Jorge Fernando dos Santos

Bife de alcatra

– É impressão minha ou está me assediando?

– Assediando, eu?

– É, você. Por acaso tá flertando comigo?

– Não, a senhora está enganada.

– Senhora? Tá me chamando de velha?

– Não, é só maneira de falar.

– Deixa de hipocrisia, rapaz. Me chamou de velha, sim.

– Velha, não. Balzaquiana, talvez.

– Balza, o quê? Que palavrão é esse?

– Não é palavrão, não. Tem a ver com Balzac.

– E em que time ele joga?

– Não é jogador, não. Ele é… Melhor deixar pra lá.

– Você deve ser um chauvinista, desses que olham a mulher como se fosse um bife de alcatra.

– Eu não tive a intenção.

– Claro que teve. Eu conheço esse olhar.

– Que olhar, minha senhora?

– Senhora tá no céu.

– Desculpe, eu…

– Olhar 43, mirada de peixe morto. De cachorro na porta do açougue.

– Cachorro na porta do açougue?

– É, o vira-lata fica salivando, sentindo o cheiro de carne fresca. Eu devia mesmo era fazer um B.O. na Delegacia de Mulheres.

– Não faça isso, por favor. Eu sou um homem casado.

– Casado, ainda por cima? Mas quanta cara de pau!

– Está havendo um mal-entendido.

– Mal-entendido, coisa nenhuma. É a maldita cultura hétero-machista.

– Mas eu não sou machista.

– Não? Por que, então, me olha desse jeito?

– De que jeito?

– Como se eu fosse um bife de alcatra.

– Mas eu nem como carne.

– Não come carne?

– Não, eu sou vegano.

– Vegano, com essa cara de lobo-mau olhando a Chapeuzinho? Ledo engano, isso sim!

– Quer saber? A senhora está mais pra vovó do que pra Chapeuzinho.

– Como ousa? Tá se achando o Brad Pitty, é?

– Eu não acho nada.

– Sei… Aqui, me diz uma coisa, meu caro: pareço tão velha assim?

– Pergunte ao espelho.

– Agora tá me chamando de bruxa!

– Entenda como quiser.

– Espelhos costumam mentir, sabia?

– Pelo que sei, quem mente é o Pinóquio.

– Pode dizer! Tá me achando velha, gorda ou malcuidada?

– Nada disso… Eu diria que é uma falsa magra.

– Tá vendo só? Não falei que tava me olhando? Pode confessar!

– Foi você que perguntou.

– Era só responder! Não precisava ficar olhando as minhas curvas. Isso é machismo tóxico.

– Curvas? Tá pensando que é a estrada de Santos, ou uma obra do Niemeyer?

– O quê? Agora tá insinuando que sou reta feito uma tábua?

– Não tô insinuando nada.

– Vê se decide, seja sincero!

– Ah, meu Deus! Tudo o que eu disser será usado contra mim.

– Basta dizer a verdade. Detesto mentira, sabia?

– Não, eu não sabia. E, francamente, não quero saber.

– Também não precisa ser grosso.

– Olha, já deu! Melhor encerrarmos o papo, que o 57 não demora.

– 57? Mas eu também vou pegar esse ônibus.

– Ah, não! Desse jeito é melhor eu ir a pé.

– Puxa, será que a minha companhia é assim tão desagradável?

– Eu não disse isso.

– Não disse, mas pensou… Por que não dividimos o táxi, hein?

– Dividir o táxi, nós dois?

– É, o 57 dá muitas voltas e demora a chegar.

– Mas eu nem conheço a senhora.

– Senhora tá no céu, eu já disse… Se preferir, eu posso chamar o Uber.

– E quem falou que nós vamos para o mesmo endereço?

– Bem, eu não tenho nada pra fazer agora à tarde…

– E?

– Pensei que a gente podia…

– Podia o quê?

– Ah, sei lá! Tomar um chope, conversar, falar de política.

– Eu não bebo.

– Não bebe?

– E também detesto política.

– Como alguém pode detestar política? Não me diga que é alienado!

– Não é nada disso. A minha esposa está me esperando.

– Esposa?! Você chama ela de esposa?

– E como eu deveria chamá-la?

– De minha mulher; ma femme, como dizem os franceses… Esposa é muito burguês, muito reacionário. Dá ideia de posse. Só não é pior que patroa.

– Eu, hein!

– No duro. Esposa é uma palavra patriarcal. Tira o tesão de qualquer mulher.

– Mesmo? Eu nunca tinha pensado nisso.

– Pois devia. Se continuar chamando-a de esposa, o casamento não vai durar muito.

– Já fizemos bodas de prata.

– Bodas de prata? Como assim? Hoje em dia, ninguém fica casado por tanto tempo.

– Toda regra tem exceção.

– Nossa, como você é previsível! O casamento é uma instituição falida, meu filho.

– Olha, lá vem o 57!

– Não quer mesmo dividir o táxi?

– Já disse que sou casado.

– E quem disse que eu sou ciumenta?!

– Hoje eu não posso. Fica para outro dia.

– Você é dos tais que não gostam de ser cantados, não é?

– Não entendi.

– Deve ser do tipo que dá em cima da mulher, e, quando ela dá bola, acaba brochando.

– E quem disse que eu brochei? Quer saber de uma coisa? Vamos logo chamar um Uber e ir pro motel.

– Motel, a essa hora? Podíamos tomar um chope, primeiro.

– Não posso chegar tarde em casa.

– Viu só como eu tinha razão?

– Como assim?

– Hétero, machista e cafajeste.

– Agora vai me denegrir?

– E, além de tudo, racista!

– Eu…

– Você não me engana. Tava o tempo todo me comendo com os olhos, como se eu fosse um bife de alcatra. A Marcia Tiburi é que tem razão: os homens são todos iguais.

10 comentários em “Bife de alcatra”

  1. Que diálogo realista.
    A fêmea segue o script engajado para reagir aos olhares do macho, mas, no último ato, consegue se livrar do clichê quando os seus instintos femininos sobressaem.
    Ardilosamente, o texto deixa por conta do leitor interpretar a dúvida se o macho olhou ou não para as curvas da mulher.
    Será que, na contraofensiva da mulher, o lado macho chauvinista dele sobressaiu-se ao se manter superior às mulheres?
    Quando transar com a sua esposa, pensará naquela mulher?

  2. “Tudo que você disser, poderá ser usado contra você! A menos que concorde com cada palavra que eu disse e arrependa-se de ser um macho tóxico ”
    Momento macaquinhos cego, surdo e mudo. Enquanto “seu” Ônibus não vem.

  3. Wander Conceição

    Rsrsrsrsrs. Essa capacidade de criar fatos sucessivos a partir de uma ideia, uma opinião, una frase, acho sensacional em você meu amigo! Depois de pronto, parece que é fácil né! Muiiito bom Jorge! Abraço!

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