Dizem que o mineiro trabalha em silêncio. Enquanto o resto do país faz estardalhaço por qualquer coisa, ficamos calados, olhando nossos pares e ímpares sempre com desconfiança ou inveja. Esse jeito nós herdamos do ciclo do ouro, já que no garimpo o silêncio é a alma do negócio. Ou talvez seja um traço herdado dos criadores de gado, no ciclo do couro, quando era comum desfazer do gado alheio para comprá-lo na bacia das almas. Seja lá como for, eis o silêncio, sobretudo e sobre todos.
Esse “nariz de cera” é para dizer que o Jota Dangelo, nosso grande homem de teatro, acaba de lançar pela Editora Atheneu um livro excepcional, intitulado Os Anos Heroicos do Teatro em Minas. Nele, o ator, autor e produtor teatral dá seu testemunho dos bastidores teatrais de Belo Horizonte entre 1950 e 1990, acrescentando entrevistas com importantes protagonistas da cena mineira, além de um rico acervo de fotos.
Dangelo dispensa apresentações, mas vale ressaltar seu pioneirismo. Quando ainda estudava Medicina na UFMG, ele e seu bravo colega Angelo Machado – hoje um consagrado zoólogo e autor de livros infanto-juvenis – fundaram o Show Medicina, ao qual se deve o fato de muitos médicos de BH se interessarem também por teatro. Entre esses vale citar o autor e diretor Jair Raso, neurologista do primeiro time – para lembrar apenas um dentre os muitos que se destacam nos consultórios e teatros da cidade.
Dentre os muitos trabalhos escritos e dirigidos pelo Dangelo, sempre me lembro de Noel, O Feitiço da Vila, encenado em 1988. Primeiro que sou apaixonado pela obra do compositor de Vila Isabel. Segundo que o espetáculo em questão foi excepcional. Tanto que para este ano, quando o país comemora o centenário do sambista, procurei saber se o autor traria de volta sua peça para só depois aceitar o desafio de escrever um musical sobre a presença de Noel em BH, a ser encenado pelo grupo Caixa de Fósforos. Para quem não sabe, o compositor morou aqui entre janeiro e abril de 1935, quando veio tentar se curar da tuberculose.
Dangelo é também compositor e carnavalesco. Foi Secretário de Estado da Cultura e hoje dirige o BDMG Cultural. Em seu livro, ele prova também que é jornalista. Não tem diploma de comunicação nem carteirinha do sindicato, mas escreve melhor que muitos coleguinhas que insistem no exercício profissional. Sua memória é prodigiosa e seu livro resgata importantes momentos de sua vida e do teatro exercido com fidalguia por uma geração aguerrida, que enfrentou os terríveis moinhos da ditadura militar e o preconceito da tradicional família mineira.
O lançamento do Dangelo ocorre 26 anos depois que publiquei meu primeiro livro, Teatro Mineiro – Entrevistas & Críticas, em 1984, pela Imprensa Oficial de Minas Gerais. Até aquele ano, não havia nenhum livro sobre nossas artes cênicas e eu cometi a loucura de ser o primeiro nessa ingrata tarefa. Em 1995, voltei ao tema, publicando pela Editora Del Rey o volume BH em Cena – Teatro, Televisão, Ópera e Dança na Belo Horizonte Centenária. Hoje, pouca gente se recorda do meu esforço em registrar parte da nossa memória cultural em respeito àqueles que devotam suas vidas ao ofício das artes.
Quando em 1983 passei a assinar a coluna Teatro Vivo, publicada quarta e sábado na 2ª Seção do Estado de Minas – editada pelo generoso Geraldo Magalhães – não havia praticamente nada documentado sobre as artes cênicas em nosso estado. Além de “cometer” algumas críticas sobre o que se passava nos palcos e bastidores do teatro daquela época, abri espaço para publicar entrevistas com artistas de destaque – entre eles o Dangelo. Além dos pioneiros do palco, ouvi novos talentos e artistas globais que por aqui se apresentavam na ocasião, incluindo a cidade no circuito nacional.
Para que esse trabalho não se perdesse no tempo, reuni a documentação nos dois livros, organizados de maneira diferente. O primeiro volume foi dividido em duas partes, com 54 entrevistas e alguns artigos de minha lavra. O segundo eu preferi dividir em quatro partes, narrando a história da TV Itacolomi, dos principais grupos de dança e teatro da cidade, e discorrendo sobre a nossa produção lírica desde os primóridos, por volta de 1935.
O curioso é que algumas pessoas viraram a cara aos dois trabalhos pelo simples fato de não constarem neles. O mesmo deverá ocorrer com o Dangelo, pois seria impossível esgotar o assunto ou incluir todos os nomes realmente importantes da cena mineira num livro. É bom que se diga que o fato de determinada pessoa não estar nesta ou naquela publicação não significa que ela seja desimportante ou que a omissão tenha sido intencional. É humanamente impossível esgotar qualquer tema sobre o qual se pretenda escrever. Só os profissionais do ramo sabem disso sem mágoa ou rancor. Mas num meio no qual a vaidade pesa mais que o talento, parece natural que o “famoso quem” se ofenda por não ter sido lembrado.
Num país que peca pela amnésia, sobretudo no que se refere à cultura nacional, o ideal seria que todo artista escrevesse pelo menos um livro narrando sua trajetória, defendendo suas teses, dando seu testemunho e resgatando os eventos e os nomes de sua época. É o que Jota Dangelo fez com muita propriedade em seu livro recém-lançado. E foi também o que tentei fazer quando me propus à tarefa de reunir em dois volumes o material que publiquei no jornal. Cada um dos nomes enfocados daria uma bela biografia, tarefa que está por ser feita como quase tudo em nossa cidade.
Caro Jorge Fernando,
Hoje, depois de muito tempo, nos encontramos na recepção do Hospital São Lucas e batemos um rápido papo.Resolvi atualizar minhas leituras e acessei o seu blog e tardiamente, decidi fazer um comentário neste texto e dar um testemunho.Quando você fala do Jota Dângelo, eu gostaria de acrescentar que início de 1969, eu fiz parte do Teatro Experimental, à convite do Jonas Bloch. Eu e o Carlos Alberto Ratton, hoje um grande escritor e dramaturgo, fomos convidados e iniciamos no mesmo dia e recebemos como incumbência dirigir e montar uma peça, se me lembro bem, de nome Os Dois Cegos.Enquanto ensaiávamos, participávamos como figurantes na encenação Oh,oh, Minas Gerais. Não continuamos, por que a Ditadura Militar não permitiu.
Mano blogueiro,
tanto o seu livro, precursor, quanto o de Dângelo, o de Glória Reis sobre a dança, o de Raul sobre cenografia, e outros que estão a caminho, vão iluminando caminhos de reflexão. Acho muito bom.
A respeito de sua reflexão sobre políticas culturais no meu post sobre a prefeitura de Itabirito concordo inteiramente.
As classes artísticas e suas representações formam um quadro desanimador.
A luta toda anterior, mobilizadora, que deu na criação de secretarias e do ministério da cultura, nas leis de incentivo, na profissionalização, diluiu-se por completo.
Cada artista ou grupo ou empresa, hoje, está interessado apenas no seu projeto particular.
Isto se reflete no desmazelo político dos governantes e nas próprias produções que estão empobrecidas.
Onde uma reflexão atraente no palco?
Há quanto tempo não vou ao teatro e vejo no palco artistas questionando o Brasil, o povo brasileiro, sua cultura, seus caminhos?
Vejo apenas tolice.
Nada escapa.
Tolices e mais tolices.
E não estou falando das comediazinhas caça-níqueis, estou falando das produções do que poderíamos chamar de alto teatro.
Estou falando de gente competente artisticamente.
Estou falando do Galpão, do Eid, do Carlão, do Paulo César, do Espanca, do Bones, do Pedro Paulo, de Yone Medeiros, do Wilsinho, do Gradim, do Kalu, do próprio FIT. E aí eu me incluo também.
O que temos visto além de tolices? De levezas bem feitas? De dramaturgia pobre e vazia? De remontagens ou adaptações que flertam com uma cultura passada?
Onde as idéias?
Onde o dedo na ferida?
Onde os grandes temais nacionais, estaduais, municipais, mundiais?
O que o FIT nos trouxe ultimamente além de tolices enfeitadas?
Então, longe das reflexões, os artistas correm atrás de patrocinadores e o público corre do teatro.
E os políticos correm de suas responsabilidades.
E as entidades correm das assembléias onde se poderia ao menos iniciar algum reflexão.
E nós nos lamentamos.
Acho que estamos todos perdidos.
abraço, mano.