– É impressão minha ou está me assediando?
– Assediando, eu?
– É, você. Por acaso tá flertando comigo?
– Não, a senhora está enganada.
– Senhora? Tá me chamando de velha?
– Não, é só maneira de falar.
– Deixa de hipocrisia, rapaz. Me chamou de velha, sim.
– Velha, não. Balzaquiana, talvez.
– Balza, o quê? Que palavrão é esse?
– Não é palavrão, não. Tem a ver com Balzac.
– E em que time ele joga?
– Não é jogador, não. Ele é… Melhor deixar pra lá.
– Você deve ser um chauvinista, desses que olham a mulher como se fosse um bife de alcatra.
– Eu não tive a intenção.
– Claro que teve. Eu conheço esse olhar.
– Que olhar, minha senhora?
– Senhora tá no céu.
– Desculpe, eu…
– Olhar 43, mirada de peixe morto. De cachorro na porta do açougue.
– Cachorro na porta do açougue?
– É, o vira-lata fica salivando, sentindo o cheiro de carne fresca. Eu devia mesmo era fazer um B.O. na Delegacia de Mulheres.
– Não faça isso, por favor. Eu sou um homem casado.
– Casado, ainda por cima? Mas quanta cara de pau!
– Está havendo um mal-entendido.
– Mal-entendido, coisa nenhuma. É a maldita cultura hétero-machista.
– Mas eu não sou machista.
– Não? Por que, então, me olha desse jeito?
– De que jeito?
– Como se eu fosse um bife de alcatra.
– Mas eu nem como carne.
– Não come carne?
– Não, eu sou vegano.
– Vegano, com essa cara de lobo-mau olhando a Chapeuzinho? Ledo engano, isso sim!
– Quer saber? A senhora está mais pra vovó do que pra Chapeuzinho.
– Como ousa? Tá se achando o Brad Pitty, é?
– Eu não acho nada.
– Sei… Aqui, me diz uma coisa, meu caro: pareço tão velha assim?
– Pergunte ao espelho.
– Agora tá me chamando de bruxa!
– Entenda como quiser.
– Espelhos costumam mentir, sabia?
– Pelo que sei, quem mente é o Pinóquio.
– Pode dizer! Tá me achando velha, gorda ou malcuidada?
– Nada disso… Eu diria que é uma falsa magra.
– Tá vendo só? Não falei que tava me olhando? Pode confessar!
– Foi você que perguntou.
– Era só responder! Não precisava ficar olhando as minhas curvas. Isso é machismo tóxico.
– Curvas? Tá pensando que é a estrada de Santos, ou uma obra do Niemeyer?
– O quê? Agora tá insinuando que sou reta feito uma tábua?
– Não tô insinuando nada.
– Vê se decide, seja sincero!
– Ah, meu Deus! Tudo o que eu disser será usado contra mim.
– Basta dizer a verdade. Detesto mentira, sabia?
– Não, eu não sabia. E, francamente, não quero saber.
– Também não precisa ser grosso.
– Olha, já deu! Melhor encerrarmos o papo, que o 57 não demora.
– 57? Mas eu também vou pegar esse ônibus.
– Ah, não! Desse jeito é melhor eu ir a pé.
– Puxa, será que a minha companhia é assim tão desagradável?
– Eu não disse isso.
– Não disse, mas pensou… Por que não dividimos o táxi, hein?
– Dividir o táxi, nós dois?
– É, o 57 dá muitas voltas e demora a chegar.
– Mas eu nem conheço a senhora.
– Senhora tá no céu, eu já disse… Se preferir, eu posso chamar o Uber.
– E quem falou que nós vamos para o mesmo endereço?
– Bem, eu não tenho nada pra fazer agora à tarde…
– E?
– Pensei que a gente podia…
– Podia o quê?
– Ah, sei lá! Tomar um chope, conversar, falar de política.
– Eu não bebo.
– Não bebe?
– E também detesto política.
– Como alguém pode detestar política? Não me diga que é alienado!
– Não é nada disso. A minha esposa está me esperando.
– Esposa?! Você chama ela de esposa?
– E como eu deveria chamá-la?
– De minha mulher; ma femme, como dizem os franceses… Esposa é muito burguês, muito reacionário. Dá ideia de posse. Só não é pior que patroa.
– Eu, hein!
– No duro. Esposa é uma palavra patriarcal. Tira o tesão de qualquer mulher.
– Mesmo? Eu nunca tinha pensado nisso.
– Pois devia. Se continuar chamando-a de esposa, o casamento não vai durar muito.
– Já fizemos bodas de prata.
– Bodas de prata? Como assim? Hoje em dia, ninguém fica casado por tanto tempo.
– Toda regra tem exceção.
– Nossa, como você é previsível! O casamento é uma instituição falida, meu filho.
– Olha, lá vem o 57!
– Não quer mesmo dividir o táxi?
– Já disse que sou casado.
– E quem disse que eu sou ciumenta?!
– Hoje eu não posso. Fica para outro dia.
– Você é dos tais que não gostam de ser cantados, não é?
– Não entendi.
– Deve ser do tipo que dá em cima da mulher, e, quando ela dá bola, acaba brochando.
– E quem disse que eu brochei? Quer saber de uma coisa? Vamos logo chamar um Uber e ir pro motel.
– Motel, a essa hora? Podíamos tomar um chope, primeiro.
– Não posso chegar tarde em casa.
– Viu só como eu tinha razão?
– Como assim?
– Hétero, machista e cafajeste.
– Agora vai me denegrir?
– E, além de tudo, racista!
– Eu…
– Você não me engana. Tava o tempo todo me comendo com os olhos, como se eu fosse um bife de alcatra. A Marcia Tiburi é que tem razão: os homens são todos iguais.
Parabéns pelo texto “dialogógico”! Se fosse um bife de picanha seria considerado um elogio? kkkkkkkk
Obrigado pelo bom humor, abraço
muito divertido, valeu.
Que diálogo realista.
A fêmea segue o script engajado para reagir aos olhares do macho, mas, no último ato, consegue se livrar do clichê quando os seus instintos femininos sobressaem.
Ardilosamente, o texto deixa por conta do leitor interpretar a dúvida se o macho olhou ou não para as curvas da mulher.
Será que, na contraofensiva da mulher, o lado macho chauvinista dele sobressaiu-se ao se manter superior às mulheres?
Quando transar com a sua esposa, pensará naquela mulher?
A criatividade do autor brindou os leitores com essa fábula moderna . Feliz ou infelizmente na fábula da “Alcatra” acaba que ninguém come ninguém.
“Tudo que você disser, poderá ser usado contra você! A menos que concorde com cada palavra que eu disse e arrependa-se de ser um macho tóxico ”
Momento macaquinhos cego, surdo e mudo. Enquanto “seu” Ônibus não vem.
Rsrsrsrsrs. Essa capacidade de criar fatos sucessivos a partir de uma ideia, uma opinião, una frase, acho sensacional em você meu amigo! Depois de pronto, parece que é fácil né! Muiiito bom Jorge! Abraço!
Boa tarde, Jorge!
Excelente, como sempre!
Abraço
Nem sei o que dizer! Me deu muita inquietação este texto.
A leitura foi muito satisfatório a lê-lo cadê às próximas páginas kkkk divertida!!