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Toda rua que se preza tem um bêbado de estimação. O bêbedo da minha rua não é diferente da maioria que perambula por aí. É gente boa e de origem humilde, mas o vício o arrastou para a sarjeta. Como muitos brasileiros que a sorte desconhece, o bêbado da minha rua sobrevive de pequenos biscates e gasta o pouco que consegue ganhar com cachaça e cigarro. Fora isso, não sei mais nada sobre ele. A não ser o fato de que, de vez em quando, ele me pede um trocado pra rebater a pinga de ontem ou se oferece para cumprir alguma tarefa descomplicada, como podar a grama do jardim, lavar o carro ou varrer o quintal.

Nas últimas semanas, o bêbado da minha rua resolveu radicalizar. Transtornado pelo efeito mágico e malévolo do álcool, outro dia ele bateu a campainha lá de casa altas horas da noite e pediu alguma coisa de comer. O relógio marcava meia-noite. Mesmo assim, dei-lhe um sanduíche que havia sobrado do lanche da noite. Ele sorriu e saiu tropeçando rua abaixo, mastigando o pão com presunto. Eu dei um suspiro de contentamento e fui me deitar com um sorriso franciscano nos cantos da boca.

Alguns dias depois, por volta das duas da manhã, acordei sobressaltado com os cachorros latindo no portão. Permaneci na cama, com os olhos mirando o escuro e os ouvidos ligados em qualquer ruído suspeito. O plin-plão da campainha me fez saltar da cama. Minha mulher acordou, perguntando quem será numa hora dessas. Abri a porta da sala sem acender a luz e fui até o jardim. Pelo olho mágico do portão vi a figura inconfundível do bêbado da minha rua.

Abri o portão e ele perguntou se por acaso eu não teria um sanduíche de presunto como aquele que eu lhe dera dias atrás. Pedi um tempo e assaltei a geladeira, improvisando um sanduíche de queijo, que levei ao incômodo visitante. Ele agradeceu e seguiu seu caminho tropeçando na própria sombra, mais bêbado que um gambá de alambique.

Dois dias depois, cheguei do trabalho tarde da noite e vi o bêbado da minha rua enchendo a cara no boteco da esquina. Pensei como é que ele arranja dinheiro pra beber sem se preocupar com o que comer. Entrei em casa na certeza de que não era nem um pouco responsável por ele ou pelo seu vício maldito. Feito urubu em dia de urucubaca, demorei a pegar no sono e acordei às duas e meia com a campainha tocando e os cachorros latindo. Minha mulher também acordou dizendo não acredito que é o bêbado de novo.

Saltei da cama e fui para o terreiro decidido a exorcizar o meu espírito de bom samaritano. Através do olho mágico pude ver o bêbado da minha rua cambaleando feito joão-bobo em dia de festa. Peguei a mangueira do jardim, abri o portão e lhe dei um inesquecível banho de água fria. Desde então, tenho dormido tranquilamente todas as noites da minha vida.


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