergonha, o nome do show? Juquinha responde: “porque o show é uma vergonha. O Brasil é uma vergonha. Somos um país onde todo mundo torce para prender o ladrão e, quando prendem o ladrão, a imprensa vai cobrar os direitos humanos dele e não os da vítima”. Juca Chaves é assim mesmo: irreverente e demolidor. Mas é sobretudo um cavalheiro, capaz de interromper uma entrevista para cumprimentar o garçom. Aos 51 anos, ele defende a tese de que “ser jovem é saber envelhecer”. Recordando o início da carreira, há mais de trinta anos, declara: “quando eu decidi me dedicar à música popular, ela era a música popular do Brasil e não sofria tanta influência como hoje”. Sobre o rock, dispara: “o rock brasileiro já nasceu decadente, porque é a imitação de uma coisa que já é ruim”.

Nascido Jurandir, a 22 de outubro de 1938, Juca Chaves cresceu em São Paulo ouvindo Schumann, Schubert, Beethoven, Dorival Caymmi, Lamartine Babo e Luiz Gonzaga. Seu pai, um judeu austríaco naturalizado brasileiro, foi dono da primeira fábrica de plástico do país. Aos seis anos, o menino Juquinha compôs sua primeira música, intitulada Hino aos cachorros. Já naquele tempo, demonstrava preocupação ecológica e seu respeito pelos animais, o que mais tarde o levaria a lançar a campanha “Troque seu cantor de rock por um cachorro”. Ainda na infância, revelou seu caráter irreverente e contestador: “a professora batia na minha mão e eu batia na mão dela”. Ele estudava no Colégio Mackenzie, um dos mais grã-finos de São Paulo. Mesmo sendo rico, o pai o empregou num banco, obrigando-o a cortar o cabelo e fazendo diminuir sua produção musical.

Para o menestrel, “não há mais música no Brasil. E a culpa exclusiva é da má formação cultural dos diretores de televisão. O Brasil é um país que pouco lê e muito vê, daí a responsabilidade dessa gente. A coisa chegou a um ponto que, se eu perguntar a um sujeito se ele já viu um concerto sinfônico, ele vai pensar que isso é marca de camisinha. Eu toque fagote. Se eu disse pra uma menina ‘quer que eu mostre como é que se toca o fagote?’, ela vai dizer: ‘põe pra fora que eu chamo a polícia’”. 

Diante dos mais variados temas, Juca Chaves é direto. Responde sem pestanejar, sem medo dos rótulos que poderá receber. Foi combatido de todos os lados, da extrema direita à extrema esquerda, mas isso só serviu pra reforçar sua principal convicção: “a liberdade é o maior dos bens que um homem pode ter”.  

 

Como você vê a crise do Brasil?

– Só se fala em crise econômica, mas existem crises piores, como a crise na saúde e na cultura. Crise de identidade nem se fala, que essa nós já perdemos há muito tempo. A solução é fazer uma guerra contra o Japão e a gente perder. Nosso problema não é dinheiro. O Brasil é um país rico demais. O povo é que é pobre. Precisamos transformar o Brasil num país pobre com um povo rico, como é na Dinamarca, na Suécia, na Noruega.

 

Você sempre critica a arquitetura brasileira.

– A arquitetura brasileira é de extremo mau gosto e a gente só nota isso depois que vai à Europa. 

 

(Quando compôs Demolição, estudantes de arquitetura o convidaram pra ser paraninfo da turma. Juca disse que aceitava desde que a cerimônia de formatura fosse feita ao ar livre).

 

Você acha que o Brasil é um país hipócrita?

– Afundou o Bateau Mouche e o Brasil inteiro falou. Na mesma época, em Belém do Pará, afundou um ita com 230 desgraçados e pobres, e nenhum artista se levantou pra falar neles. Todo mundo se preocupa com a AIDS no Brasil, enquanto a difteria mata cinquenta vezes mais. Ninguém se preocupa, porque é doença de pobre.

 

Como você vê a questão do meio ambiente, você que foi um dos primeiros a chamar atenção para o assunto?

– A ecologia deveria ser aprendida no colégio. Se você não respeitar a natureza ou um animal, não pode respeitar nem o seu semelhante, que é um animal bem inferior. O racional é bem inferior ao irracional, pois ele não tem o dom de induzir e sim de deduzir. A Floresta Amazônica é uma mulher muito bonita, que foi estuprada e mal-amada por um péssimo marido que se chama brasileiro, e que anda com ciúme de um amante estrangeiro que nem sabe ainda o que vai fazer.

 

Qual o seu envolvimento com a Bossa Nova?

– Assim como o Elvis Presley virou o rei do rock sem nunca ter sido, pois o rei era o Bill Harley, eu virei o rei da Bossa Nova depois de Presidente bossa nova (música inspirada no presidente JK). É que o Elvis sabia mexer. Se o americano não sabe mexer na cama, quanto mais no palco… O defeito da Bossa Nova foi não ter a alegria que eu trouxe. O pessoal era muito quadradinho, muito introspectivo.

 

Você sobreviver à ditadura militar. Como foi aquele período pra você?

– Pior que a ditadura militar é a ditadura global. A Rede Globo e a revista Veja são proibidas de me citar. Dizem que eu não faço o tipo deles. Também não tem importância, porque elas também não fazem o meu tipo.

 

Como você se relaciona com o dinheiro?

– O dinheiro vale o que ele compra. Guardar dinheiro é perigoso, porque pode vir um rapaz de asa-delta e tomá-lo da gente. 

(O governo Collor havia lançado um novo plano econômico e confiscado o saldo das cadernetas de poupança).

 

O novo pacote econômico penalizou inclusive a cultura.

– Todo mundo fala que a cultura sofreu com o Plano Collor, mas que área da cultura? A minha, por exemplo, nunca dependeu de governo nenhum. Quem sofreu foram os gigolôs do dinheiro público, porque eram pessoas que viviam à custa do governo. Nunca ouvi dizer que uma Dercy Gonçalves ou uma Bibi Ferreira recebessem verbas do governo.

 

E a mordomia dos políticos, será que vai mesmo acabar?

– Pena que não foi cortada de todo. O presidente ainda não teve tempo de cortar a sua própria mordomia e a de sua família. Mas ele ainda chega lá (risos debochados).

 

Você tem medo de morrer?

– Nunca me preocupei com a morte, pois é o único contrato que eu já fechei. Sei que vou morrer um dia, embora digam que eu sou imortal. Sou um materialista e vejo que os espiritualistas é que têm medo da morte, talvez porque o céu não seja tudo aquilo que eles apregoam ou porque eles saibam que o que fazem não faz justiça ao céu ou ao deus que eles imaginam. As pessoas criam seus deuses para depois usá-los. Quanto mais religiosa a pessoa, mais hipócrita ela é.

 

Juca Chaves por Juca Chaves.

– Já foi considerado o menestrel maldito. Hoje ele é apenas o menestrel do Brasil.

* Morreu em Salvador, em 2023.

Certo dia, o telefone da minha casa tocou e era o famoso Juca de Oliveira oferecendo uma entrevista para a coluna Teatro Vivo. Ele estava em cartaz no Palácio das Artes com a peça Motel Paradiso, sob a direção de José Renato, e eu ainda não o havia procurado. Não me lembro onde foi que nos encontramos. Sei que Maria Della Costa também estava no elenco, pois a entrevistei na mesma ocasião. A reportagem com o ator e autor da peça foi publicada no EM, em 28 de julho de 1984.

Renasce a dramaturgia nacional

 

Juca de Oliveira começou no teatro profissional logo após fazer quadro anos de Escola de Arte Dramática. Paulistano de nascimento, “descendente de italianos e caipiras”, como gosta de lembrar, ele hoje é um dos atores mais populares do país. A primeira peça na qual atuou foi A Semente, de Gianfrancesco Guarnieri, texto que enfrentou diversos problemas com a censura durante o regime militar. Sua subida no palco se deu no Teatro Brasileiro de Comédias, justamente quando este se encontrava sob a direção de Flávio Rangel e de outros nomes do grupo Teatro de Arena.

Associando-se a Guarnieri, Augusto Boal, Flávio Império e Paulo José, Juca foi um dos donos do Arena e participou da remontagem de Eles não usam black-tie, de Guarnieri. Fez também O noviço, de Martins Pena, e A mandrágora, de Nicolau Maquiavel. Após o golpe militar de 1964, exilou-se na Bolívia juntamente com Guarnieri. Ao retornar, atuou em telenovelas de sucesso, como Nino, o italianinho, A fábrica, Fogo sobre terra e Saramandaia. Motel Paradiso é sua segunda peça como autor, já que escreveu e montou Baixa sociedade. Antes, sua vinda mais recente a Belo Horizonte foi interpretando Otelo, de Shakespeare.   

 

Do seu ponto de vista, o que é interpretar um personagem?

– Interpretar significa você romper com determinados mitos, enquanto vive as personagens da dramaturgia universal. Significa você socializar novos comportamentos. O teatro é uma coisa fantástica, porque você acaba fazendo uma análise profunda do ser humano. O ator acaba entendendo bem o ser humano, porque estuda esses ser em profundidade na medida em que estuda a si mesmo. Interpretar, portanto, significa você mergulhar dentro de si mesmo e caminhar por caminhos que não conhece, mas que estão dentro de você.

 

Como você vê a participação partidária do artista? Será que ocupando cargos públicos o artista não perde a possibilidade de exercer a crítica social? Ele não foge do seu real papel, que é interpretar o outro?

– O artista foi golpeado nesses anos de governo autoritário e violento. Nós, artistas, sofremos muito com esse processo, esse período de repressão de vinte anos. Os teatros foram invadidos e a cultura não foi mais considerada como prioritária, né? Os escritores tiveram que abandonar o teatro pela impossibilidade de trabalhar por causa da atuação da censura. Isso aconteceu com o Dias Gomes, com o Guarnieri, com o Jorge Andrade – que inclusive morreu alguns meses atrás. E aconteceu com o Lauro César Muniz, com o Roberto Freire e com o próprio Vianinha, e com o Paulo Pontes. Eles passaram para a televisão, que não tem esse aspecto de discutir nossa realidade. Mas essa passagem foi por uma questão de mercado de trabalho e de sobrevivência. Durante esse período de ditadura, o artista sempre se colocou do lado do povo e da democracia. Hoje, de uma forma mais contundente, o artista está atuando inclusive como ativista político.

Mas, ocupando cargos públicos, ele não acaba saindo dessa possibilidade de exercer a crítica social, já que se compromete com o poder?

– Aí seriam poucos. Em São Paulo, pelo menos, acho que é só o Guarnieri que foi pra Secretaria de Cultura do município. Inclusive, porque queríamos que ele fosse pra secretaria. Mas eu concordo com você. Eu acho que ao artista compete realizar a sua arte. Eu não vejo com bons olhos os cargos públicos e a disputa do poder pelo artista. Não acho isso positivo. Eu acho que o espaço que nós temos que reconquistar para começarmos a rediscutir a nossa identidade cultural, completamente descaracterizada, é infinitamente mais importante do que fazermos presença numa secretaria de cultura. Eu acho que existem intelectuais que estão infinitamente melhor preparados do que nós para, inclusive, defender nossos interesses. É uma pena defasar o nosso contingente já tão defasado pela televisão, colocando mais pessoas em função do setor público. Concordo com você plenamente. Em todo caso, não dá para caracterizar como significativo esse êxodo para a administração pública. 

 

Uma questão que tem sido muito discutida ultimamente é a questão da dramaturgia. Afinal, você acha que ela está respondendo à nossa realidade?

– A censura acabou jogando a maioria dos autores de teatro para a televisão e já falei disso. Mas a situação já está se modificando. Essa chamada abertura política coincide também com um princípio de análise da atividade cultural. Há um processo de rediscussão da nossa identidade cultural a partir até mesmo de discussões na SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), onde o próprio Celso Furtado começou a discutir o problema da criatividade. Estamos discutindo mais seriamente o verdadeiro papel do artista e do intelectual na sociedade contemporânea. Estamos começando a escrever de novo. Eu, por exemplo, já estou terminando o meu quarto texto e procuro refletir o real, o concreto. O critério do escritor brasileiro de hoje é que ele fique mais próximo do seu irmão. O modelo cultural colonizado deixou de ter sentido. As coisas estão mais palpáveis. O problema do BHC (Banco Nacional da Habitação), a questão salarial, o ridículo de uma situação em que os governantes querem permanecer no poder, mesmo a despeito da negativa da totalidade da população. Esses são os temas, é a nossa realidade e sentimos isto de forma contundente e direta. Um artista de sensibilidade não pode ignorar o fato de que oitenta e seis por cento da população brasileira não têm o número suficiente de calorias para existir. Então, existe uma discussão séria em torno da dramaturgia e há a preocupação do artista em ocupar novamente seu verdadeiro espaço, que é o teatro. Pois não vai ser através da televisão que vai se recapturar a nossa identidade cultural.

 

Fale um pouco do seu Motel Paradiso.

– O Motel Paradiso faz parte de uma trilogia, ou mesmo de uma tetralogia, mais ou menos com o mesmo tema que vai se desenvolvendo. A primeira peça foi Baixa sociedade, comédia que trata do confronto entre o operário desempregado e o sistema financeiro que o oprime e explora. O mesmo universo se repete em Motel Paradiso, que é uma comédia de costumes. Uma mulher de classe média, aos vinte e quatro anos de casada, funcionária pública por volta dos seus cinquenta anos, descobre no dia do aniversário de casamento que o marido tem um caso com a mulher do presidente do banco onde trabalha. Dizem que a mulher se emancipou e que ela é dona de sua existência. Mas a mulher continua sendo presa e serva da luxúria, como diziam Marx e Engels. Ela continua sendo uma escreva e eu constado isso nas mulheres que vejo à minha volta. As mulheres continuam sendo altamente domésticas e podendo menos que os maridos. 

Acha que está livre, que foi libertada, mas não foi.

– Ela acha que foi, mas não foi. A sociedade diz que sim, mas ela continua sendo escrava. Continua tirando chinelo e fazendo massagem. Continua não indo ao motel, enquanto o marido vai ao motel.

Seria até uma questão cultural, o domínio das mulheres pelos homens?

– Essa tese é discutida. E discutimos também a fantasia da mulher como o fato dela também ter tesão sexual e de saber o tempo todo que é traída pelo marido. Mas é uma peça que discute também os escândalos financeiros e a corrupção administrativa. É uma peça muito moderna e extremamente atual. Daí resulta o seu sucesso.

Uma das mulheres mais belas de sua geração, a autora de Ciranda de pedra e de tantos outros livros de sucesso era cativante. Tive a oportunidade de entrevistá-la na cidade de Caxambu e a matéria foi publicada no EM, em 31 de março de 1996. Conversamos num intervalo do Encontro Estadual de Escritores e aproveitei para dar a ela um exemplar do meu romance Palmeira seca. Depois de ler o livro e a entrevista, Lygia enviou-me uma carta cheia de gratidão e elogios. Realmente, uma pessoa admirável.

Uma escritora na noite escura

 

Considerada uma das mais importantes autoras nacionais, a paulista Lygia Fagundes Telles roubou a cena no primeiro Encontro Estadual de Escritores, realizado em Caxambu. Convidada para participar da abertura do evento, no qual representou a Academia Brasileira de Letras, a escritora aproveitou para autografar a coletânea de contos A noite escura e mais eu, lançada recentemente pela Editora Nova Fronteira. Saudada pelos demais presentes, ela se transformou na musa do encontro e conversou conosco com exclusividade.

Lygia Fagundes Telles não revela quantos anos tem, mas garante que é da Idade da Pedra. Seu nome foi inspirado na principal personagem feminina do livro Quo vadis, adaptado para o cinema. A exemplo de Vinicius de Moraes, se fosse homem, se chamaria Marcus Vinicius. Contista e romancista, ela começou a escrever nos tempos de menina. Formada em direito pela USP, estudou também na Escola Superior de Educação Física, da mesma universidade. Foi casada com Goffredo Telles Júnior e com o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, sendo mãe do cineasta Goffredo da Silva Telles Neto.

A consagração veio em 1954, com o clássico Ciranda de pedra, romance que já mereceu várias edições e adaptações para o palco e a TV. Dez livros e vários prêmios depois, presente também em dezenas de antologias, Lygia Fagundes Telles foi a terceira mulher eleita para os quadros da ABL. Com o inseparável cigarro entre os dedos, ela esbanja carisma, inteligência e simpatia.

 

Como é a sua ligação com Minas e os mineiros?

– Eu tenho uma ligação muito profunda e intensa com Minas Gerais. Acho que isso vem do meu avô, Moura Azevedo, que era médico em Cambuquira. Eu sempre passava férias com mamãe em Caxambu. Ficávamos no Hotel Glória e ela dizia que aqui eu encontraria meus futuros pretendentes. Tenho boas lembranças daquela época e muitos amigos em Minas. Tenho amigos queridíssimos em Belo Horizonte.

 

Você acha o mineiro parecido com o paulista?

– Eu dizia isso sempre ao Carlos Drummond de Andrade. Acho que o mineiro se parece muito com o paulista. Só que os mineiros são mais secretos. Então, o Carlos dizia que os paulistas são mais sonsos. Lembro que uma vez nós fizemos uma serenata na casa da Henriqueta Lisboa. Estávamos eu, ele e o José Condé. Fomos cantando Elvira escuta, acompanhados de violão. O Carlos adorava essa música.

Como foi o seu início na carreira literária?

– Eu comecei a escrever muito cedo. Hoje, as jovenzinhas de quatorze a quinze anos bebem, fumam, fazem sexo. Naquele tempo, a gente era muito imatura, muito boba. Sou da geração das virgens, então meus primeiros livros eram imaturos e refletiam toda aquela ingenuidade da época. Eram três livros precipitados e por isso eu os tirei da minha bibliografia. Eu conto a minha obra a partir de 1954, com Ciranda de pedra.

 

Que tipo de literatura você gosta de ler?

– Ultimamente eu tenho lido biografias. Acabei de ler, por exemplo, A consciência à flor da pele, de John Updike. Gosto também de filosofia e de ensaios. Sou admiradora de obras que falam do hinduísmo, das crenças orientais. Eu acredito muito na eternidade do homem e acho que a literatura ocidental é muito materialista, enquanto a oriental está mais próxima das coisas espirituais.

 

Você tem alguma religião?

– Sempre tive um lado místico. Sou de formação católica, apostólica, romana. A minha mãe me vestia de anjo e de Santa Terezinha do Menino Jesus. A mamãe era zeladora do Sagrado Coração de Jesus. Então, eu peguei aquela formação profundamente cristã. Hoje, na maturidade, a minha paixão é por São Francisco de Assis, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Esta medalha (mostra a medalhinha de Nossa Senhora da Conceição) foi a minha mãe que me deu. Eu nunca deixo de trazê-la comigo. Mas não sou católica praticante, embora tenha toda essa formação.

 

Acredita em Deus, naturalmente.

– Teve um tempo em que eu acreditava que Deus era o acaso. Hoje acredito que não. Deus não é casual. Há dez anos eu tenho procurado a explicação nos clássicos da literatura e da filosofia. Procuro uma resposta para essa vida que às vezes parece tão sem sentido. Mas, pelo contrário, a vida tem um sentido e é isso que eu tenho buscado há algum tempo.

 

Qualquer um percebe o carinho e a atenção que você dedica aos leitores. Você lida bem o fato de ser uma figura pública?

– Eu exerço o ofício que escolhi e procuro cumprir este ofício da melhor maneira possível. Procuro, de forma correta e digna, retribuir o amor e a atenção que as pessoas me dedicam. Seria uma grosseria da minha parte não atender meus interlocutores, que são raros num país onde a cultura foi para o brejo. O encontro com o leitor é uma verdadeira celebração da literatura, do trabalho duro, solitário e corajoso que é o ato de escrever.

 

Como você se considera enquanto escritora e cidadã brasileira?

– O artista tem que ser o tempo todo um insatisfeito. Isso é a busca da beleza e da perfeição. É uma coisa dolorida. A gente deixa de lado muita coisa pra se dedicar à literatura. Isso demonstra o desapego com as coisas materiais e a preferência pelas coisas do espírito. É algo muito difícil, sobretudo no Brasil. Vivemos um apogeu em termos de qualidade literária, mas é lamentável que a grande maioria da população não possa constatar isso. Mas tenho esperança de que daqui a 100 anos a nossa literatura e a nossa língua possam alcançar o lugar de destaque que merecem e que ainda não ocupam. Há no Brasil de hoje um descaso por parte das autoridades para com a educação e a cultura. Minha maior insatisfação vem daí, mas ainda tenho esperança.

 

Qual é a sua visão do universo feminino nos dias atuais?

– Segundo Norberto Bobbio, que eu considerado um dos maiores pensadores do século XX, a bandeira verdadeira da mulher foi erguida depois da Segunda Guerra. Foi quando os homens partiram para o front e elas tiveram que substituí-los nas fábricas. Então, a mulher, que tinha certas habilidades, pôde demonstrar que, em alguns setores, tem possibilidades maiores que as do homem. Acho que essa é a questão, é a bandeira verdadeira da mulher. O direito ao trabalho digno, que vem sendo conquistado desde aquela época, com consciência dos direitos e deveres. Isso nada tem a ver com a promiscuidade ou a loucura de feministas irresponsáveis. A mulher tem que lutar sempre pelos seus direitos, mas sem abrir mão de ser mulher-goiabada. Sem deixar de ser companheira, mãe e amiga.

 

Como você está vendo o Brasil de hoje?

– Estou em estado de perplexidade. Não quero cometer injustiças, mas estou perplexa. Existe uma expressão dos filósofos gregos que é époque, que significa suspender o juízo. Então, eu estou com o juízo suspenso. Votei em Fernando Henrique Cardoso, mas realmente estou perplexa. Quero ter uma visão mais profunda sobre o que vem por aí. A miséria, o desemprego, tudo isso está aí e eu não entendo o que está acontecendo de fato. Tenho amigos maravilhosos que me dão todo tipo de explicação, de justificativa, mas eu não consigo entender essa obsessão pela economia em detrimento dos valores sociais.

 

Você está ou já foi filiada a algum partido político?

– Sou um ser político, como cidadã e como escritora. A minha responsabilidade é grande. O escritor tem que apontar as feridas do seu tempo, mesmo que não tenha o poder de curá-las. O escritor não pode dar uma de inocente ou ingênuo, pois ele tem o poder da palavra. A palavra é a ponte que aproxima os homens. Eu procuro me desembrulhar e desembrulhar o meu próximo. Assim, eu procuro cumprir o meu ofício sem precisar de partidos. O Carlos (Drummond) escreveu uns versos que eu gosto muito: “tu não me enganas, mundo, e eu não engano a ti”.

 

Como você se sente na qualidade de membro da ABL?

– Eu acho muito bom o convívio com os amigos que têm as mesmas preocupações. A nossa luta é com a palavra e foi ela que me conduziu à Academia. Foi também a luta contra uma porta fechada pelo fato de eu ser mulher. Quando cheguei, lá estava a Rachel de Queiroz, e a Dinah Silveira de Queirós já havia passado. Depois veio a Nélida Piñon. Esta é uma forma de conquista feminina sobre a qual o Norberto Bobbio se refere como a revolução da mulher.

 

O que você tem a dizer sobre seu novo livro, A noite escura e mais eu?

– Escrevi esse livro com muito amor, como sempre faço as coisas. No ano passado, que foi muito difícil por vários motivos que não quero lembrar aqui, apesar dos pesares, eu preparei esse livro. Reescrevi alguns contos que tinha na gaveta e criei outros. Todos eles têm uma linha que procura, com certo humor, falar da nossa atual condição neste país. É, portanto, um livro que não poderia ser escrito por um autor de outro país, porque fala, sobretudo, do Brasil. É um livro universal, mas sobre o ser humano do Brasil.

* Morreu em São Paulo, em 2022.

Feliz ano velho foi um desses fenômenos literários que surgem nas livrarias, vendem milhares de exemplares e ganham adaptações para teatro e cinema. O jovem autor soube como poucos superar os dramas pessoais e se destacar no cenário cultural. Marcelo Rubens Paiva foi, desde o início, um escritor de talento promissor, consciente da força das palavras num mundo de injustiças. Conheci-o numa feira de livros na Praça Sete e sua entrevista saiu na coluna Teatro Vivo, em 20 de outubro de 1983.

Uma lição de otimismo

 

Marcelo Rubens Paiva é um nome que hoje ocupa lugar de destaque na literatura brasileira. Basta dizer que o primeiro livro do jovem de vinte e quatro anos, Feliz Ano Velho, esgotou mais de uma dúzia de edições em pouco tempo e está também no teatro, em São Paulo, numa adaptação de Alcides Nogueira dirigida por Paulo Betti. 

Marcelo é filho do deputado Rubens Paiva, desaparecido em São Paulo nos áureos tempos da repressão política. Aos dezenove anos, o jovem universitário sofreu um trágico acidente: um mergulho mal dado durante um passeio lhe fraturou a quinta vértebra, causando-lhe uma grave paralisia e ligando-o a uma cadeira de rodas. Mas o talento espirituoso e criativo do inquieto estudante de comunicação – hoje aluno de rádio e televisão na USP – resistiu às intempéries do destino e criou uma nova literatura, traduzindo em linguagem fácil e corriqueira os anseios da geração AI-5. O autor esteve entre nós no fim de semana para autógrafos na Feira do Livro, numa promoção da Câmara Mineira do Livro. Marcelo Rubens Paiva é um garoto simples, alegre e comunicativo.

Aquilo que eu lhe disse ontem à noite foi sincero. Você já pode ser considerado o escritor da nova geração. E aí eu queria saber como você se sente, porque deve ser uma barra essa responsabilidade, não é?

– Primeiro eu queria dizer que ainda não me considero escritor. Por incrível que pareça, Feliz ano velho foi uma autobiografia. Jamais eu escrevi esse livro pensando em ser escritor, mas escrevi muito mais como um desabafo. A grande surpresa que eu tive é que não existia no Brasil alguém que falasse as coisas que essa juventude estava pensando. Foi um choque. Alguns relatos que eu fiz sobre a minha vida eram relatos de toda uma juventude brasileira, né? A maneira de expressas, com gírias, maneira muito direta e objetiva… Tenho a impressão de que a juventude de hoje é muito direta. É uma juventude que quer ir logo ao assunto, sem enrolar. É uma juventude ansiosa. Ansiosa! Uma juventude que nasceu numa ditadura, que cresceu sob o signo da crise e que não entende nada do que está acontecendo com o planeta. Não temos a menor perspectiva de futuro. Não sabemos se daqui a uns dez anos o planeta explode por causa de uma bomba atômica ou explode por falta de equilíbrio ecológico. Então, o tipo de linguagem objetiva que eu usei é o tipo que a juventude pensa e sente. Acabei virando o “escritor da juventude”, apesar de eu não querer assumir essa responsabilidade. E acredito em milhares de juventudes. Têm jovens que não gostam do meu livro, que são hippies, tem jovens naturalistas e cada Estado tem um tipo de juventude. Então, eu não gosto desse papel de líder que eu não sou.

 

Se assim é, a que você atribui o sucesso do seu livro?

– Olha, eu estou me perguntando isso faz um ano e algumas poucas respostas eu tenho. Acho que, em primeiro lugar, o acidente, a minha paralisia é um negócio tão duro na vida de uma pessoa que o leitor está buscando o “como que esse cara saiu dessas?”. Quer dizer, um cara que me vê sorrindo na televisão ou numa foto de jornal, ele fala: “pô, esse cara! Eu com crises incríveis! Crises com o meu machismo, crises com a minha família, crises com o meu país, como é que eu vou sair dessa?”. Então, surge uma identificação solidária com a vida dura que a gente tem, né? Em segundo lugar, eu acho a história interessante. A minha vida, com as tragédias que teve, virou um novelão. Um filho de desaparecido, um jovenzinho típico que virou um paralítico, quer dizer, dá um bom romance.

 

Você pensou na possibilidade da piedade? Ah, o coitadinho, coisa e tal?

– Já… Por que, por exemplo, cinquenta milhões de pessoas ficam em frente a uma televisão vendo aquelas novelas onde só acontecem tragédias?

 

Você está dando uma forte parcela de contribuição para a realidade das pessoas através do Feliz ano velho. Nossa geração é quase toda paralítica diante dos fatos. Herdamos mesmo o lixo da ditadura e as crises e não temos muito como resolver isso. Enfrentamos o desemprego na horinha em que saímos da faculdade, não podemos assumir um casamento, um filho. Como você vê essa paralisia coletiva à qual estamos subordinados? Inclusive você, que sofreu ainda mais?

– Eu acho que não existe nenhuma pessoa neste país que seja otimista. Ninguém sabe o que vai acontecer com a gente, os jovens. É que temos que viver o presente e transformar o que há dentro de nós, dentro de nossas casas, dentro de nossa escola, da família, nos relacionamentos com a mulher, como o nosso parceiro e sempre aquela revolta: “pô, quem nos enviou nesse beco sem saída? Quem nos deu essa crise, essa dívida toda pra pagar?”

 

Essa herança maldita…

– Essa herança, né? Então, somos uma juventude alegre. Você não pode dizer que é uma juventude frustrada e triste. É uma juventude que sabe curtir. Você vai a uma festa e todo mundo está dançando, todo mundo tomando seu pilequinho, fumando seu baseado, relações amorosas a mil e tal. Em compensação, se você sair desse plano individual para o plano mais social é uma juventude frustrada, porque não temos o país nas mãos. Uma juventude que não acredita em leis, porque depois de escândalos e dessa roubalheira inteira, as mesmas pessoas que colocaram esse país no fundo do poço estão aí no poder ainda, né? Então, o que a gente espera é como o nosso dia-a-dia mesmo, com nossas relações pessoais. No mais, é deixar o social até o barco afundar ou acontecer algo.

 

Mas necessitamos urgentemente de uma consciência e de uma posição política clara. Talvez até nem resolva, mas será que radicalizar para alguns dos extremos não acaba sendo um convite óbvio para solucionar parte dos problemas?

– Olha, apesar de petista roxo, militante do PT, eu sou um anarquista nato. Acho que o único jeito é a gente destruir tudo e virar tudo índio de novo. Porque tá tudo erra. Desde o momento em que o macaco pegou um osso e agrediu o outro maçado com esse osso. Então, eu tenho esse espírito anarquista de que…

 

O mundo dos brancos está errado.

– O mundo dos brancos está errado e temos que voltar pra selva mesmo.

 

E o seu relacionamento com os demais escritores, os mais velhos, como é?

– No princípio eu achava que a comunidade literária não ia muito com a minha cara, porque os caras deviam pensar: “pô, o que esse garotinho de vinte e quatro anos tá falando aí? Um garotinho que nem escreve direito”… E eu realmente não escrevo direito, não sou bom literato. Mas eu fiquei muito orgulhoso, primeiro que eu ganhei o Prêmio Jabuti de autor revelação e depois eu tenho convivido com alguns escritores mais velhos, recebido cartas e todos eles são unânimes em dizer que eu fiz um bom livro. Bom e popular. O Loyola, o Márcio de Souza, o Thiago de Mello e vários acadêmicos escreveram cartas e foi surpresa. Durante o meu colegial, eu pequei duas vezes a segunda época em português, e no vestibular eu tirei zero vírgula cinco em redação. A minha maneira é muito mais de falar do que de escrever.

 

E sobre Feliz ano velho no teatro, fala um pouco pra gente disso aí.

– Dois meses depois do lançamento do livro, me procuraram três grupos teatrais e cinco cineastas e eu me assustei. Jamais imaginei o livro no teatro. Primeiro que é uma história meio complicada para o palco. Aí eu liguei para o Flávio Rangel, que é amigo da minha família, e ele disse que o livro dá um ótimo espetáculo teatral. Então eu peguei um dos grupos que tem o adaptador Alcides Nogueira, que já havia trabalhado com o Paulo Betti, que é um diretor de grande nome lá em São Paulo. Mas o Paulo não quis dirigir. Como ele me conhecia, ele não queria correr o risco de estragar o livro. Eu falei então que só deixava ir pro teatro se fosse com a direção dele. Aí o grupo o convenceu. Começamos então a nos reunir, eu, minha mãe e a família com o elenco. A princípio, pra dizer que não queríamos que se retratassem as nossas vidas no palco e, sim, fizesse daquilo um espetáculo teatral sem explorar o meu lado pessoal. As pessoas que estão indo ver a peça Feliz ano velho estão vendo outra interpretação daquilo que eu vivi e escrevi. A adaptação é lindíssima, fantástica e emocionante. Fique a fim agora de partir para fazer peças teatrais, texto para teatro. Sinto uma falta de novos autores.

 

Discordo dessa colocação. Acho mesmo que existem novos autores, mas que muitas vezes são marginalizados do processo. Os produtores, gananciosos de grana, preferem peças de gente conhecida. Talvez o seu trabalho tenha ido para o teatro em função do sucesso do livro. Aqui mesmo temos ótimos novos autores e os poucos produtores preferem os renomados.

– Não conheço bem esse lado do teatro, mas eu lhe dou razão. Em São Paulo existem trinta ou cinquenta espetáculos montados e Feliz ano velho é um dos poucos que não têm financiamento de ninguém, nenhuma grande empresa ou produtor patrocinando. Eu acho que você tem razão, isso eu não sabia bem.

 

Mas é verdade. Temos aqui um autor, por exemplo, o Marcos Santana, com cerca de dez prêmios em concursos do Inacen (Instituto Nacional de Artes Cênicas), do STN (Serviço do Teatro Nacional), quatorze estados já viram suas peças e uma delas, A menina que perdeu o gato… já foi exibida até pela TVE. Mas em BH ele ainda não faz milagre. Não é procurado pelos produtores, que preferem inventar moda, grandes autores, peças fora de época. É a velha geração que tem o poder econômico, né? Mas, mudando de assunto, e para o cinema, vai ter um Feliz ano velho também?

– Estamos fazendo um roteiro, mas buscando algo diferente do livro e do teatro. O personagem não vai se chamar Marcelo, nem ser filho de desaparecido. Vai ser apenas um garoto que foi acidentado e que escreveu um livro.

 

Finalizando, você não tem medo do sucesso? Ou de brigar com o que você é hoje, como fez o Chico Buarque, que conheceu a fama também muito cedo?

– Tenho, mas quem não tem receio de nada? Eu tenho que arriscar. A vida é um grande risco e a arte também. Um fracasso é tão natural quanto o sucesso e eu tenho necessidade de criar.

O nome dela sempre soou aos meus ouvidos como sinônimo do melhor teatro feito no Brasil. Sinônimo de charme, sensualidade e muito talento. Nosso encontro se deu em função de sua presença no elenco da peça Motel Paradiso, de Juca de Oliveira, que cumpria temporada de sucesso no Grande Teatro do Palácio das Artes. Eu a entrevistei juntamente com o autor e ator da peça, e a reportagem saiu na coluna Teatro Vivo do EM, em 28 de julho de 1984.

Das passarelas para o palco

 

Pouca gente sabe, mas a triz gaúcha Maria Della Costa foi a primeira manequim do país a subir numa passarela. Foi descoberta pela revista O Globo, dirigida pelo jornalista Justino Martins, ainda no Rio Grande do Sul. Casou-se aos quatorze anos e, no ano seguinte, estreou como show-girl no Cassino Copacabana, num espetáculo dirigido pelo cantor francês Jean Sablon. Na noite de estreia, caiu da escada do cassino e fraturou o pé, voltando depois no show Em busca da beleza

Seu início no teatro propriamente dito se deu a convite de Bibi Ferreira, na peça A moreninha. Atuou com Os Comediantes e fez a terceira montagem de O vestido de noiva, a peça de Nelson Rodrigues que revolucionou o teatro nacional. Atuou em Simba, A rosa tatuada e Homens de papel, entre outras. Na televisão, atuou em muitas novelas, entre elas a inovadora Beto Rockfeller, de Bráulio Pedroso pela TV Tupi, e Estúpido cupido, de Mário Prata pela Rede Globo.

Gostaria que você falasse um pouco sobre a personagem Lurdes, de Motel Paradiso.

– A Lurdes é uma personagem que eu amo muito, assim como a peça. Aliás, essa é uma peça que o Juca me deu três anos atrás. Fiz a estreia no Rio de Janeiro, onde ficamos um ano em cartaz com o elenco todo de lá. Depois passei para São Paulo, no Teatro Maria Della Costa, com elenco paulista, inclusive o próprio Juca como o banqueiro. É uma peça que já esteve no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, todo o norte-nordeste, Brasília e Goiânia. E agora estamos aqui, em BH. Amo Motel Paradiso, principalmente por ser uma peça de autor nacional. Nós temos que criar e exportar a nossa própria dramaturgia, como foi o caso do Simba, do Guarnieri, que eu levei com quarenta atores para o Festival de Paris e depois para Roma, Portugal e Espanha. Temos que criar o que é nosso.

Como você tem visto o teatro nos últimos tempos?

– Depois da revolução de 1964, tivemos uma parada muito grande. O teatro estava no auge, no início dos anos de 1960. Estava aquele movimento maravilhoso de Arena, Oficina, TBC, Teatro Maria Della Costa, grupos amadores e profissionais.

 

Mesmo as outras artes estavam por cima, como a Bossa Nova, o Cinema Novo…

– É, o cinema, a pintura, a literatura, a música, aquela evolução espetacular. Depois veio a revolução e começou a castrar e todo mundo teve que fugir e começou a se exilar e outros a engavetar suas coisas. Veio o ostracismo. Eu fui para a cidade de Parati, construí sete apartamentos e me tornei hoteleira. O Antunes Filho foi me buscar pra fazer uma peça do Federico Garcia Lorca, Bodas de sangue, que foi uma montagem muito bonita, moderna e política. Depois voltei a Parati e fiquei parada durante oito anos. Eu poderia até voltar com uma peça estrangeira, mas apareceu o Juca, como eu te falei, e o texto dele me impressionou tanto. É uma sátira violenta, com uma marca tão sarcástica que me apaixonei. E me apaixonei também pela Lurdes. No primeiro ato, ela é quadrada e submissa. No segundo, ela parte pra briga, ao se descobrir traída pelo marido.

Além de você e do Juca, como está o restante do elenco e personagens?

– Todos os personagens são bons. A Célia Coutinho faz uma grã-fina maravilhosamente bem. O Serginho Roberto faz o secretário do rico e, de um papelzinho, ele fez um grande personagem. Tem a Desiree Vignoli, que faz a filha dos ricos. É uma atriz linda e cheia de talento. E o Luiz Guilherme, que é um ator não só grande, mas muito bonito e com uma das vozes mais bonitas, que faz o meu marido. Ele faz as mulheres babarem na plateia.

 

Essa peça marca sua volta aos palcos, desde 1977, e marcou também seu retorno ao Teatro Maria Della Costa, que você construiu. Como foi viver essa emoção toda?

– É como se morresse um filho teu e ressuscitasse. Depois de vender o meu teatro, eu fiquei sem nem passar na porta. Você pode imaginar a emoção da presença do filho que eu perdi e que fui ver? Então, foi de estarrecimento, de choro e de contentamento. Voltei ao passado. Foram quinze anos de sofrimentos, construindo o teatro. Foram quatro transfusões de sangue, muitas viagens pelo Brasil de ponta a ponta, para poder pagar as mensalidades. E, de repente, fui obrigada a vender, porque os nossos governos não olham a nossa cultura. A cultura é a última coisa que existe no nosso país. Eu praticamente nasci dentro do teatro e já são quarenta anos mendigando nas portas das prefeituras, dos palácios, assembleias e senados. Pedindo que defendam o teatro, que temos que ter uma voz que grite por nós. Mas acontece que temos voz. Nós somos povo e estamos sofrendo essa crise que está aí. Então, quando chegamos ao palco, falamos em voz alta. Ainda temos essa força de pulmão para gritar: queremos eleições diretas, queremos democracia.

 

Então o teatro é uma tribuna de luta?

– Mas claro, só é uma tribuna! Talvez por isso eles não queiram muito ajudar, porque o teatro esclarece o público, pois o nosso país é semianalfabeto e sem tradições culturais. Mas é um povo que tem muita intuição. 

Essa viagem pelo Brasil em turnê tem tido algum apoio?

– Trouxemos um caminhão de cenário original, doze pessoas, sendo sete atores mais os técnicos, produtor, divulgador… Nem um copo a gente pede emprestado. Estamos viajando com o apoio de um governador muito simpático no qual votamos. Fomos os primeiros a gritar “eleições diretas”, em dezembro, nas escadarias do Teatro Municipal. O que depois fizemos foi aquele comício monstro em São Paulo e que todo o Brasil seguiu. Esse governador é o Franco Montoro, que nos abriu as portas e que tem diálogo com a cultura e fez questão de fazer um convênio conosco nos dando as passagens da Vasp para que pudéssemos levar o teatro de São Paulo para o restante do Brasil, descentralizando o teatro do eixo Rio-São Paulo.

 

Eis um exemplo que poderia ser seguido pelo governo de Minas, já que aqui o teatro e a cultura estão cada vez mais sem prestígio oficial.

– E não dá pra viajar sem ajuda de alguém. Uma passagem aérea entre São Paulo e Manaus custa um milhão de cruzeiros (dinheiro da época). Esse alguém, no nosso caso, foi o Franco Montoro, que está ajudando outras companhias e também a música, a pintura… Está dialogando com os fazedores de arte e cultura. E isso é que a gente quer. Não é só o dinheiro. A gente quer um pouco de carinho. Estamos carentes, pois são vinte anos sem poder abrir a boca pra dizer nada.

 

E São Paulo é quase um país…

– Um país. E o Montoro está lá, lutando. Pegou o estado na falência… Todo mundo no desespero do desemprego. Numa selva de pedra, mas que eu amo como se fosse minha terra. Construí um teatro em São Paulo e só vendi por falta de apoio, pois se tivesse dado lucro eu não teria vendido.

 

Como foi o seu início no teatro? Teve dificuldades, lutou sozinha?

– Fui manequim, a primeira do Brasil. E ainda desfilo sempre em promoções beneficentes. Não na vida real, que sou uma pessoa simples e não gosto de me emperiquitar, não. Uso jeans, como você está vendo. Aliás, só sou muito vaidosa no palco. Tenho quarenta anos de teatro e subi degrau por degrau. Não me prostituí. Casei com um homem que foi o meu primeiro lançador, o Fernando de Barros. Estudei arte dramática durante três anos. A primeira peça foi A moreninha, ao lado de Bibi Ferreira, que me convidou. Conheci o meu segundo marido no grupo Os Comediantes. Sandro Polônio era o galã ao lado do Jardel Filho. Estamos casados há trinta anos. Ele é sobrinho de uma grande atriz italiana, chamada Fausta, e é um homem de teatro, talvez o maior produtor de teatro que temos atualmente. Ele é um homem que dorme e acorda pensando em teatro. É fanático pelo teatro e vê o teatro como um templo. Nosso casamento tem sido uma união perfeita. Ele é um homem que renunciou à profissão de ator para me dar lugar. Eu o respeito muito e devo muito a ele.

 

Como atriz, você tem alguma frustração?

– Eu fiz muito cinema quando era novinha. Mas a única frustração é não ter feito um grande filme. Porque o artista de teatro não deixa nada, a não serem as críticas. Ele morre e na missa de sétimo dia já foi esquecido. O cantor grava, o pintor deixa o quadro, mas o ator só fica através do cinema. Eu gostaria de fazer um grande filme para poder deixar alguma coisa. Mas não tem nenhum convite hoje. Mas eu sou jovem ainda e tenho muita força e estou aí com a abertura política. O autor nacional está vindo de novo com sua força. Então, é começar tudo de novo. E é bonito cair e levantar-se de novo. Os teatros estão todos lotados. As cidades têm o seu teatro e a gente sente isso aqui, em Belo Horizonte, por exemplo. Sempre procuro aprender as coisas e espero estar viva no ano 2000, para ver o que vai acontecer neste mundo. Vai ser uma transformação linda. Tudo está aí muito podre e vai cair já. E daí vai surgir um mundo maravilhoso.

*Morreu no Rio de Janeiro, em 2015.

A irmã mais famosa de Chico Buarque tinha a simpatia como religião. Poucas intérpretes da MPB conseguiram manter um estilo tão espontâneo e despretensioso. Tive a oportunidade de entrevistá-la em outubro de 2000, quando se apresentou no Minas Tênis Clube, em BH, a convite do nosso amigo Pacífico Mascarenhas. A matéria saiu no EM, numa quinta-feira, dia 19 daquele mês. Aproveitei o título para dar nome a uma canção que compus com o meu querido parceiro Valter Braga.

A dama e os vagabundos 

 

Heloísa Maria Buarque de Hollanda. Falando assim, pouca gente imagina se tratar de uma sambista. O nome artístico vem da infância. “Eu era miúda e mexia muito no berço. Meus pais então me apelidaram Miúcha”, lembra a cantora, que faz uma curta temporada na cidade. Amanhã ela canta no Minas Tênis Dois, na Noite dos pianistas, ao lado de Hélvius Vilela. Sábado e domingo, no Teatro Dom Silvério, com Hélvius e Novelli. Mesmo gostando de Minas, Miúcha vem pouco a Belo Horizonte e lembra que sua última apresentação, há cinco anos, foi um fiasco, pois coincidiu com o Carnabelô.

Para seus fãs, ela traz novidades. Acaba de ver relançado em CD seu primeiro LP, The best of two worlds, feito em 1975 ao lado de Stan Getz e João Gilberto; lançou no ano passado Rosa Amarela, comemorando seis décadas de vida e muito samba; e já está preparando miúcha.compositores, disco no qual pretende gravar canções de Francis Hime, Guinga, Tom Jobim, Cristóvão Bastos e – claro! – Chico Buarque. 

Falando por telefone na manhã de ontem, Miúcha foi toda sorrisos e simpatia. Mesmo tendo nas veias o sangue azul da nobreza intelectual de Sérgio Buarque de Hollanda, a dama que aprendeu a tocar violão com Vinicius de Moraes e ensinou o ofício da música ao irmão Chico mostra sua alma carioca, de humor refinado e inteligente. Com sete discos e participação em vários outros, ela considera a música o elemento básico da fraternidade universal.

 

Qual foi seu primeiro disco?

– Foi um compacto duplo chamado Confissões, que já nem existe mais. De um lado gravei João Donato em suas primeiras parcerias com Gil e Caetano. Do outro, uma música de Péricles Cavalcante e Correnteza, do Tom e Luis Bonfá. Mas debutei mesmo foi nos Estados Unidos, em 1975, com o disco que fiz ao lado de Stan Getz e João Gilberto. O João brigava muito com o Stan e este era fã da sua música. Quando fomos nos apresentar, os dois tinham brigado feio e o João não foi ao show. Bebel entrou no lugar dele e roubou a cena. Ela tinha sete anos e arrasou. A crítica do The New York Times só falou dela, não deu a mínima bola nem para o Stan nem pra mim.

 

O fato de ter sido casada com João Gilberto ou de ser irmão do Chico ajudou ou atrapalhou sua carreira?

– Fiquei casada com o João entre seis e dez anos, e até hoje ele ainda me dá trabalho (risos). Mas não dá nem pra falar dessas coisas. Porque, além do mais, meus primeiros discos foram com o Tom. Tem a amizade com o Vinicius, que foi quem me ensinou a tocar violão. Na verdade, eu criei uma penca de referências musicais. Não dá pra falar se serviu para atrapalhar ou para ajudar, porque é uma coisa que está tão dentro da minha vida… Não escolhi ser irmã do Chico e coisas assim. Então, o mais importante foi o nosso amor enorme pela música, que é um canal de união e comunicação. Eu acho que a música aproxima muito as pessoas. E isso fez surgir esse núcleo de uma maneira muito espontânea. Nos tornamos uma grande família e a coisa continua. Hoje, por exemplo, eu sou tia do Carlinhos Brown e a Bebel está arrasando por aí.

 

Como vão ser os dois shows em BH?

– No show do Minas Tênis eu sou convidada do Hélvius Vilela, que toca comigo há muitos anos. Somos muito amigos. Mineiro da gema, grande músico. Aliás, tem uma produção de músicos bons em Minas que não tem tamanho. Fiquei muito contente com o convite que ele me fez. Inclusive, vou apresentar o Hélvius como cantor. A gente começa com uma homenagem ao Baden Powell, cuja última apresentação foi no Minas Um. O Hélvius faz um pot-pourri e eu canto Deixa e Tem dó. Depois a gente faz músicas como Vai levando, de Chico e Caetano, e Querida, do Tom. É uma música muito engraçada pelo contraste que oferece. A letra é uma coisa quase filosófica: “Longa é a arte/ Tão breve a vida”, que é a frase que está no túmulo do Tom. E contrasta com uma música inteiramente light. Parece um musical da Metro. O Tom adorava a surpresa, o trocadilho e era muito engraçado. Ele gostava dessas imagens contrárias. Foi um dos maiores trocadilhistas que eu conheci.

 

E o show no Teatro Dom Silvério?

– Eu ia apresentar o mesmo show que realizei no Mistura Fina, no Rio, que teve várias participações. Mas, como tem muito tempo que eu não ia a Belo Horizonte, estou alternando músicas novas com algumas que fazem parte do meu repertório mais conhecido. Eu abro o show com uma música que gravei com o Tom, e que eu adoro, que é Na batucada da vida, do Ary Barroso. A letra fala “No dia em que apareci no mundo/ Juntou uma porção de vagabundos”… E o que juntou de vagabundos na minha vida (risos). Vagabundos dos mais maravilhosos! De novidade tem a primeira música que é só do Vinicius, que é Medo de amar, feito por ele nos anos 1950 e gravada depois, magistralmente, pela Nana Caymmi. Então, dos vagabundos da minha vida, eu começo pelo Vinicius. É uma música que ele fez quando eu estava aprendendo a tocar violão. Na verdade, canto duas músicas e letras dele. A outra é Pela luz dos olhos teus, que gravei com o Tom.

Você vai cantar músicas do Chico?

– As pessoas sempre falam da facilidade que ele tem para se expressar como mulher, mas eu acho ele mais genial expressando o que as crianças falam. Então, escolhi duas músicas: Maninha, que ele fez pra mim, e João e Maria, parceria dele com o Sivuca, que eu gravei no disco Rosa amarela.

 

Como foi ensinar violão pra ele?

– Ensinei um pouco do que o Vinicius e uma tia haviam me ensinado. Então, ensinei ao Chico o começo. Passei pra ele o meu entusiasmo pela música, coisa em que ele sempre foi muito ligado. Ele deu um banho logo de cara. A gente tocava as músicas mais tradicionais ensinadas pelo Vinicius. Canções de Noel Rosa, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Ataulfo Alves, Custódio Mesquita, essa turma toda. E isso deu muita força pra gente.

 

Como você vê a música brasileira de hoje?

– Eu acho que a variedade é muito saudável, mas acho também que no final essa variedade não aparece nos meios de reprodução. A música brasileira, milagrosamente, está mais viva do que nunca. Temos hoje uma quantidade enorme de grupos jovens revigorando o samba, revigorando o choro e outros ritmos nacionais. Uma coisa impressionante. E compositores maravilhosos que passaram longe do festival da Globo. Acho até que esse festival foi um complô para acabar com a música brasileira. As gravadoras insistem muito em coisas repetitivas e muito ruins. Mas agora está surgindo no Rio uma gravadora, chamada Biscoito Fino. Tem até a Olívia Hime na direção. Essa gravadora vai se dedicar a um segmento mais refinado da música brasileira.

*Morreu no Rio de Janeiro, em 2018.

Conversei com Murilo algumas vezes e escolhi a entrevista publicada no caderno de Cultura do Diário da Tarde, a 4 de janeiro de 1984. Ele praticamente inventou o realismo-fantástico, que preferia chamar de realismo-mágico. Teve o reconhecimento de outros autores do gênero, entre os quais o mexicano Juan Rufo. Deixou apenas 33 contos publicados. Eu o considero um dos cinco maiores ficcionistas do Brasil, ao lado de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Nelson Rodrigues.

Literatura requer muito trabalho

 

Murilo Eugênio Rubião nasceu em Carmo de Minas, no ano de 1916. Criado sob a influência de vários escritores da família e cercado de livros, antes de se descobrir contista, trilhou durante algum tempo o caminho da poesia. Hoje ele tem seis livros publicados, traduções em diversos idiomas, centenas de publicações em jornais, revistas e antologias em vários países, além de dois livros de contos e duas novelas na gaveta. Formado em direito e atualmente exercendo o cargo de diretor da Imprensa Oficial de Minas Gerais, sempre exerceu funções de chefia, direção e assessoria no serviço público. Foi chefe de gabinete do governador Juscelino Kubitschek, adido comercial e um dos criadores e primeiro editor do Suplemento Literário do Minas Gerais, que revelou escritores de grande talento.

 

Como é, pra você, conciliar as atividades públicas com o ofício de escritor?

– Muitas vezes eu nem consegui conciliar as duas coisas, embora haja um intervalo entre uma função e outra, o que dá certo tempo para o escritor respirar. Mas agora eu já estou um pouco preocupado, pois a idade já não permite exercer essas funções e ter esse intervalo. Tanto que esta será a última vez que ocuparei um cargo de chefia. Eu não gosto de fazer nada pela metade. Eu me entrego apaixonadamente a todos os compromissos que assumo. Por exemplo, no caso do Suplemento Literário, eu fui um dos fundadores e primeiro editor e fiquei nos dois primeiros anos sem escrever sequer uma linha. Eu hoje penso que o escritor ou faz literatura ou exerce uma função pública, já que um cargo desses é uma responsabilidade muito grande e você é muito absorvido. E a literatura exige que você pense todo o tempo nela.

 

E como é que o escritor deverá sobreviver, já que a literatura quase não dá dinheiro, pelo menos no início da carreira que nem sempre se consolida?

– O escritor pode escolher funções antagônicas à própria literatura, porque, ao chegar em casa, ele não ficaria pensando no que tinha feito e nem no quem deveria fazer, já que estaria subordinado. Especialmente se ele fosse, por exemplo, um empregado do comércio. Em ocupações de chefia de jornal ou de gabinete, redigindo cartas e discursos, o escritor, quando chega em casa, já não está querendo mais escrever e o tempo todo a atenção dele está voltada para essas coisas muitas vezes sem nenhuma importância. Ele se esgota.

 

Você é o pioneiro da literatura fantástica e semi-absurda. Muitas vezes a burocracia é uma coisa verdadeiramente fantástica e absurda. Você convive a fundo com as duas coisas?

– Isso acontece e é até um fato curioso, pois quando eu escrevi O ex-mágico eu não era nem sonhava ser um funcionário público. Foi como uma premonição, porque hoje eu sou funcionário público. Certo é que eu só iria iniciar a minha carreira burocrática uns cinco anos depois de ter escrito O ex-mágico da taverna Minhota.

 

E essa visão fantástica sua, como é que nasce?

– Eu acho o fantástico sempre muito próximo da gente. Eu sinto muito o fantástico ao meu redor. Enquanto, às vezes, coisas são tidas como não fantásticas para os outros, eu sinto que, aparentemente, ela contém elementos realmente fantásticos.

 

De onde vem a fonte de todas essas ideias, do folclore ou dos sonhos?

– A mitologia grega, como a própria Bíblia, que é um manancial, e os contos de fadas exercem muita influência na minha literatura fantástica. O Dom Quixote, de Cervantes, teve uma influência quase decisiva. Isso, desde as leituras que eu comecei a fazer na minha infância, aos cincos anos. Mais tarde, já aos vinte anos, quando eu comecei a fazer contos mesmo, isso aflorou. Primeiro eu tentei a poesia nada fantástica, mas sim uma poesia muito ruim. Fui um poeta transitório. Mas isso tudo, essas leituras da infância, começaram a voltar aos meus vinte anos. Inclusive, sobre a mitologia grega, há uma coincidência. Quando eu estava escrevendo Teleco – o coelhinho, inconscientemente eu estava usando um processo utilizado na mitologia e nas histórias de fadas que transformavam pessoas em animais. Um processo que talvez tenha influenciado o próprio Kafka na Metamorfose. Eu senti que aquelas transformações do Teleco estavam ligadas ao mito de Proteu. O Proteu era o pastor do rebanho marinho de Netuno.

 

Uma coisa por si só fantástica.

– E estranhamente poética, não é? Proteu tinha o dom de adivinhar o futuro das pessoas e, como era um camarada de bom gosto, ele não gostava de adivinhar, porque o futuro no mínimo é uma doença ou a morte que virá um dia. Então ele se transformava em um animal e saía correndo e só dizia o futuro quando amarrado.

 

Sobre a linguagem que você desenvolve nos contos, dá pra falar dela?

– O fantástico exige uma linguagem simples, direta, para não perturbar o leitor com palavras que possam desviar sua atenção do conto. A frase para o fantástico exige clareza. Ela tem que ser muito clara, elaborada e muito direta e mesmo despretensiosa para amarrar o leitor naquela história que é fantástica. Uma vez eu me perguntava o que seria da minha literatura se eu escrevesse como Guimarães Rosa, se eu usasse uma linguagem de laboratório, inventando palavras. O leitor não conseguiria ler, porque naturalmente ele já encontra dificuldades para entender. Então ele ia se emaranhar nas palavras e não perceber a história, não é?

 

E o controle sobre a história? Muitas vezes a gente se senta para escrever uma coisa e escreve outra.

– É normal nos ficcionistas o fato de o personagem passar a fazer uma série de coisas que o autor não deseja. Ou então é a própria história que passa a se conduzir sozinha por outro caminho. Mas em literatura o que realmente importa é o trabalho que se tem e não a ideia inicial. Então, tem esse processo de reelaborar e, nesse processo, a gente percebe uma série de fraturas no texto e mesmo alguns erros.

Você parece ser muito perfeccionista com as suas coisas. Quanto tempo leva para concluir um conto?

– Às vezes vem uma ideia e eu levo muitos anos para concluir o conto. O convidado, por exemplo, levei vinte e seis anos para concluir, para escrever a história toda. 

 

Gabriel García Márquez diz que foi muito influenciado por histórias fantásticas que a avó dele contava. Você também recebeu esse tipo de influência vinda do folclore?

– Não, as histórias das quais eu lembro são aquelas de preta velha e cada uma tinha, naturalmente, uma maneira de contar e de aumentar a história. Mas não foi como o García Márquez. Na infância, o que me ajudou mesmo foi a leitura. Comecei a ler muito cedo.

O que o levou realmente a escrever, foi algum incentivo especial?

– O que me levou a escrever foi o ambiente de família, quase que eu sentia mesmo a obrigação de escrever. Por isso é que eu peguei o caminho da poesia, que não era o meu caminho. O meu avô escrevia, o meu pai escrevia, o meu tio escrevia e eu tinha quatro primos que escreviam e que passaram pela Academia Mineira de Letras. Entre eles o Godofredo Rangel, o de maior talento. Então, nesse ambiente de muitos livros e histórias e de muita gente escrevendo, eu fui levado a escrever. Mas eu senti realmente a emoção de escrever aos dezoito anos, quando fiz minha primeira tentativa.

 

Como foi a emoção de publicar o primeiro livro?

– Olha, eu fiz uma coisa que muita gente já deve ter feito: eu coloquei o livro debaixo do travesseiro. É uma emoção violenta o primeiro livro. Com O ex-mágico da taverna Minhota eu saí correndo feito doido atrás dos amigos para autografar os primeiros exemplares. Depois de oito recusas de editoras, ver ali o livro pronto, eu nem acreditava. E eu nunca mais me emocionei tanto com uma publicação. O que me emociona hoje é a elaboração de um conto.

 

Seus contos normalmente são abertos por uma epígrafe bíblica. Você é um homem crente, religioso?

– Isso está muito ligado ao leitor da Bíblia, ao leitor apaixonado da Bíblia e não propriamente ao menino religioso que eu fui. A Bíblia, depois de certa época, só me encanta pelo Velho Testamento, que está mais ligado ao fantástico. É o pessoal mais autêntico e que não faz relações públicas do Senhor, não é? Eles brigam com Deus, rompem e falam com autenticidade e têm o dom da profecia e acreditam nisso. São de uma grande violência e isso não acontece tanto no Novo Testamento. Inclusive, no Novo Testamento, a minha parte preferida e da minha releitura é o Apocalipse, que é fantástico e surrealista e também tem a violência das profecias do Velho Testamento.

 

Para encerrar, gostaria que você falasse sobre a literatura de hoje, feita pelos jovens escritores.

– Eu acho que esses escritores recentes têm de todo jeito o processo de decantação. São muitos os que surgem e às vezes os de maior talento são os que não ficam, não é? Eu vi isso na minha geração e em outras gerações que inclusive passaram pelo Suplemento Literário. Há uma sedução pela facilidade da literatura, mas quando é preciso trabalhar mesmo, o escritor novo encontra dificuldades. Vimos, na Escola de Direito, colegas que dariam excelentes críticos, poetas, contistas e que depois descobriram que a verdadeira vocação era pelo exercício da profissão como advogados ou promotores. A literatura requer muito trabalho.

*Morreu em Belo Horizonte, em 1991.

Estive com Nara Leão duas vezes. Uma, no final da década de 1970, durante um jantar para poucos no Othon Palace. A outra em 1985, quando sugeri que a contratassem para fazer um show no Clube da Caixa por ocasião do Dia Internacional da Mulher. Fiz com ela uma entrevista para o Nosso Jornal, que editava na condição de assessor de comunicação da Associação dos Economiários Federais (hoje Apecef). Fui buscá-la no aeroporto de Confins e gravamos a entrevista no trajeto de volta.

Em ritmo de nova república

 

Considerada a musa da Bossa Nova nos anos de 1960, Nara Leão estourou na música brasileira com A banda, de Chico Buarque, música que empatou em primeiro lugar com Disparada (de Geraldo Vandré e Théo de Barros) no Segundo Festival de MPB da TV Record de São Paulo. E ela se revelou também no primeiro Show opinião, ao lado de Zé Keti e João do Vale, sendo algumas vezes vitimada pela ação da censura daquele período.

A convite da AEF, Nara participou do baile-show Nova República, aleluia! cantando músicas do seu repertório e comprovando mais uma vez o seu talento e a sua popularidade, arrancando aplausos dos presentes e espalhando muita simpatia. Momentos antes do baile-show, conversamos com a cantora, num clima de descontração e cortesia.

 

Nara, como é pra você cantar para o público mineiro?

– Olha, eu até parei de cantar por causa de Belo Horizonte. Eu fiz um show aqui, num estádio de futebol, e o estádio foi invadido pelas pessoas. Foi uma loucura e todo mundo queria me agarrar. Então, eu parei um pouco para pensar na vida, sabe? Mas tudo sempre deu muito certo para mim, em Belo Horizonte. Aqui talvez tenha sido o lugar onde eu fiz mais sucesso em toda a minha carreira e eu não sei bem o que é que vocês têm comigo.

 

Você vai cantar num baile-show que é praticamente uma homenagem à Nova República, além de ser a comemoração da Aleluia dos empregados da Caixa Econômica Federal. Como é que você está vendo este momento brasileiro?

– A gente tem esperança, porque tenho a impressão de que o processo histórico anda. E não há mais como parar, né? Mas eu acho que as coisas são muito lentas e a gente fica com pena de ver. A gente vai andando pela rua e tem um morrendo de fome e outro deitado na calçada. Não dá mais pra ser assim. Tenho a impressão de que tem que ter alguém que tome providências, porque como é vai ser? As pessoas são egoístas, as pessoas têm medo do futuro e querem ganhar todo o dinheiro do mundo logo e rapidinho, com receio de ficarem sem dinheiro. É muito difícil a situação.

 

Como você está vendo a participação da mulher na Nova República? Até agora não tem nenhuma ministra no governo…

– É verdade. Mas é o Brasil, né? Mas as mulheres estão tentando tomar seu lugar. O difícil é que a mulher, hoje em dia, trabalha na rua e trabalha em casa. Eu acho que essa independência da mulher, muitas vezes, está é fazendo com que ela trabalhe dobrado. Mas acho que o movimento feminino, o movimento negro e outros movimentos estão andando. Só que o processo histórico é lento.

 

Vem aí o Festival dos Festivais. Como você acha que vai ser? Será que vão surgir talentos que marque época mesmo?

– Eu espero que sim, mas a coisa está viciada. No nosso tempo de festivais na TV Record, tudo era muito livre. Hoje em dia, não. Pra chegar a apresentar a sua música num festival, você já passou por diversas censuras e isso não é bom.

 

E qual seria o papel do artista hoje, seria romantizar ou contestar?

– Eu acho que é importante que todo ser humano participe politicamente. Há 20 anos que a gente vive um período de repressão e muitos nem saber o que está acontecendo. Muita gente é alienada e nem quer saber o que é o Brasil. Acha que não tem nada a ver com isso. Mas hoje em dia eu acho que tanto se pode cantar o protesto, como naquela música do Chico e do Francis, Vai passar, que é uma música muito bonita, e o romântico. Deve-se falar de amor e de tudo da vida.

 

Como é pra você cantar para os economiários federais, uma classe profissional determinada?

– Na verdade, é um tipo de profissional, mas eu canto pra tanta gente e sempre dá certo! Daqui a pouco eu vou para o Japão. Vou para Nova York, onde estive no ano passado. E vou a Portugal também. Eu canto em todo lugar. Outro dia eu fiz um show num clube, para um público restrito. Acho que, sendo economiários, os funcionários da Caixa Econômica Federal são pessoas diferentes umas das outras. Não é por terem a mesma profissão que vão pensar da mesma maneira, não é? Aliás, eu espero que eles pensem igual com relação a mim. Espero que eles gostem.

*Morreu no Rio de Janeiro, em 1989.

Conversei com Paulo César Batista de Faria, o popular Paulinho da Viola, em duas ou três ocasiões. A melhor entrevista foi publicada no EM de uma quarta-feira, 4 de abril de 2001, tendo como gancho sua apresentação no Palácio das Artes. Com a fama de tímido, Paulinho falou pelos cotovelos, sempre com simpatia e posições definidas. Campeão de sinuca e ex-craque em peladas de músicos, não se negou a abordar temas polêmicos, como a explosão do funk carioca e outros fenômenos da cultura de massa.

Artesão do samba

 

Herdeiro da elegância de Ataulfo Alves e do estilismo de mestres como Cartola e Geraldo Pereira, o carioca da gema Paulinho da Viola volta a Belo Horizonte para realizar duas apresentações no Grande Teatro do Palácio das Artes. Cantor, compositor, instrumentista e artesão nas horas vagas, o sambista mais simpático do Brasil garante estar se esmerando no repertório do novo show. Na última segunda-feira, ao falar por telefone, ele estava às voltas com o roteiro que, garante, deverá misturar antigos e novos sucessos, com destaque para os sambas reunidos no CD Bebadosamba, de 1996, que recebeu versão ampliada gravada ao vivo e intitulada Bebadachama.

Poeta e melodista de grande sensibilidade, parceiro de bambas como Hermínio Bello de Carvalho, Elton Medeiros, Ferreira Gullar e, mais recentemente, Toquinho, o sambista nunca deixou de interpretar clássicos de outros compositores, particularmente sucessos do passado, que ajudaram a imortalizar toda uma geração de grandes criadores. Esta, inclusive, tem sido sua última tentação. Já em negociações para gravar um novo CD, ele não descarta a possibilidade de fazer um álbum somente com músicas alheias, de autoria dos autores que mais influenciaram sua carreira musical.

Poucos artistas da MPB construíram uma carreira tão digna e vertical quanto Paulinho da Viola. Sempre fiel às suas raízes, mas também atendo às inovações musicais, ele jamais abriu mão do seu estilo. No entanto, sempre soube conviver na adversidade. Na fase áurea dos festivais, enquanto artistas conservadores faziam uma passeata contra a utilização da guitarra elétrica na canção nacional, ele foi um daqueles que melhor se posicionaram, reconhecendo como legítimas as contribuições de movimentos como a Bossa Nova e o Tropicalismo.

Filho do violonista César Faria, integrante do legendário regional Época de Ouro, Paulinho cresceu nas rodas de samba e choro, convivendo com nomes da velha guarda, gente como Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Cartola e Nelson Cavaquinho. Militante de esquerda no auge da ditadura militar, sempre com um pé na tradição e outra na modernidade, estourou na temporada dos festivais com Sinal fechado, composição rica harmonicamente e com letra extremamente contemporânea. Depois vieram sucessos como 14 Anos, Um rio que passou em minha vida, Argumento e, mais recentemente, Bebadosamba. Como sempre faz em suas entrevistas, o compositor que também se dedica à marcenaria e à mecânica de automóveis, revela coerência e muito cuidado ao abordar temas polêmicos. 

 

Qual vai ser o repertório do show no Palácio das Artes?

– Falar por telefone de algo que está sendo elaborado é muito difícil. Na última vez que estive em BH, o Palácio das Artes estava em obras eu me apresentei numa sala menor, num clube. Eu já havia tocado no Palácio e foi um espetáculo maravilhoso. Também fiz dois shows na Praça da Estação e foi uma experiência maravilhosa com o público que me deixou comovido. O show Bebadosamba foi muito bem no Rio e em São Paulo. Foi feito em função do disco que eu estava lançando. Estive com ele aí, no Minascentro. O show que apresento agora é um pouco diferente. Ainda estou preparando o roteiro. Então, tenho dificuldade de dizer “vai ser isso”, porque ainda está sendo costurado. Certamente tem música que não ficarão de fora, já fazem parte do meu repertório e as pessoas gostam. Músicas que fizeram sucesso. E vou tocar basicamente com os músicos que me acompanharam aí na última vez.

 

O arranjador e pianista mineiro Hélvius Vilela continua na banda?

– Não, dessa vez ele não está. Há algum tempo não estamos mais trabalhando juntos. Mas este ano eu já tenho um convite de gravação estou estudando o projeto. É uma coisa que ainda não está definida. Tenho que saber ainda se vou fazer um disco de autor, com composições minhas, ou se vou realizar um projeto antigo de gravar outros autores. E certamente vou convidar o Hélvius para fazer arranjos e, quem sabe, até voltar a tocar comigo. Neste espetáculo estarão meu pai, César Faria (no violão), Mário Ceze (sopros), Dininho (contrabaixista que faz percussão também), Hércules (baterista e percussionista) e os dois ritmistas, que são o Cabelinho e o Celsinho.

 

Não dá para adiantar nada do repertório?

– Certamente estará incluído um samba que fiz há muito tempo e que agora foi regravado pela Marisa Monte, Para ver as meninas. Tinha uma versão dessa música muito antiga. Fizemos um ensaio uma vez para um show do Rafael Rabello e nós éramos convidados. Essa música foi cantada por ela no ensaio, que foi gravado. Eu e o Rafael nos violões e ela cantando. Olha, foi uma coisa tão bonita, tão bonita! O show Bebadosamba tinha apenas dez músicas do disco. Então, fizemos a gravação ao vivo do show. Tinha inclusive uma música que eu pensava ser inédita, mas que no final não era. O samba As moças do meu tempo, do Zé Keti. Depois fiz um disco com o Toquinho, inclusive fizemos uma parceria. Isso tudo eu quero levar em consideração.

 

Você está em dois discos da séria lançada pelo SESC de São Paulo, resgatando programas do Fernando Faro. O que acha dessa coleção?

– Eu acho que é uma homenagem muito legal ao Faro. Você reunir isso como documento, com as entrevistas, tudo transcrito num livro e em disco, com um trabalho de áudio muito bem feito… Acho um projeto muito importante que nos dá a possibilidade de ter isso até para pesquisa. É muito interessante esse projeto do Pelão (pesquisador e produtor musical).

 

Como você vê a explosão de gêneros comerciais promovida pela mídia?

– Eu tenho muito cuidado quando falo dessas coisas. Até porque, são fenômenos muito novos. Não tão novos assim, mas novos na mídia, e você às vezes é apanhado de surpresa. Não gosto de fazer críticas e algo que apareceu na mídia recentemente, porque o risco de cometer leviandades é muito grande. Sempre perguntam à gente sobre esses fenômenos, como foi no tempo em que estava surgindo o pagode. Eu sempre digo o seguinte: o sucesso desses movimentos nunca é uma coisa fabricada pela mídia. Já existe e a gente é obrigada a reconhecer. O fenômeno do pagode e do axé, por exemplo, já existia antes da mídia descobrir. O pagode começou em 1984, com Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Almir Guineto e outros. Naquela época, eles já lotavam ginásios nos subúrbios do Rio e a mídia não via. Ela estava envolvida com o chamado rock de garagem. As gravadoras apostavam naquilo e aqueles grupos não vendiam ainda. O fenômeno do pagode estava nos subúrbios, nas ruas, e começou a vir para as praias. Aí ficou difícil virar as costas pra isso. A mídia teve que divulgar e o negócio estourou no Brasil todo.

 

Mas você vê alguma validade nessa coisa de axé, pagode, funk?

– Quando a axé-music surgiu com aquele negócio da boquinha da garrafa e não sei mais o que, de certa maneira escandalizou as pessoas porque você via crianças fazendo gestos que nós consideramos obscenos, degradantes, então eu tomava cuidado para dizer as coisas. Por exemplo, eu gostava muito, como ainda gosto, do ritmo, da alegria e da empolgação do É o Tchan!…

O ritmo é o mesmo do tradicional samba de roda.

– Exatamente. E talvez eu tenha sido a primeira pessoa de fora do movimento a falar isso. E recebi muitas críticas. Eu até brincava: se você fechar os olhos vai ouvir uma música que já existe na tradição brasileira, só que está com um caráter mais intenso, um ritmo mais gostoso. Aquilo que era duvido e que sempre existiu na cultura popular ficou mais explícito. Essa coisa dúbia sempre existiu. Eu era garoto, ouvindo as rodas de samba, de a gente tirar as moças para dançar: (canta) “Quero ver subir/ Quero ver descer/ Beabá, beebé, beibi/ Quero ver as cadeiras das nega bulir…” e depois dizia: “Bota a mão nos olhinhos/ Bota a mão na boquinha/ Bota a mão no umbiguinho/ Bota a mão no lelelê/ Bota a mão no lelalá”. Sempre houve essa coisa maliciosa. Faz parte da dança e da música, essa sacanagem meio velada, um pouco de lúdico também, atração e sedução. Agora o que a gente está vendo é uma coisa mais sofisticada, no nível da televisão, elevada ao extremo. Quando chega a esse ponto é evidente que o lúdico, sensual e erótico que havia nas rodas de samba ganha um caráter quase pornográfico. Não sei se isso é culpa exclusiva da mídia.

 

Até que ponto a uniformidade da mídia incomoda você?

– Eu tenho como dado positivo o fato de que não existe só isso. A cultura é muito diversificada. Os valores são diversos. E é assim que as pessoas têm se comportado. Essa coisa é uma provocação. Talvez nos revele muitas coisas interessantes. Do ponto de vista artístico, sobre o universo do funk, eu não conheço muito para poder falar. Normalmente, o que a gente ouve, como já aconteceu com outros movimentos, é alguma coisa que nos choca porque não faz parte do nosso mundo. E é muito agressivo. Nesse aspecto que envolve a sensualidade e menores de idade – segundos os jornais – existem pessoas alertando para o número de garotas que engravidaram naquele negócio do trenzinho. Isso suscita uma nova discussão em torno do papel da mulher. Essa coisa de tapinha… Já ouvi mulheres com pontos de vistas totalmente diferentes. Umas, achando que é aberração, uma forma de pregação da submissão da mulher; outras, dizendo que não é nada disso. O que é mais interessando é que o fenômeno existe não foi criado pela mídia. Esse negócio de funk a gente ouve há muito tempo como uma coisa dos excluídos, feita por gente não tinha espaço na grande mídia.

 

Você gosta de funk?

– Gostar ou não é outra história. Com toda sinceridade, alguma coisa até me diverte. Mas nada que me comova ou me faça dançar. Prefiro dançar outras coisas. Mas quem sou eu pra dizer que isso é ruim? Seria uma enorme pretensão da minha parte. Tem milhares de pessoas envolvidas no processo, que curtem isso e criam um vínculo que não conseguem criar com o resto da sociedade. A música brasileira sempre se diversificou. Uma coisa é a mídia dirigida, aquela que trabalha com o que tem uma resposta imediata. E ao lado disso, a meu ver, existe a sociedade com seus problemas, sua vida e seus valores que permanecem. Às vezes permanecem latentes em uns e vivos em outros. E se não fosse assim, toda a cultura brasileira já teria desaparecido. Agora, acho que é uma coisa legítima as novas gerações desejarem fazer misturas, procurando formas diferentes de expressão. 

 

Mas isso não é só modismo?

– Tem gente que vai até dizer que é uma moda passageira. Pode ser. A gente já teve tantas! Mas quem sabe onde isso vai dar? A gente deve extrair de tudo isso o fenômeno cultural brasileiro que é uma coisa diversificada. Mas se você me pergunta se eu prefiro ouvir Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso e Orlando Silva a ouvir funk, eu vou responder que ouço Orlando Silva, Ary, Noel e Pixinguinha. E isso não me cansa. E ouço outros mais, milhares de grandes artistas. Ouvi duas vezes o funk do Tigrão. Achei engraçado, suscita indignações, deboches e discussões… E não invalida o funk. Pode até ter vida curta na mídia e sobreviver nos bailes de onde veio.

 

Quais são os artistas posteriores à sua geração que você mais admira na MPB?

– Não sou um expert, mas tem muita gente boa. Vou citar três pessoas que têm um trabalho legal. Alguns deles já estão na batalha há muito tempo. Um é o Lenine. Outro é o Zeca Baleiro, que acho muito legal também. Tem também a Cássia Eller, de outra geração que não é a minha. A própria Marisa Monte, como cantora. Tem uma cantora em São Paulo, a Ná Ozetti. O Guinga, esse artista que já era conhecido de uma turma restrita e que, quando acontece muito tempo depois, revela todo seu potencial. O Guinga tem um conhecimento profundo sobre a música brasileira. E tem o Lobão, com um trabalho bonito. O Paulinho Pedra Azul, em Minas, criou um trabalho que é só dele. O grande problema nosso é que temos um processo extremamente rico e não podemos ter tudo ao mesmo tempo na ordem do dia porque não é da natureza da mídia. Mas é melhor ter um problema desses do que não ter nada. A música brasileira é um tremendo pau-de-sebo no qual tem muita gente boa tentando subir.

Ao lado de Aldir Blanc e Chico Buarque, considero Paulo César Pinheiro um dos três mosqueteiros da letra musical brasileira. A escolha do D’Artagnan fica por conta dos leitores. Motivado pela leitura do seu livro de poemas Atabaques, violas e bambus, nas comemorações dos 500 anos do Brasil, consegui seu telefone com o compositor Sérgio Santos e fiz a presente entrevista, publicada no EM, a 21 de janeiro de 2001. Tenho a honra de compartilharmos o parceiro Rick Udler, que reside em São Paulo.

Paladino da brasilidade

 

Baden Powell, Tom Jobim, Pixinguinha, Eduardo Gudin, Theo de Barros, Sueli Costa, Edu Lobo, Dori Caymmi, Sivuca, João Nogueira, Lenine, Guinga, Moacyr Luz… Eis alguns dos quase 100 parceiros musicais de Paulo César Pinheiro. Com mais de 800 músicas gravadas, esse carioca autêntico nunca se furtou a inaugurar parcerias, tratando com generosidade músicos de várias gerações, entre eles o paraense Paulo André Barata, o mineiro Sérgio Santos e o norte-americano Rick Udler, que vive em São Paulo. 

Nada mal para quem começou aos dezesseis anos, compondo Lapinha com Baden e vencendo a Primeira Bienal do Samba, na voz de Elis Regina, na TV Record. Enquanto alguns letristas preferem não se arriscar na poesia escrita, o coautor de clássicos da MPB como O importante é que a nossa emoção sobreviva, Violão vadio e Matita Perê acaba de lançar pela Editora Record um verdadeiro épico. Dividido em três partes, Atabaques, violas e bambus sintetiza a pluralidade da nossa cultura e homenageia as etnias que forjaram a raça brasileira.

      Desde os anos 1960, a poesia passou a viver um fenômeno típico da revolução provocada pela comunicação de massa. O rádio, a TV e os jornais aumentaram o espaço dedicado à canção popular e os grandes poetas do País deixaram de ser os homens da escrita para se firmarem cada vez mais como letristas. Se não surgiram novos poetas à altura de Drummond, Bandeira, João Cabral e Haroldo de Campos, compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso, Aldir Blanc e Fernando Brant passaram a ser comparados aos mestres da escrita. Assim, o samba e a toada ganharam status literário.

Vinicius de Moraes foi quem melhor compreendeu o fenômeno. Ele saltou da poesia escrita para a poesia cantada com a habilidade de um trapezista avesso às críticas. Seu exemplo foi decisivo para as gerações posteriores e Paulo César Pinheiro tornou-se um dos seus principais discípulos. Viúvo da cantora Clara Nunes, casado com Luciana Rabello e pai de dois filhos, o compositor que deixou a faculdade de Direito no terceiro ano nunca se afastou da palavra escrita. Além do novo livro e dos dois anteriores – Canto brasileiro e viola morena – ele já tem outros cinco na gaveta: Trave de sal, cem sonetos sentimentais para violão e orquestra, Poesia de música, Canções ocultas e uma coletânea de poemas dedicados aos amigos, ainda sem título.

 

Certos autores diferenciam a letra musical da poesia escrita. Você é um deles?

– Eu comecei fazendo as duas coisas quase que ao mesmo tempo. Não vejo grandes diferenças entre as duas coisas. Existem poemas mais difíceis de musicar. Há quem defenda que letra de música não é poesia. Mas isso é uma coisa discutível. Se a letra que o Chico Buarque faz não é poesia, aí eu paro de escrever. No meu livro inédito Poesia de música, eu tento mostrar que não existe diferença. Os versos podem ser lidos ou musicados. A poesia começou com os trovadores. Não começou escrita, mas cantada. Poesia e letra são irmãs, sempre andaram juntas. Existem letras que só funcionam dentro da melodia. E poemas que não soam bem quando musicados. Mas tudo é poesia.

 

Você gosta que façam música para o seu poema ou prefere colocar letra na melodia que já está pronta?

– Eu comecei fazendo letras para músicas prontas. Como faço também melodias, meus versos são muito musicais. Então, muitas poesias que eu faço acabam sendo musicadas pelos meus parceiros. Mas eu gosto mais quando coloco letra na música que me mandam. Acho mais estimulante e trabalho mais desse jeito.

 

Como você vê a música brasileira nos dias atuais?

– Eu acho que involuiu bastante, porque não houve muita renovação. Ou melhor, as pessoas que hoje seguem o caminho dos compositores mais velhos, assim como eu segui, não têm muita oportunidade de mostrar seu trabalho tanto quanto nós tivemos. Houve uma época em que as coisas eram mais fáceis. Hoje, existe uma ditadura muito grande, uma indústria muito armada. Já ouvi muita gente dizer que há uma crise de criatividade e já li matérias sobre isso. Mas isso não é verdade. Tem muita gente nova fazendo coisa boa, mas encontrando dificuldade para mostrar. O Sérgio Santos é um grande exemplo disso. Tenho uma parceria fertilíssima com ele. Temos mais de 100 músicas feitas e ele só tem dois discos gravados até agora.

 

Você é um compositor aberto a novas parcerias?

– Eu busco a novidade. Busco as pessoas mais novas. Quero sempre saber quem está fazendo música e, se gostar, eu proponho a parceria. Gosto de escutar quem está chegando e me ofereço para trabalhar junto. Acho que foi um grande erro da minha geração não ter tido esse contato maior com os mais novos e dar força para essas pessoas. O Vinicius fez muito isso e eu aprendi com ele. Eu devo muito isso e eu aprendi com ele. Eu devo muito ao Baden, que era parceiro dele quando ele já estava no auge da fama, considerado i papa da música brasileira. Ele tinha mais de cinquenta anos e eu tinha dezesseis. O Baden, que era parceiro dele, fez uma parceria comigo, um ilustre desconhecido, que foi Lapinha.

 

É possível viver de direitos autorais no Brasil?

– Eu vivo de direito autoral, mas devo ser uma exceção devido ao volume da minha obra. Tenho mais de 800 músicas gravadas.

 

Quando você começou a conceber seu novo livro?

– Esse livro se fez por acaso. Como eu escrevo muito, além de compor muito, minha gaveta estava cheia de coisas. Um dia resolvi organizar isso e descobri que tinha material para quatro ou cinco livros. Aí comecei a organizar cada um deles. Eu tinha muitas coisas escritas sobre os negros e algumas sobre a viola. Percebi que a partir disso o livro poderia se fazer. Durante algum tempo fiquei com o livro pronto, sem o fecho final, a parte dos bambus. A terceira parte era outra coisa que não me agradava muito.

 

E como você concluiu essa parte?

– Certo dia, o Paulo André Barata mandou para mim uma música para colocar letra, chamada “Macarel”. O parceiro mais constante dele era o pai, o compositor Ruy Barata, que já morreu. Ele era muito conhecido no Pará, gostava muito das coisas que eu escrevia e disse ao filho que ele deveria tentar fazer parcerias comigo. Depois que ele morreu, o Paulo André me procurou. Éramos amigos, mas nunca tínhamos feito nada juntos. Ele me mostrou a música e os livros do pai, que usava a linguagem da região amazônica. Eu percebi que era por ali a terceira parte do meu livro, a parte dos índios. Sou neto de pescador e pescava muito com o meu avô, na região de Angra dos Reis. Lembro que várias tribos indígenas dominavam aquela região. Eu tinha ancestrais ali naquelas tribos. A minha avó era uma indiazinha… Então eu já conhecia alguma coisa e comecei a reler tudo o que eu encontrei a respeito dos mitos, lendas e costumes dos povos indígenas. Guardei a parte que eu tinha pronta para outro livro e reescrevi os poemas. Aproveitei a ocasião dos 500 anos de Brasil para lançar o livro. Tem poemas recentes e coisa muito velha, com cerca de dez anos.

 

  Você é daqueles que acorda de madrugada com um verso na cabeça?

– É o que mais acontece. E tenho que levantar para não esquecer. Se deixar para o dia seguinte, a ideia vai embora. Às vezes o físico nem ajuda. Você está entorpecido de sono, cansado, e tem que levantar. É tão violento o processo que te domina e você consegue forças para levantar. Já tentei dormir com papel e lápis ao lado da cama, mas aí não acontece nada.

 

Seu livro é dedicado a João Felício dos Santos e ao Câmara Cascudo. A exemplo de Vinicius, eles também influenciaram sua obra?

– O João Felício foi um dos grandes mestres da literatura brasileira, autor de “Ganga Zumba”. O Câmara Cascudo também foi muito importante. Conheço muito a obra dos dois, e muita coisa que tem no meu novo livro eu aprendi com eles. A parte dos negros com o João e a parte dos índios com o Cascudo.

 

Sua poesia tem muita religiosidade. Você é um homem religioso?

– Sou um apaixonado por esse tipo de cultura popular. Sempre me interessei pelas coisas afro-brasileiras, muito por influência do Baden, que foi o criador de um gênero, que é o afro-samba. Aprendi muito com ele e sempre gostei dos toques, dos cânticos, das danças, da comida e de tudo o que herdamos da África. As histórias dos orixás compõem uma mitologia que se parece muito com a mitologia grega. Mas sou meio agnóstico. Eu não professo nenhuma religião. Tenho fascinação pela cultura dos negros, que é uma coisa muito bonita. As músicas são fantásticas. Tenho muita coisa nesse caminho. Às vezes até acontecem coisas comigo meios inexplicáveis e as pessoas se admiram: “Mesmo assim você não acredita?” Acontece de eu ver coisas, escutar coisas… Recentemente eu estava conversando com o Chico Buarque, que é meu grande amigo, e ele disse que fica espantado com a minha fertilidade. E ele é um sujeito fértil também. Mas ele acha que comigo isso vem em cachoeiras.

 

Você fez muita pesquisa para escrever Atabaques, violas e bambus?

– Eu sempre fui um leitor voraz. Tenho em meu escritório duas estantes coalhadas de livros de ponta a ponta, sobretudo livros que falam do Brasil. E viajei muito pelo Brasil. Então, as coisas já estão em mim. Para esse livro, por exemplo, não fiz nenhuma pesquisa. As pessoas pensam que eu pesquiso. O Hermínio Bello de Carvalho, que é outro grande amigo, acho que eu tinha pesquisado. Mas não. Aquilo já estava em mim. Tanto que fiquei em dúvida se deveria ou não fazer um glossário e as pessoas diziam que era uma boa ideia. Parece estranho, pois livro de poesia com glossário eu nunca tinha visto. Na parte dos negros, por exemplo, tem palavras ali que eram usadas no tempo de Palmares… Sou apaixonado pelas coisas do Brasil. Meu pai era paraibano e eu conheço toda aquela região das caatingas. Com meu avô, que era pescador, conheci a região de Angra dos Reis quando na casa dele a luz era à base de querosene. Essas duas convivências me fizeram buscar todo o resto. Minha música e minha poesia estão coalhadas disso, repletas das coisas do Brasil.

Sem a menor dúvida, Paulo Gracindo foi um dos atores mais talentosos e bem-amados do Brasil. Desde os tempos da Rádio Nacional, onde estreou como locutor, até o auge da carreira na pele do pândego Odorico Paraguaçu, ele teve uma carreira ascendente, repleta de personagens dos mais variados estilos. Entrevistei-o quando esteve em Belo Horizonte pela última vez. A matéria, que incluiu uma retranca com seus colegas de elenco, foi publicada no EM, em 9 de agosto de 1989.

Gracindo despede-se do palco

 

Estreia no Palácio das Arte a peça O preço, de Arthur Miller, com tradução de Millôr Fernandes e direção de Bibi Ferreira. No elenco: Paulo Gracindo, Rogério Fróes, Carlos Zara e Eva Wilma. Cenário e figurinos de José Dias.

O preço trata do reencontro de dois irmãos. O primeiro, Victor (Rogério Fróes), ficou cuidando do pai enfermo e tudo o que conseguiu na vida foi ser guarda metropolitano. Walter (Carlos Zara) abandonou a casa e cursos medicina, tornando-se um renomado cirurgião. Ambos se reencontram justamente no momento em que o ancião judeu Gregory Solomon (Paulo Gracindo) está na casa de Victor e Esther (Eva Wilma), tentando arrematar móveis antigos. A peça estreou no Brasil em 1968, com tradução e direção de Luís de Lima, tendo no elenco o próprio Paulo Gracindo, Jardel Filho, Leonardo Villar e Maria Fernanda. A atual montagem ficou em cartaz por nove meses no Rio e quase cinco, em São Paulo, marcando a despedida de Paulo Gracindo dos palcos.

Nascido Pelópidas Guimarães Brandão Gracindo, em Maceió, a 16 de julho de 1911, Paulo tem cinquenta e dois anos de palco. Fez também rádio e cinema, e imortalizou na TV uma verdadeira galeria de grandes personagens. Num bate-papo conosco, após uma entrevista coletiva, ele falou de vários assuntos.

 

Por que se despede dos palcos?

– Pelo seguinte: eu não tenho mais tempo. O meu tempo está acabando, o meu contrato com a vida está terminando e a televisão é muito mais fácil de fazer. Cansa menos. Não tenho que fazer matinê, tudo isso, compreendeu? A não ser que apareçam oportunidades, digamos assim, irrecusáveis. Agora, por exemplo, lá em São Paulo, o Chico de Assis, que é um sujeito maravilhoso, escreveu uma peça muito bonita. Uma peça política muito brasileira e coisa e tal. E eu fico realmente tentado a fazer. Tenho um amor todo especial pelo teatro.

 

Falando em política, e o Brasil?

– Ah, que coisa terrível, não é? Mas o pior é que é assim desde o meu tempo. Eu vim lutando lá de Alagoas.

 

E como alagoano, você vai “collorir” (votar em Fernando Collor para presidente)?

– Não, não tem nada a ver uma coisa com outra. Falar em “collorir”, eu assisti ontem (domingo) à Marília Gabriela fazendo uma entrevista com o Afif Domingos e me impressionou muito. Ele não hesita um só momento. Sabe com absoluta convicção tudo o que quer. Pena não ter um grupo forte para sustentá-lo, porque os outros têm mais dinheiro.

 

Você viveu no palco e na televisão uma série de grandes personagens: o Tucão da novela Bandeira dois, o Odorico de O Bem-amado, o Quincas berro d’água, o coronel Ramiro Bastos de Gabriela, o Gregory Solomon que você está revivendo no palco, o vô Pepe de Mandala. Como é a sua transação com essa gente? 

– São pessoas minhas. São meus filhos, como se fossem meus filhos, já que criados por mim. Mas sempre me esforcei terrivelmente em fazê-los diferentes. Cada tipo é um tipo. Cada vida é uma vida. O coronel Bastos é um. O Odorico é outro, e assim por diante.

 

Outro dia, numa entrevista no programa Sem Censura, você dizia que a força do personagem está no olhar. Como é isso?

– O Walter Avancini sempre me pediu no coronel Ramiro Bastos a força dos olhos: “Paulo, você domina e comanda todos esses coronéis pelo olhar”. De forma que a cada cena ele dizia: “Paulo, olha o olho. É o teu olho que domina. Eu preciso do teu olho”. E eu pensava que aquilo fosse um pouco de frescura de diretor. Um pouco de exagero, não é? Foi quando aconteceu de a novela ter feito um sucesso enorme em Portugal. E uma vez eu estava andando em Lisboa, usando óculos escuros, que eu sempre ando de óculos escuros, e aí uma senhora que ia à minha frente parou, voltou-se para mim e disse (sotaque lusitano): “importa-se de tirar os óculos?”. E eu disse: “pois não, minha senhora. É um prazer”. Ela olhou e disse assim: “não tem o olhar do coronel Ramiro Bastos”.

 

Quando não está no teatro, quando não está na televisão, quando não está no cinema, o que o Paulo Gracindo mais gosta de fazer?

– Pensa no próximo trabalho que ele vai fazer. Eu vivo o teatro vinte e quatro horas por dia. Sempre foi assim, desde menino.

 

Como é que você começou a ser ator?

– Eu era locutor da Rádio Tupi e aí começamos a ler os textos de teatro. Era o chamado teatro cego. Nós líamos as peças que eram feitas no teatro e, como não havia imagem, era o teatro cego. E assim nasceu o chamado Grande Teatro. Mas eu já vinha do teatro. Comecei ainda menino. Fui bailarino, cantava com a Lódia Silva, mãe do Jardel Filho. A gente cantava e dançava vestidos de mexicanos, com sombreiro e tudo. Foi tudo um começo, porque no meu tempo não havia escolas de teatro. Então, a gente só aprendia teatro fazendo teatro amador.

 

Mas você sempre quis ser profissional, não?

– Sim, a minha filosofia de trabalho era sempre a seguinte: “eu quero aparecer”. Isso era a vaidade do ator, não é? Mas não me davam papéis. Ninguém me conhecia, então sempre me davam os piores, os últimos papéis. Mas sempre tive como filosofia de trabalho fazer o primeiro papel do último. E o esforço de fazer do último papel o primeiro, e é claro que eu não conseguia, me projetava e fazia com que os críticos me notassem. Como um famoso crítico da época, Mário Nunes, que disse assim: “Quem é este rapaz que ninguém sabe de onde veio, que não faz nada e aparece tanto?”. Então, eu fazia de tudo pra aparecer, que nem aqueles caras que põem a cara na fotografia dos outros. Inventava tosses quando estava em cena, coisas incríveis. 

Tinha quantos anos nessa época?

– Cerca de vinte anos. Minha primeira tentativa de entrar para o teatro foi através de um grupo de amadores do Ginásio Português. E tive tanta sorte que, na noite em que estreei, convidaram o Oduvaldo Viana, pai do Vianinha, para assistir ao espetáculo. Quando acabou, ele disse: “menino, você não quer ser profissional?”. Então você vê só o que é o destino. Tirei a sorte grande.

 

E no cinema? Seu primeiro trabalho foi mesmo em Terra em transe, do Glauber Rocha?

– Eu tinha feito umas porcariazinhas no tempo da Cinédia, com o Oscarito. Chanchadas, enfim.

Sua família era de origem humilde?

– Não, não era de origem humilde.

 

Seria daí que vem o seu inconsciente coronelista, reencarnado em Ramiro Bastos?

– Coronelista talvez por parte de pai. O meu pai foi praticamente tudo em Alagoas. Foi prefeito de Maceió, quando mandou construir o teatro da cidade. Foi deputado, senador e governador de Alagoas. Fez uma carreira brilhante. E curioso é que ele tinha horror que eu fizesse teatro, a ponto de dizer: “no dia em que você subir num palco, eu entro pela plateia e tiro você pela gola do paletó”. Agora veja você, esse homem que me disse isso foi quem construiu o teatro mais lindo de Alagoas. Quando esse teatro completou setenta anos, ironicamente, eu fui convidado para fazer um show. E a primeira coisa que eu disse foi: “olha, eu estou proibido de pisar o palco desse teatro pelo próprio dono do teatro e ele não vai gostar”.

 

Voltando à política, você acha que o Brasil tem saída?

– Não, eu não sou otimista com relação ao Brasil. Eu não vejo saída com essa dívida externa que nós estamos. Daqui a pouco vamos ser outra Argentina, com a hiperinflação galopante.

 

Encerrando, eu pergunto: como é reviver o Gregory Solomon vinte anos depois?

– Há vinte anos, eu não tinha o peso necessário para fazer o velho Solomon, que tem na peça oitenta e nove anos. Com a idade que tenho atualmente, eu me sinto muito mais à vontade dentro do personagem, mais próximo da idade dele. E era um sonho que eu tinha guardado. Sempre quis reviver esse personagem, fazer essa peça no final de carreira. Um dia, o Fernando Ornstein, esse grande empresário que o Brasil conhece, me telefonou e disse: “Paulo, tive uma ideia. Você quer remontar O preço?”. Então, veja que coincidência. E eu aceitei, é claro. O Solomon é o tipo mais feliz que eu já fiz e pelo qual eu tenho um extraordinário amor. Quando nos encontramos, eu, o Fróes, o Zara e nossa querida Vivinha (Eva Wilma), que deu uma vida extraordinária à peça, com a direção da Bibi Ferreira, fiquei extremamente feliz. E mais feliz ainda eu estou com os resultados da peça.

*Morreu no Rio de Janeiro, em 1995.

Poucos autores brasileiros foram tão livres, irreverentes e iconoclastas quanto Plínio Marcos. Seu compromisso com o teatro era tão forte que acabou fazendo de si um personagem da cultura nacional. Quase sempre de macacão e chinelos, o artista percorria o Brasil com um monólogo que arregimentava diversas plateias. Foi nessa época que o entrevistei para a coluna Teatro Vivo. Com fotos do amigo Everton de Paula, nossa conversa foi publicada num EM de sábado, 2 de junho de 1984.

A lucidez e o discurso do palhaço

 

O nome do espetáculo é O palhaço repete seu discurso e o teatro é o Palácio das Artes. O autor e ator é Plínio Marcos e a produção é da Cadora – Publicidade e Promoções. Plínio é um dos principais atores e autores teatrais dos últimos vinte anos e seus textos constam entre os mais encenados do Brasil. Natural de Santos, litoral paulista, dono de uma lucidez política a toda prova, ele escreveu, entre outras, as peças Barrela, Navalha na carne, Dois perdidos numa noite suja, Abajur lilás e Quando as máquinas param, sendo que Navalha na carne e Dois pedidos foram também sucesso no cinema, sendo traduzidas em outros países.

Chamando a si mesmo de “repórter de um tempo mau”, Plínio Marcos atuou em novelas, foi comentarista esportivo e animador de shows. Vítima de muita perseguição da censura e dos meios mais arrojados de comunicação, ele está vindo de uma longa turnê por vinte cidades do interior de Minas. Quinta-feira, num bate-papo exclusivo, falou de muita coisa importante, inclusive de teatro e da situação atual do país.

 

Inicialmente, eu gostaria que você falasse um pouco dos seus trabalhos mais recentes.

– Ultimamente, eu tenho me dedicado mais a ser um instigador de conversas. A levar palestras em colégios e sindicados. Fiz uma viagem muito boa pelo interior de Minas, sempre com essa ideia de instigar conversas, porque o que a gente acha é que ninguém está conversando mais. E você que é de teatro sabe melhor do que eu que tem aquele poema do Brecht, que diz assim: “se o gado conversasse, não iria tão mansamente pro matadouro”. Nós estamos aí num momento em que, no Brasil, todo mundo fala e ninguém conversa. O povo não tem voz pra conversar, então precisa dos animadores de conversa e é isto que eu tenho proposto a ser.

 

E é fácil conversar?

– Não, não é fácil conversar. É uma tarefa muito difícil. Você veja que o maior comunicador de todos os tempos, nosso senhor Jesus Cristo, quando ia falar com os seus discípulos dizia: “quem tiver ouvidos de ouvir, que ouça”. Isto porque ele sabia que ia conversar com pessoas iguaizinhas a nós. Pessoas repletas de preconceito. Preconceito racial, político, sexual, psicológico, social e, sobretudo, preconceito cultural. Quem tem preconceito não ouve, a não ser o seu próprio barulho.

 

Você tem escrito atualmente? Como está a sua dramaturgia?

– Eu tenho o Jesus-homem, que fez uma carreira muito longa em São Paulo, numa temporada de quase um ano. Depois eu me dediquei mais à literatura, não é? Escrevi O prisioneiro de uma canção e teatro mesmo eu não tenho escrito, não.

 

Você ainda tem vendido seus livros pelas ruas e feiras?

– É, isso eu faço mesmo pra sobreviver. Eu tenho trabalhado mais em espaços alternativos, em colégios e, quando chegam essas épocas em que não há estudantes por causa das férias, eu me instalo na rua ou vou às feiras, esses lugares todos e vendo os meus livrinhos. São ruins, mas são baratos, dou autógrafo e prometo morrer logo pra poder valorizar o produto.

 

A peça Barrela foi censura no governo Juscelino, que foi considerado o mais democrático que tivemos segundo o que dizem por aí.

– É, Barrela… Ela foi liberada e ganhou vários prêmios, Prêmio Molière, ganhou quase tudo e depois de ter ficado vinte e cincos anos proibida. 

 

Apesar de ter feito o jubileu de prata nas gavetas da censura ela ainda é atual?

– Lamentavelmente todo o meu teatro é atual e eu gostaria que ele fosse todo superado, porque eu sou um escritor medíocre e tenho escrito peças-reportagens. Essas peças não estão superadas não é por mérito delas ou do autor, mas por culpa do país, que não evoluiu socialmente. E até tenho a impressão de que se continuar esse quadro aí, com Figueiredo e Delfim Neto, essas peças todas vão virar clássicos.

 

Eu vi uma entrevista sua no Canal Livre e você falava uns monólogos lindos, inclusive aquele dos pracinhas.

– E eu falo esse monólogo no show O palhaço repete seu discurso.

 

Você dizia da sua formação, que não tem nem o curso primário completo.

– Não tenho, não. Só tenho até o terceiro ano de grupo.

 

E pinta preconceitos por parte da chamada intelectualidade?

– Há preconceitos, e muitos, porque as pessoas desconhecem a existência da cultura popular. Elas acham que existe só a cultura erudita. Portanto, elas acham que se você não tem universidade, você é incapaz de ter cultura. Quando, na verdade, cultura não é saber ler e escrever e sim perceber as coisas, né? Eu conheço pessoas que já leram quase todos os livros e não têm percepção de nada. E conheço pessoas que não sabem ler e que têm uma percepção fantástica das coisas. Portanto, são pessoas que têm cultura.

 

Em 1979, na calourada unificada aqui em BH, você e o Lula vieram a convite do diretório acadêmico da FAFI-BH pra palestrar com a gente. Um amigo nosso foi ameaçado por pessoas que ligavam dizendo: “se você trouxer aqueles comunistas aqui nós vamos arrebentar com vocês todos”. Por que o medo dessa gente quanto a você? 

– Com a graça de Deus isso permanece até hoje em todos os lugares que eu vou tem essas coisas, inclusive agora, no interior de Minas. Pessoas gastam muito papel dizendo que eu sou comunista e essas coisas. Quando na verdade eu não cito nenhuma vez o Marx no meu show, cito toda hora Jesus Cristo. Mas as pessoas continuam afirmando que eu não sou cristão, que eu sou comunista. Isso porque não percebem que o maior instigador, maior inquietado e maior subversivo foi justamente Jesus Cristo.

 

Ele era um anarquista?

– Eu não sei se era anarquista. Eu não gosto de rotular as pessoas. Isso limita. Mas eu tenho comigo essa ideia de que o dever de um comunicador, e você é um comunicador, então um comunicador que nem a gente tem que pegar e subverter mesmo, qual é? Se fosse pra dizer o arroz com feijão, a gente tava trabalhando em novela e ganhando uma fortuna, né?

 

Aliás, você fez novelas.

– O passado me condena. Fiz novelas até perceber que você não serve a dois senhores. Que não há nenhuma possibilidade de você trabalhar num veículo que está ali pra vender porcaria, ideias deterioradas e descaracterizando o povo, e defender esse mesmo povo. Aí eu me afastei e já pra mais de dez anos que eu não faço uma novela. Tento dar entrevistas na televisão e eles não deixam. Essa entrevista aí que você citou já faz quase dois anos, não é?

 

Mas depois eu vi você no Boldrin.

– Eu, depois, nunca mais fui ao programa do Rolando Boldrin, que é amigo. Outro dia o Davi José, que foi do Teatro de Arena, ele tem um programa na TV Gazeta, eu pedi a ele pra me levar no programa dele, que eu ia divulgar O palhaço repete seu discurso lá em São Paulo. Os patrões dele não deixaram eu ir. O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde não noticiam nada a meu respeito. Tem lá uma moça, uma repórter maravilhosa, a Maria Amália, que fez uma entrevista comprida comigo na rua, vendendo livro, e não deixaram a matéria sair. E várias revistas de circulação nacional só podem falar de mim quando for pra cair de pau. Quando é pra falar a meu favor, não pode. Mas isso me deixa profundamente lisonjeado.

 

 Realmente existe uma campanha surda, ou não, contra a cultura nacional. Você seria vítima talvez por ser um baluarte dessa nossa cultura?

– Não acho que sou um baluarte ou se sou um baluarte da cultura popular, e nem acho que posso fazer cultura popular. A minha cultura só pode ser popularesca, porque popular é que vem de baixo pra cima, né? Eu sei, com a graça de Deus, que sou uma pessoa incômoda. Denuncio a invasão cultural e os dados que eu apresento, eles não podem contestar. Recentemente eu participei de uma mesa redonda. Aliás, nem fui convidado. Eu estava lá na porta vendendo e estavam os representantes de todos os canais de TV e a grande imprensa. O Walmor Chagas era o mediador. O Walmor Chagas é meu amigo, porque gosta de mim e provavelmente ficou penalizado quando me viu de macacão na porta, de chinelos, vendendo livro. Ele me convidou para a mesa. E eu, diante de todas aquelas personalidade da imprensa, do rádio televisão, mostrei dados que provam que o Brasil é invadido pelos veículos de comunicação social. São nove mil e seiscentos filmes estrangeiros por anos nos nossos cinemas. São oitenta por centro de músicas estrangeiras tocando diuturnamente nas nossas rádios. São centenas de publicações de baixíssimo nível, mal escritas e mal traduzidas, pornográficas, nas bancas de jornais e revistas, todas as semanas. São duzentos filmes estrangeiros por semana na TV e, se uma criança ficar dos três aos onze anos diante da televisão ela terá assistido a dezoito mil assassinatos. Mas isso não é o pior. A maior violência é o comercial, que é feito pra quem pode comprar a atinge exatamente quem não pode comprar, levando à neurose, à loucura, ao desespero e à frustração. Isso tudo resulta no esmagamento das manifestações espontâneas do povo brasileiro, na descaracterização do homem como um brasileiro e no aniquilamento do nosso mercado de trabalho, impedindo que nós, comunicadores, possamos discutir os aspectos culturais da nossa profissão.

 

Sem falar na falta de programações regionais obrigatória por lei, não é?

– Você vê aqui em Minas, quantos canais de televisão vocês têm e vocês vivem de filmes e teipes de Rio e São Paulo. Então, o artista daqui, excelente, por sinal… Tem vários grandes artistas, grandes escritores, vários grandes atores e grandes autores que conheço tem o seu mercado de trabalho limitado e ainda a opinião pública contra vocês.

 

O José Mayer saiu aqui do SENAC e já tem gente dizendo: “como o Mayer melhorou”. Melhorou uma ova. Ele ainda nem mostrou todo o seu talento na TV, segundo a Magda Lenard, que atuou diversas vezes com ele.

– E você veja, por exemplo, o caso do Jonas Bloch e Jota Dangelo. São dois grandes atores, começaram juntos e, de repente, um se destaca porque vai pra televisão e outro fica aí e ninguém sabe o que ele anda fazendo, né?

 

O Dângelo agora é secretário adjunto de Cultura, no Estado.

– Porque não tem mercado de trabalho, nem estímulo, não tem nada e fica sendo comprado e isto é geral no Brasil, e é contra isso que a gente reclama. Pra você se desenvolver, precisa do mercado de trabalho. Não dá, se termos o Rin Tin Tin trabalhando mais que a gente.

 

Um cachorro morto…

– E há mais de dez anos. Hoje, em plena crise de energia, o Brasil gasta mais com a importação de cultura de consumo do que na importação de petróleo.

 

E a invasão cultural é pior que a ocupação militar, não é?

– Claro! Porque destrói. A cultura nas mãos dos poderosos constrange mais que as armas. Você vê o que o português fez com o índio, que foi sendo descaracterizado. E, em nome de uma civilização e de um deus civilizado, desvincularam o índio da própria língua e da religião, e o índio ficou indefeso, sem cultura e está em extinção. E estão fazendo o mesmo com o povo brasileiro.

 

Você é mais Jesus Cristo ou Barrabás?

– Eu jamais seria o Barrabás. Eu sou um torcedor de Jesus Cristo, que é um grande inquietador, um grande despertador.

  

E existe saída pra tudo isso que está aí?

– Estou vindo do interior de Minas e digo que vi trabalhos interessantes que estão fazendo. Trabalhos heroicos, de resistência, como o de grupos de Barbacena, onde encontrei um pessoal maravilhoso, e de Patos de Minas. E é isso que dá esperança. Foi assim em Patrocínio, em Coromandel e em todos os lugares onde estive. O Vale do Jequitinhonha.

 

Uma vez você dizia num programa de TV, acho que na Hebe Camargo, que o brasileiro é que nem um torcedor na geral. Fica rouco e…

– E não influi no resultado do jogo. O povo brasileiro grita e é como um geraldino nato. Você não influi no seu destino. Não pode participar, nem tem o direito de saber o que se passa. No dia mais importante da História do Brasil desses últimos vinte anos não pudemos ficar sabendo pelo rádio e televisão o que se passava na capital do país. 

 

Você acha que as futuras gerações vão conseguiu um caminho?

– Ah, sim, nesses bate-papos que eu tenho feito com a nossa juventude e na qual eu incluo você, que é representante dessa geração que vem atrás de nós, a gente encontra um pessoal muito bom. É uma garotada sem maldade. A rapaziada olha pras moças sem maldade e as moças olham pra eles sem maldade. Eles não veem sujeitas onde a gente via e isso já é um sinal de melhora, porque, quando tudo parece perdido, é que tudo está pra ser salvo. E por mais que a gente queira negar, quando tudo parece sujo e no lixo é que a presença de Deus se manifesta através da dignidade do ser humano. A molecada que vem aí é maravilhosa e não vai aceitar esse poder, vai sair dele sabiamente.

 

Dizem aí que ninguém cria mais textos, que você morreu.

– É um problema quando as pessoas começam a cobrar do outro aquilo que elas gostariam de escrever. Se você olhar a dramaturgia americana e comparar com a brasileira vai ver que temos mais autores. Ficam cobrando inovação, mas inovar por que, se você já tem uma forma de dizer as coisas? Pessoas que se preocupam muito com a forma de dizer geralmente são pessoas que não têm nada a dizer. Escrevi vinte e cinco textos e, quando me dizem que o Plínio Marcos morreu, eu digo: “e você nasceu abordado, porque nunca escreveu nenhum texto”. Gente que se diz de esquerda, mas que aluga a força de trabalho para a direita. Mas eu me finjo de morto pra ver quem vem ao enterro.

 

E a censura, como você a define?

– A censura é um braço do colonialismo cultural. Ainda há pouco censuraram o Chico Anísio, o Jô Soares e o Ferreira Neto. Eles estão toda hora censurando a gente.

 

Pra encerrar, dá pra falar um pouco sobre O palhaço repete seu discurso?

– Não há como definir. É um monte de histórias. Eu conto histórias das quebradas do mundaréu, lá de onde o vento encosta o lixo e as pragas botam ovos. Eu falo das transas, dos estreitos escamosos e esquisitos caminhos do roçado do Bom Deus. Se algum valor eu tenho é o de ouvir e divulgar as coisas da gente minha. E eu conto os contos sem aumentar um ponto.

*Morreu em São Paulo, em 1999.

Conheci a autora do romance O quinze na Bienal Nestlé de Literatura, realizada em São Paulo, em 1991. Prima do ex-presidente Castello Branco, alguns a consideravam reacionária. Pelo contrário, Rachel se revelou extremamente consciente e moderna. Foi certamente uma das principais convidadas daquele evento, que reuniu alguns dos maiores autores nacionais durante uma semana. Conversei com ela num café da manhã e a entrevista foi publicada no EM, em 7 de setembro daquele ano.

80 anos de lucidez

 

“Eu não gosto de escrever.” Se fosse dita por um foca ou por um jovem aspirante a escritor essa frase talvez fizesse sentido. Mas ouvi-la justamente da primeira dama da literatura brasileira é, no mínimo, surpreendente. No alto dos seus oito e um anos de vida – nascida em Fortaleza, a 17 de novembro de 1910 – Rachel de Queiroz pode ser definida como a própria encarnação da lucidez.

Autora de romances, crônicas, peças de teatro, literatura infantojuvenil e inúmeros artigos para jornais, Rachel se define como a combatente do bom combate. Começou ainda criança, escrevendo à luz de lampião. Aos vinte anos, ganhou o Prêmio da Fundação Oswaldo Aranha com o romance O quinze, no qual fala da seca que arrasou o nordeste quando ela tinha cinco anos. Acabou sendo descoberta no sul do país, passando a publicar pela José Olympio Editora. Foi traduzida nos Estados Unidos, Japão, França, Alemanha e Polônia, sendo lida também em Portugal.

Rachel chegou a se filiar ao Partido Comunista Brasileiro, mas logo se tornou dissidente, já que um chefete de plantão tentou patrulhar sua criação no romance João Miguel. Louvada pelos mais representativos nomes da inteligência nacional – entre eles Graciliano Ramos, Adonias Filho, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa e Austregésilo de Athayde, ela foi a primeira mulher eleita e admitida nos quadros da Academia Brasileira de Letras.

 

A senhora é otimista ou se considera uma pessoa pessimista?

– Eu sempre me defino como pessimista. Eu sempre espero o pior, porque, quando vier o melhor, terei uma surpresa agradável.

 

Mas no relacionamento com os novos escritores a senhora tem se mostrado uma pessoa encorajadora.

– Sim, porque eu tenho uma confiança enorme nesse Brasil. Uma confiança muito grande nessa meninada. Quando ouço alguém falar mal de uma mocidade como essa, acusando-a de indiferente e sem solução, eu não acredito. Fico até muito irritada com esse tipo de afirmação.

 

A senhora tem estado atenta à produção literária das novas gerações?

– Tanto quanto possível, porque a quantidade de gente escrevendo é muito grande e o tempo da gente é muito limitado. Mas tudo o que eu posso ler e tenho a oportunidade de ler eu leio e, de vez em quando, estou fazendo uma descoberta encantadora e agradabilíssima.

 

Qual foi a sensação de ser escolhida como a primeira dama a entrar para os quadros da ABL?

– Acho que já respondi a essa pergunta um milhão de vezes. Sempre digo que entrei na Academia sem ter culpa. Meus amigos todos já estavam lá. A Academia abriu as portas para as mulheres e eu, como escritora mais velha do país e a que mais convivia no meio deles tornei-me a primeira escolhida. Acho que não foi por mérito especial.

 

Como a senhora vê a situação da mulher no Brasil de hoje em comparação com os seus tempos de moça?

– A diferença não é tão grande quanto se diz. O que há é que a mulher brasileira hoje entrou no mercado de trabalho com toda a força. E entrou também nos estudos e no exercício pleno das profissões liberais, das funções intelectuais. Mas sempre ouve mulheres trabalhando. Sempre existiram as pioneiras. No meu caso particular, não me queixo de nada. Sempre digo que, mais do que essas meninas que encontram uma dura concorrência, eu fui até muito paparicada, provavelmente porque éramos poucas naquela época.

 

Uma vez a senhora disse que, se fosse para começar hoje na literatura, preferiria ficar em sua terra, casar e criar muitos filhos. Isso é verdade ou pra fazer charme?

– Não é charme nenhum. É realmente a minha realidade. Eu devia ter ficado fazendeira como a minha avó e não ter tido quinze filhos como ela, mas uns doze, pelo menos.

 

A crítica já incomodou a senhora alguma vez?

– Eu não sou de uma grande humildade perante a crítica, porque realmente eu não sei o que foi que eu fiz, o que foi que eu escrevi. A crítica às vezes me aponta caminhos e me esclarece. Quando ela é lisonjeira, eu não acredito muito e dói o desconto. Mas, de fato, a crítica é uma espécie de baliza para o escritor. É essencial. Sem ela, como você vai poder avaliar a dimensão do que você fez? É preciso haver uma opinião autorizada para te dar essa posição diante do seu próprio trabalho. 

 

A senhora teve uma aproximação com o teatro. Ganhou o Prêmio Saci com a peça Lampião. Por que deixou de se dedicar à dramaturgia?

– O teatro é um trabalho de equipe. Só funciona mesmo quando há entrosamento entre autor, diretor e elenco. Como eu sou a famosa loba solitária, trabalho sempre sozinha, nunca em equipe, eu nunca soube me orientar para escrever teatro. Penso que só escrever o texto não é tudo para o autor. Ele tem que colaborar com a encenação do espetáculo e isso lhe deve ser permitido pelo diretor e pelo elenco.

 

A senhora demora muito para concluir uma romance?

– Demoro muito para começa o livro. Depois que começo, trabalho durante algum tempo. Já faz alguns meses que estou escrevendo um novo livro e quase sempre levo cerca de um ano para concluir o trabalho. Eu elaboro muito, reescrevo muitas vezes e maltrato muito o meu texto até considerá-lo pronto.

 

Quais os autores que a senhora lia mais no início da carreira?

– Eu me formei com base na literatura europeia, lendo grandes romancistas como Tolstói, Gorki e Dostoievski, que é meu ídolo, meu deus. Li a boa literatura francesa e, depois dos dezoito anos, quando aprendi inglês, passei a ler os originais de autores ingleses. Sou viciada nesses autores. Ultimamente, tenho lido principalmente Jane Austin e Virginia Wolf, que são meus ídolos.

 

Qual a sua opinião sobre a Bienal Nestlé deste ano?

– É o mais importante acontecimento literário do Brasil, de iniciativa particular, com imensa repercussão e um retorno tremendo. É também uma porta aberta para os novos autores. Para nós, veteranos, é a oportunidade de sermos mais reconhecidos e nos aproximar dos jovens, isso é algo muito precioso para todos nós.

 

Como a senhora vê a relação do Estado brasileiro com a literatura?

– Qualquer escritor independe do governo. O que poderia ser feito pelo Estado seriam eventos como a Bienal Nestlé, que abre oportunidade para os novos talentos, sem opinar na criação literária ou na própria cultura. O que a gente não tolera é o governo orientar ou dirigir a cultura. A cultura tem que ter sua independência do poder, sua própria marca. A liberdade é fundamental para o escritor.

 

Se tivesse que dar um recado para os novos autores, que recado seria esse?

– Força, coragem, paciência e, principalmente, talento.

*Morreu no Rio de Janeiro, em 2003.

Do pioneirismo do professor Carlos Leite à originalidade de Klaus Vianna, Belo Horizonte sempre foi uma referência na dança nacional. Companhias de vários gêneros se destacaram na cena mineira, especialmente o Grupo Corpo, dos irmãos Pederneiras. Acompanhei sua evolução desde o espetáculo Maria, Maria, passando por Nazareth, 21, Parabelo, Benguelê e muitos outros. Entrevistei seu diretor no início dos anos 1980 para o EM, mas não localizei a data de publicação da matéria.

O reinventor da dança moderna

 

Para muitos, ele é o grande gênio da dança brasileira. Mais de perto, mostra-se um rapaz simpático e meio tímido. Fumo em excesso, o que não é aconselhável principalmente pra quem trabalha com o corpo. Mas o mais importante de tudo é que ele nunca permitiu que o sucesso lhe subisse à cabeça. Este é um rápido retrato de Rodrigo Pederneiras, coreógrafo responsável pela criação dos mais importantes trabalhos do Grupo Corpo. 

Aos trinta e três anos, Rodrigo recebe hoje, no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo de São Paulo, o Prêmio Lei Sarney na categoria Destaque, como coreógrafo. Patrocinado pela Fundação Banco do Brasil, esse troféu já vem sendo considerado um dos mais importantes do país e acrescenta mais uma honraria à lista de premiações do Corpo e seu fundador.

 

Como você se sente ao receber mais esse prêmio?

– É ótimo. Um prêmio é sempre um reconhecimento. E ainda mais importante é que é um prêmio nacional.

 

O Corpo e seus integrantes raramente procuram a imprensa, ao contrário de outros artistas que estão sempre querendo divulgar suas ideias e seu trabalho. Vocês fala pela dança, não pelas palavras, certo?

– Não gosto muito de teorias. As minhas teorias são para mim, não sei se funcionariam com os outros. Às vezes se encontram artistas com muita teoria, mas ela acaba não funcionando na prática. Como resultado, as pessoas ficam rotulando os trabalhos. Também não acredito em rótulos. Não tem sentido definir um espetáculo. Faço uma coisa hoje e amanhã talvez já tenha mudado. Não adianta teorizar, porque não existe fórmula.

 

Como ocorreu a evolução do Corpo ao longo de sua carreira. Sem querer definir, houve fases que puderam ser sentidas sem essa formulação teórica?

– A evolução não foi um processo pensado. As coisas forma simplesmente acontecendo. Acho que o importante é que nós nunca demos satisfações a ninguém, o que deu na cabeça a gente fez. Em certo período, houve muita cobrança, todos pediam balés brasileiros. Como definir o que é e o que não é um balé brasileiro? É tudo produzido aqui, as cabeças que criam são daqui, tudo é balé brasileiro. Não precisa colocar escola de samba em cena para ser nacional. Esse tipo de rótulo acaba atrapalhando o trabalho. 

 

Em sua opinião, por que o Corpo deu tão certo?

– Acho que, acima de tudo, por uma união muito grande entre as pessoas. Isso permitiu que fossem enfrentados os momentos mais difíceis. Houve época em que a gente trabalhou quase de graça. Nós, sócios da companhia, não recebíamos nada para poder pagar os bailarinos contratados. Hoje, felizmente, as coisas estão bem melhores. Além disso, desde o princípio, nós nos preocupamos em abrir os horizontes. O Corpo nasceu como companhia de dança, a escola surtiu depois. Geralmente acontece o contrário. O grupo é um apêndice na maioria das escolas.

 

Como é o relacionamento da companhia com a escola de dança do Corpo?

– São bem independentes.

E como é a expectativa do aluno da escola, que tem o nome do mais importante grupo de dança do país?

– Não sei exatamente. Só dou aula pra os bailarinos. Mas acredito que a expectativa deve ser bem grande, muitos deles gostariam, um dia, de estar dançando conosco. Há, na companhia, uma bailarina que só estudo no Corpo e veio direto da escola para o grupo.

 

Voltando ao sucesso do grupo, explique melhor essa questão de “abrir horizontes”.

– Desde o princípio, nós nos preocupamos com as viagens, inclusive ao estrangeiro. Os bailarinos, em todos os lugares, puderam ter contato com os melhores professores. O Paulo (Pederneiras), por exemplo, teve a chance de conhecer trabalhos de luz em espetáculos de dança de todo o mundo. Quase todas as pessoas, quando viajam, estão preocupadas em tomar muito vinho e se divertir. Nós procuramos aprender tudo. Nosso palco móvel, por exemplo, ninguém aqui sabia fazer um. Então, nos festivais de verão na Itália, a gente fotografava todos os detalhes de todos os palcos. Quando achamos que havia material suficiente, entregamos a um arquiteto, ele estudo tudo e criou o nosso. Você já deve ter visto, na Praça do Papa, por exemplo.

  

A vinda de Susanne Linke também aconteceu dentro dessa política?

– Sim, foi um trabalho bem interessante. Ela é muito alemã. Por mais que a gente veja a dança dos alemães, como a Pina Bausch, por exemplo, não é a mesma coisa que conviver com eles. Susanne trabalhava em cima da concentração, um esforço lento, muito metódico. A escolha das palavras usadas foi longa. Ela não se preocupava só com o sentido, mas também com a sonoridade. É bem diferente de mim, que trabalho em clima de brincadeira, bem leve, e milhões de soluções vão surgindo a cada dia.

 

Foi uma boa experiência?

– Foi… A gente se acostuma a pensar nessas pessoas como estrelas. Susanne é uma pessoa simples, amorosa. O Corpo ganhou profissionalmente com a vinda dela e nós ganhamos pessoalmente, fizemos uma grande amiga.

 

Belo Horizonte comportaria mais companhias do porte do Grupo Corpo?

– Comportaria cinco, dez companhias.

 

E por que isso não acontece?

– O principal motivo é a situação do país. Ninguém apoia a cultura, muito menos a dança. Na Alemanha, as principais companhias são estatais. Na França, as boas companhias privadas recebem grandes subvenções do governo. Nos Estados Unidos, onde o governo não se envolve em cultura, o fato de existir baixos impostos permite que as empresas privadas façam patrocínios imensos. Um programa de dança americana tem páginas e páginas de anunciantes.

 

A questão, então, é econômica.

– Principalmente. Mas, no Brasil, geralmente, falta também certa humildade. As pessoas deveriam começar fazendo o que saber fazer e o que gostam de fazer. Chega a ser uma questão de honestidade. Todo mundo quer começar de cima e, muitas vezes, não está pronto.

 

Teria sido mais fácil para o Corpo se ele tivesse nascido em outro lugar?

– Talvez sim. Na pior das hipóteses, menos doloroso. As coisas são mais fáceis no Rio e em São Paulo. Afinal de contas, os maiores jornais e as emissoras de TV estão lá.

 

E como está a companhia, atualmente?

– Nós viajamos muito. É bom, pois a companhia está sempre em contato com o palco e o público. Essa continuidade do trabalho é importante. Nós vamos continuar apostando sempre. Apostando na qualidade, no cuidado com os mínimos detalhes. A companhia dança muito e isso é essencial.

 

Pessoalmente, como você se sente estando à frente do Corpo?

– Não gosto dessa expressão, “à frente do Corpo”. A imprensa usa demais. Eu só fico à frente do Corpo se fizerem uma fila por ordem de tamanho. Eu sou o menor do grupo. O Corpo é um conjunto integrado. Pra eu poder trabalhar em paz, ficam quebrando a cabeça pessoas como Emílio Kalil, Paulo Pederneiras, Carmem Purri. É uma integração. Essa coisa de “à frente” cria uma imagem irreal. Estou junto do Corpo, no meio do bolo…

Considerado um dos grandes humoristas do país, Rogério Cardoso (Seu Rolando Lero) era um ator completo. Tive a honra de conhecê-lo pessoalmente quando atuou na leitura dramática da minha peça Álbum rasgado, em Belo Horizonte. Ele morou por algum tempo na cidade e o entrevistei algumas vezes. Uma dessas ocasiões foi quando roubava a cena na novela Explode coração, interpretando o personagem Salgadinho. A entrevista de capa foi publicada no EM num domingo, 3 de março de 1996.

O tempero da novela das oito

 

A novela Explode Coração, de Glória Perez, está longe de ser uma das melhores produções teledramatúrgicas da Rede Globo. Essa opinião pode até não ser unânime, mas outra é: Salgadinho, interpretado por Rogério Cardoso, é disparado o melhor personagem da novela. Convidado por Ziraldo para fazer o avô paterno do Menino Maluquinho no novo filme da série a ser dirigido por Daniela Thomas, o ator prepara-se também para voltar aos palcos em dois novos espetáculos. Além do seu talento para o humor e o drama, Cardoso revela outra faceta, a de político. Ele acaba de ser convidado para se lançar candidato a vereador pelo PSDB carioca.

Nascido em Mococa, interior de São Paulo, Rogério Cardoso começou a carreira aos quinze anos, na rádio local. De contrarregra do rádio-teatro passou a contar piadas num programa dominical e logo conquistou a audiência. Transferiu-se para Ribeirão Preto a fim de estudar e foi admitido na Rádio Clube, onde se profissionalizou como rádio-ator. Em 1963, estreou na TV Excelsior e, de lá para cá, fez humor em quase todas as emissoras de TV do país. “É mais fácil dizer em quais eu não trabalhei”, declara. Entre seus personagens, o que mais se destacou foi Rolando Lero, da Escolinha do professor Raimundo, com Chico Anysio. Aos cinquenta e oitos anos, casado há cinco com a produtora mineira Brande de Almeida, o ator tem residência no Rio e em BH, cidade cujas qualidades ele não cansa de elogiar.

   

Consagrado como humorista, você tem demonstrado também um grande talento para o drama. Como você se define profissionalmente?

– As pessoas geralmente fazem uma distinção entre ator e comediante, e isso não faz sentido. Na verdade, todos nós somos atores. Existe o ator dramático e o ator cômico. O ator cômico, ou comediante por excelência, tem facilidade para fazer drama ou tragédia, enquanto o ator dramático nem sempre consegue fazer humor. Humorista mesmo é todo aquele que faz humor: o cartunista, o escritor, o contador de piadas. No Brasil, incrivelmente, rotulam muito o ator. Uma vez eu quis fazer sapateado e me censuraram: “pô, você quer fazer tudo?”. Claro que eu quero fazer tudo. O artista americano é completo. Dança, canta, faz humor e drama. Ele sabe o quanto é importante ser eclético. O que mata no Brasil é essa coisa de rotular o profissional. Felizmente, isso está mudando.

 

O que leva um ator consagrado a se interessar por política partidária?

– Eu sempre fiz política, mas nunca estive na linha de frente. Eu não tenho que provar nada a ninguém. Nem pretendo ficar rico com a política. Meu desejo é servir mais ao Brasil. A proposta do PSDB é mudar a imagem do político, abrindo espaço para novas atuações, sobretudo jovens. Não sou tão jovem assim, mas tenho fôlego para tentar fazer alguma coisa nova, em termos políticos. Nesses quarenta e quatro anos de carreira, numa profissão difícil como a de ator, eu sempre sobrevivi dignamente. Esse tipo de perfil interessa ao partido.

 

Você não acha que as consequências da política adotada pelo PSDB têm sacrificado muita gente? Está crescendo o desemprego, o achatamento salarial, a quebradeira de pequenas e médias empresas…

– Numa luta desse porte contra a inflação seria inevitável que muita gente se machucasse. Qualquer governo que lutasse contra a inflação e contra aqueles que lucravam com ela iria enfrentar reações e dificuldades. Eu sempre fui fã do Fernando Henrique Cardoso e acho que ele está no caminho certo.

 

Você não fica preocupado, por exemplo, com a tensão que hoje cresce no campo?

– Agora é que as faculdades de direito estão se especializando em direito agrário. Isso mostra que até recentemente o assunto nem era prioridade no país. Há muitos interesses em jogo, forças poderosas. Há muito terra improdutiva nas mãos de poucos e muita gente querendo terra pra produzir. A questão do direito autoral, também, sempre foi uma baderna no Brasil. Mas acho que tudo isso tende a mudar. Nós vamos chegar lá.

 

O Salgadinho é hoje o tempero da novela das oito. É o favorito do público, segundo as pesquisas de opinião. Qual é a dimensão desse personagem na sua carreira?

– O Salgadinho está sendo muito importante pra mim. Depois de ficar por sete anos no ar, na pele do Rolando Lero, eu tive a sorte de receber esse presente das mãos da Glória Perez e do Paulo Ubiratan, diretor de Explode coração. É mais uma oportunidade de mostrar que eu sei fazer novela. É a quarta que eu faço. Muita gente se encontra comigo na rua e elogia esse trabalho.

 

Como é que você reage ao assédio do público?

– Claro que às vezes aparecem pessoas inconvenientes, mas eu driblo bem essa situação. A minha relação com o público é sempre boa. Eu luto para ser reconhecido e, se o público me assedia positivamente, isso só tem que me alegrar. Já tive a oportunidade de censurar uma colega nossa que tratou mal um fã. A gente luta a vida inteira pra ser reconhecido e, quando isso acontece, vai tratar mal o público? Não está certo. O público é que paga o meu pão e eu tenho que respeitá-lo.

 

Qual é a expectativa de atuar no filme Menino maluquinho 2?

– O Ziraldo me convidou e isso me deixou muito feliz. Topei na hora, mas ainda não assinamos o contrato. Só fiz dois curtas-metragens até hoje: O diabo no jogo de cartas, rodado por estudante da PUC/MG, e Causos, filmado no Rio. Sempre quis fazer um longa e foi muito honroso ser convidado pelo Ziraldo.

 

O que você achou do Menino maluquinho dirigido por Helvécio Ratton?

– Eu não tive tempo de ver o filme. Estou na novela, fazendo teatro e estava me mudando de apartamento. O tempo estava todo tomado. Agora vou pegar a fita na locadora. Minha mulher gostou muito. Estou curioso pra ver o filme.

 

Teatro, TV, cinema…

– Eu sou basicamente um homem de teatro, mas gosto de fazer televisão. São processos diferentes. O teatro permite elaborar melhor o personagem, pois é uma obra fechada. Na TV, a personagem vai evoluindo a cada capítulo e a gente nunca sabe no que é que ela vai dar. A TV é também a grande vitrine do ator. A gente é visto por milhões de pessoas, fica conhecido. Mas, tão logo o programa sai do ar, o público esquece. O teatro marca mais o espectador. O cinema sempre foi uma expectativa. Eu gosto de cinema, mas não havia tido a oportunidade de fazer.

 

O que você acha de ter um pé em Belo Horizonte?

– Eu gosto muito da paz que a cidade me dá. BH é muito acolhedora. É uma cidade limpa, bem tratada, bem cuidada. O povo ama a cidade. BH e Curitiba são exemplos pra mim e eu sempre falo delas pras pessoas com as quais eu convivo no Rio de Janeiro. Aqui você entra numa cabine telefônica e tem telefone. E, melhor, o telefone funciona. Isso é difícil nos outros lugares. O belo-horizontino tem cidadania. Uma vez eu vi uma manifestação política na Praça da Liberdade e temi que as pessoas destruíssem a praça, pisassem na grama, quebrassem as árvores. Mas não, foi tudo bem comportado, civilizadamente.

 

Você encenou aqui A comédia dos sexos (de Gugu Olimecha), A filha da… (Chico Anysio) e Enfim, só (espetáculo solo). Tem algum projeto novo na manga?

– Devo trazer aqui as peças que vou fazer no Rio, com direção do Moacir Chaves. Uma é do Martins Pena e a outra é de um autor francês. No futuro, sim, quero encenar outras peças em BH. Gostei de trabalhar com o pessoal daqui e o público respondeu muito bem ao meu trabalho. É um público sensível e bem informado.

*Morreu no Rio de Janeiro, em 2003.

Um dos meus ídolos da canção nacional foi João Lutfi, ou melhor, Sérgio Ricardo. Ao lado de Geraldo Vandré e Chico Buarque, ele cantava coisas que minha geração queria gritar na cara do governo militar. Artista múltiplo, concedeu-me entrevistas em três ocasiões. Uma delas, quando fez 50 anos de carreira, foi publicada no EM, em 17 de setembro de 2000. Dias depois, telefonou-me para agradecer a reportagem e o envio do CD Beloriceia, de Helena Penna. Anos mais tarde, nos reencontramos em Brasília.

Corisco que não se entrega

 

Quem assistiu aos festivais dos anos 1960 com certeza não viu nada de novo no Festival da Música Brasileira, que terminou ontem. Se o nível das canções ficou abaixo da crítica, também faltou ao evento da Globo a irreverência e o tom de rebeldia que eletrizaram as plateias politizadas dos anos de chumbo. Um dos artistas que brilharam naqueles tempos tem uma explicação para isso. Sérgio Ricardo, que ao interpretar Beto bom de bola durante o Festival da Record de 1967 reagiu às vaiais quebrando o violão no palco, acha que a TV brasileira perdeu o trem da história em termos musicais.

Esse paulista de Marília que mora em frente ao Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, está cheio de novidades. Acaba de escrever um livro de poemas que está sendo revisado pelo poeta Thiago de Mello; lança ainda este mês a trilha da Estória de João Joana, espetáculo feito a partir do cordel escrito por Carlos Drummond de Andrade; e, no ano que vem, coloca nas lojas o CD Quando menos se espera, com suas melhores composições. Tudo isso para comemorar cinquenta anos de carreira.

Vale lembrar que a trilha sonora de Flicts, peça de Ziraldo em cartaz no Teatro da Cidade, é de sua autoria. Aos sessenta e oito anos, dois casamentos, duas filhas do primeiro e um do segundo, o autor de Zelão, Calabouço e da trilha sonora de Deus e o diabo na terra do sol – a obra-prima de Glauber Rocha – já era multimídia muito antes do termo entrar na moda. Músico, cantor, compositor, cineasta, escritor e pintor, ele trocou a música romântica pelo samba depois de quase substituir o italiano Sérgio Endrigo no selo RGE, pouco antes de quebrar o violão no tal festival.

Mesmo com tanta coisa em andamento, Sérgio Ricardo considera a menina dos seus olhos o projeto Palco Livre, que desenvolve com a Secretaria de Cultura de Niterói. Pouca gente sabe, mas a ideia nasceu em BH, quando ele trouxe à cidade os amigos Chico Buarque e Fagner para um show num circo armado na região da Pampulha.

 

Como foram as comemorações dos seus cinquenta anos de carreira?

– Comemoramos no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em setembro do ano passado, com o trabalho meu e do Drummond de Andrade, João Joana. Aliás, estamos até querendo apresentar em Itabira, terra natal do poeta. Foi um momento muito bonito, porque estavam os amigos todos cantando comigo no palco. De lá para cá eu retomei várias atividades, voltando à roda viva. “João Joana” já se transformou num CD, que sai ainda este mês. É um cordel do Drummond. Quando ele me mandou o poema para musicar, ele disse “este é o único cordel que eu escrevei e gostaria que você musicasse, o que eu fiz com o maior amor. Acabou virando uma coisa meio sinfônica e foi gravado com a Orquestra Sinfônica do Municipal com as vozes de Chico Buarque, Elba Ramalho, Alceu Valença, João Bosco, Geraldinho Azevedo, Telma Tavares e vai sair pela Rádio MEC, com distribuição da Eldorado.

 

Você também está fazendo uma coletânea com várias de suas canções. Como será esse disco e quando será lançado?

– Para não tumultuar muito a vida dos meus aficionados, o trabalho sai no ano que vem pela Casa Jorge. Já está pronto o disco, mas achamos por bem lançar um agora, que é o João Joana, e outro no ano que vem.

 

Você realizou vários filmes, como Esse mundo é meu e A noite do espantalho. Tem algum projeto cinematográfico no momento?

– A própria Estória de João Joana já foi trabalhada para um roteiro de cinema. Inclusive, fiz o roteiro em cima da música. Foi na época da Embrafilme, mas ela fechou e eu me desgostei com esse negócio de cinema. A coisa está muito cara. Você tem que se endividar todo ou sair esmolando de porta em porta. E eu realmente não tenho muita disponibilidade para isso. Não tenho jeito para esse negócio de produção.

 

Quantos filmes você fez ao todo?

– Eu fiz três longas, um média e mais uns dez curtas-metragens. Todos eles foram muito premiados, viajaram o mundo todo em vários festivais.

 

Você tem acompanhado esse retorno do cinema brasileiro?

– Tenho acompanhado sim. E tenho visto que tem muita gente boa. Muito talento novo, com coisas interessantes para dizer. O grande problema é que a maior parte dos cineastas está desencantada com essa história de produção. Os filmes ficaram muito caros. As exigências técnicas são muitas. O preço das coisas aumentou demais. O governo dá incentivo sim, mas dando a você um papel que é uma permissão para sair esmolando por aí. Eu tenho visto mais cineastas desencantados do que satisfeitos com a vida.

 

Falando em governo, como você vê o plebiscito da dívida externa que está em discussão? E qual a sua visão da cultura no Brasil de hoje?

– Eu acho o plebiscito da dívida importantíssimo. Não é possível mais que a gente fique nessa história de ficar pagando juros de juros de juros. Aí não é possível. O Brasil não tem mais condições pra isso. Com relação à cultura dentro do contexto geral do país, acho que o brasileiro não dá muita bola para a cultura. Para mim isso é a coisa mais importante, depois de se resolver o problema da miséria e da fome. Sem cultura não dá, não há condição de transformar a cabeça do povo. O cidadão precisa de uma identificação cultural com o seu país. É isso que vai dar a ele o amor pela cidadania. Não tendo cultura, ele não se identifica com nada e acaba não transformando nada. E um país se transforma mesmo é com o seu povo.

 

Como você vê o novo festival de música da Rede Globo?

– Eu vi o festival até por causa do projeto Palco Livre, que realizamos lá em Niterói. É um projeto que é exatamente a antítese do festival, porque revela a verdadeira música brasileira que está perdida por aí. Eu fui buscar o melhor da música brasileira para revelar em cena. Com relação ao festival, o que acontece é que a TV sofre de uma doença que é uma inferiorização às gravadoras, mesmo sendo a maior vitrine do País. Teria que fazer com a música como faz com as novelas, que têm os melhores artistas do País. A evolução das novelas é uma coisa nítida. Estamos fazendo aqui a melhor teledramaturgia do mundo. A TV se dá ao luxo de ter a vanguarda do teatro em seu elenco. Agora, na música isso não ocorre, porque há uma vingança que ficou no ar. Uma coisa que ocorreu com os músicos que, nos anos 1970, em luta contra a censura, resolveram por consenso coletivo retirar suas músicas do festival. Isso foi uma queda para o festival da Globo. Sem o primeiro time, a emissora teve que se virar com o segundo. E seus diretores resolveram podar a Música Popular Brasileira dentro da emissora, uma vingança que se arrastou por muitos anos. Como as outras emissoras imitam a Globo, isso passou de TV para TV e resultou num abismo entre os meios de comunicação e os artistas da MPB. Então, a vanguarda da música brasileira está fora da televisão e não há festival que se segure.

 

Dá para falar mais sobre o Palco Livre?

– O projeto Palco Livre foi apresentado ao Jorge Roberto da Silveira, prefeito de Niterói. Ele dá uma grande cobertura à cultura brasileira. Ele me contratou para fazer esse projeto, realizado no circo da Cantareira. Cheguei até a fazer uma mostra desse projeto há uns dez anos, levando Chico e Fagner a um circo montado em Belo Horizonte. Quero criar uma maneira de levar esse projeto pelo País afora, porque o músico brasileiro está ficando sem mercado. Hoje o projeto revela músicas tão boas quanto às do passado. Só que ninguém mandou essas músicas para o festival da Globo.

*Morreu no Rio de Janeiro, em 2020.

Liguei para sua casa e quem atendeu foi Malu Mader, sua mulher. Fiquei trêmulo de emoção ao ouvir a estrela que tanto admirava. Pouco depois, ele veio ao telefone para uma conversa agradável. O titã Tony Bellotto estaria em BH alguns dias depois, para lançar o livro BR 163 no projeto Sempre um Papo. Falamos de suas influências literárias, autores da nossa admiração, como Ernest Hemingway, Dashiell Hammett e Rubem Fonseca. A entrevista foi publicada no EM de domingo, 15 de abril de 2001.

Entre notas e letras

 

Pai de três filhos – a mais velha do primeiro casamento tem dezenove anos e os dois meninos que teve com Malu estão com cinco e três – Tony Bellotto está casado há onze anos e reconhece que Malu o ajudou muito na construção da narrativa em primeira pessoa da história que dá nome à sua terceira novela policial. Simpático ao telefone, o roqueiro e romancista – cujo livro Bellini e a esfinge está sendo filmado pelo cineasta Roberto Santucc, com Fábio Assunção e Malu nos papéis principais – não esconde sua admiração pela vida cultural de Belo Horizonte e cita o mineiro Oswaldo França Júnior entre seus autores prediletos. Outra atividade sua é a de apresentador do programa de TV Afinando a língua, pelo Canal Futura.

Aos 40, Bellotto publicou também Bellini e o demônio, mas em vez de completar a trilogia do detetive durão, preferiu surpreender seus leitores com duas histórias femininas em BR 163. A primeira, que dá nome ao livro, é narrada pela protagonista Lavínia. A segunda fala da trajetória de Selene, que tenta ajudar o pai a fugir da prisão. O destino das duas se cruza em algum ponto da história. 

Já em O livro da guitarra, o músico passa ao público juvenil sua experiência como guitarrista. Mais que um manual do instrumento, o livro é uma narrativa pessoal sobre a profissão de músico. A obra traz também informações sucintas sobre rock, jazz, blues, flamenco, MPB e os grandes mestres da guitarra.

O guitarrista e escritor parece ser daqueles que não leva a fama tão a sério, embora saiba da importância de ser reconhecido. Tanto que não esconde o fato de ter enviado seu primeiro manuscrito para a Companhia das Letras anunciando tratar-se do guitarrista dos Titãs. “Se não fizesse assim”, considera, “correria o risco de nem ser lido”. Ao contrário de seus colegas de grupo, ele garante que não pretende lançar disco solo: “Eu me realizo nos momentos solo escrevendo”.

Como foi sua formação literária?

– A formação de um escritor é sempre a do leitor. Eu sempre gostei muito de ler, desde garoto. A partir de certo momento comecei a me interessar especificamente pela literatura policial. Quando você começa a querer escrever, torna-se um leitor mais atento, tentando compreender a construção da narrativa. É uma leitura mais crítica… Eu gosto muito dos escritores americanos do século XX. Hemingway e Hammett são os maiores pra mim nesse tipo de carpintaria de texto seco, direto e mais ágil.

 

Eles se admiravam mutuamente, sabia?

– Isso é interessante, porque os dois tinham estilos parecidos. Privilegiavam os diálogos e cortavam as gorduras do texto. O conto The killers, do Hemingway, é puro Hammett. Gosto também do Raymond Chandler. Dos autores mais contemporâneos, gosto do James Lewroy. Acho que ele mantém essa tradição, mas escreve com mais cinismo, numa linguagem mais atual.

 

Já leu algum livro do francês Leo Mallet?

– Já, ele é outro cara genial. Dos franceses eu gosto ainda do George Simenon. É o cara que criou um grande personagem da literatura policial, que é o inspetor Magret. Ele escreveu também livros não policiais. Era um cara fantástico, escrevia um livro a cada dez dias. Gosto do Camus. Graciliano Ramos é outro ótimo. Todos eles têm um jeito meio americano de escrever. 

 

Você foi influenciado pelo Rubem Fonseca?

– Muito. O Rubem é uma influência muito forte para a nossa geração. Na adolescência, depois de ler todos aqueles clássicos do tipo Moby Dick, eu procurei uma literatura mais adulta e li alguns contos dele. Fiquei muito impactado. 

Qual das duas nasceu primeiro na sua vida, a música ou a literatura?

– A paixão pela música e pela literatura caminharam juntas. Mas a profissão de guitarrista surgiu antes do escritor. Na juventude, eu não conseguia ter disciplina para levar a escrita a sério. Eu até tinha vontade de escrever, mas não tinha concentração. Quando comecei a escrever, eu já era um guitarrista experiente, com mais de 30 anos de idade.

A fama de músico ajuda o escritor?

– Sem dúvida. Quando escrevi meu primeiro livro, mandei o manuscrito para o editor como um livro do guitarrista dos Titãs. Se eu tivesse mandado como um autor desconhecido, talvez ele nem tivesse lido. Isso é o que muitas vezes acontece, já que as editoras recebem pilhas de originais. Mas existem aqueles críticos acadêmicos que não veem o meu trabalho com bons olhos justamente porque sou músico. Existe nisso um certo preconceito.

 

O José Castelo disse que você é de uma geração de escritores que desejam ser lidos. Você concorda?

– Eu escrevo espontaneamente. Não penso muito num livro dirigido a esse ou àquele leitor. Eu escrevo o livro para mim mesmo, o livro que eu gostaria de ler. Mas sou contra certa fatia da crítica que privilegia os livros sofisticados e ininteligíveis. Claro que existem livros sofisticados e ótimos, como Ulisses, de Joyce. Mas concordo com o José Castelo. Uma coisa que não tinha no Brasil era essa literatura de entretenimento de qualidade, com uma história bem contada.

 

Como está indo o filme do Bellini?

– Já foi filmado e estamos agora em fase de finalização. Estou compondo a trilha sonora junto com Eduardo Queiroz, que é um músico que faz trilhas, o Charles Galvan dos Titãs e Andreas Kisser do Sepultura. É minha primeira experiência como autor de trilha. Tem algumas coisas difíceis, mas como estamos trabalhando com um trilheiro, então fica mais fácil.

Os Titãs têm algum novo projeto?

– Estamos começando a ensaiar um novo disco, que deve ser gravado em junho e julho, no Rio de Janeiro. A produção é do americano Jack Endino, que já trabalhou com a gente em outros discos.

 

Como você vê a questão das drogas no Brasil?

– Estou cada vez mais convencido de que o grande problema das drogas não são as drogas em si. Acho que algumas drogas, usadas com parcimônia e inteligência, podem até ser prazerosas e não fazer mal nenhum. O problema é a relação das drogas com o crime. Toda vez que você compra uma droga, está fortalecendo o crime. E está fortalecendo tudo de ruim que existe no Brasil. A minha postura antidrogas é muito clara, mais pela questão social do que pela questão moral ou médica. Claro que quando você tem filhos sua preocupação aumenta. A falta de responsabilidade no uso pode até levar um jovem à morte. Mas as campanhas que estão sendo feitas não adiantam muito. Deveria haver uma política diferente. Eu posso até ser a favor da liberação das drogas, porque o grande mal é o banditismo e a corrupção que existem por trás delas.

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