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Quando era criança, ele costumava falar sozinho. Não se lembrava mais se ouvia vozes, mas que falava, falava. Disso tinha certeza. E era repreendido pela mãe que dizia:

– Pára de falar sozinho, menino. Parece doido!

E ele acabava fazendo silêncio, falando só em pensamento, sem ninguém perceber, até que um dia deixou de vez a estranha mania…

De uns tempos para cá, dera para contar coisas. E contava os azulejos do banheiro, os ladrilhos do chão da cozinha, o número de vidros do basculante da sala. Quando ia pelas ruas da cidade, contava os carros, os postes e as janelas dos edifícios. Um dia surpreendeu-se ao constatar que, após percorrer a pé um bom trecho da avenida Afonso Pena, havia contado novecentos e cinqüenta e quatro postes, oitocentos e trinta e uma janelas de edifícios e duzentos e oitenta e três degraus de escadas. No final da maratona, estava exausto, quase sem fôlego. Percebeu que realmente alguma coisa muito estranha estava ocorrendo em sua mente. Num fio de memória, lembrou-se da advertência da mãe:

– Parece doido!

– Doido? – interrogou-se em pensamento.

E a partir daquele instante, passou a observar melhor os próprios hábitos. Chegara à conclusão de que não poderia continuar daquele jeito, contando tudo o que via. Ainda no dia anterior, quase passara do ponto de ônibus onde costumava descer, distraído ao contar o número de passageiros à bordo. Assustara-se, inclusive, ao notar que a quantidade de pessoas em pé superava em mais do dobro a de pessoas sentadas. À noite, vítima constante de insônia, ficava contando ovelhas durante horas, até o sono chegar já quase ao amanhecer. Ao se levantar da cama, distraía-se contando os tacos do chão do quarto e por pouco não perdia a hora.

Mas haveria de melhorar… Já a caminho do escritório, notou um considerável progresso ao resistir à tentação de contar as grades do Parque Municipal. No serviço, procurou concentrar-se na rotina e sentiu-se melhor ao vencer o teimoso impulso que quase o levara a contar os livros de Direito na estante à sua frente. Na hora do almoço, não contou as garrafas na prateleira do restaurante e nem os bagos de arroz no fundo do prato. Retornou ao escritório sentindo-se um vencedor, verdadeiro campeão, dono de rara força de vontade. Duas horas depois, sofreu uma recaída. Surpreendeu-se contando os orifícios do crivo do mictório, enquanto urinava.

– Doido, eu? – perguntou a si mesmo, agora em voz alta.

Naquele momento, tomou uma decisão única e extrema: “Um psicanalista, eis a solução”. De maneira nenhuma e em momento algum poderia contar com a ajuda dos colegas, amigos ou familiares. Sabe lá o que eles iriam pensar? Somente um especialista devidamente diplomado poderia ajudá-lo de verdade e sem fazer críticas ou observações incômodas. Entrando na sala de trabalho, consultou a lista telefônica, escolheu um nome e discou.

Marcou a consulta para dali a uma hora. Ansioso, tentando evitar o hábito de contar objetos, distraiu-se contando os minutos. Saiu do escritório, entrou num táxi e falou o endereço. Minutos depois estava deitado no divã, explicando os sintomas que tanto o afligiam. Na parede do consultório, sobre os ombros do analista, Freud o observava com um olhar austero, envolto por uma velha moldura de madeira preta.

Foram várias sessões de psicanálise. Meses depois, sem conseguir um resultado satisfatório, o analista – já ciente da extinta mania do seu paciente em falar sozinho – sugeriu a ele a substituição do novo hábito pelo antigo. Seria muito simples: ao invés de contar coisas, ele voltaria a conversar sozinho. Depois passaria a falar só em pensamento e, finalmente, eliminaria qualquer mania que lhe fosse prejudicial ao juízo.

E o doutor tinha razão, pelo menos em parte. À medida em que voltava a falar sozinho, o paciente ia deixando de contar coisas. Numa segunda etapa da terapia, passou a falar em pensamento, silenciosamente, sem nem mesmo mover os lábios. Só então percebeu um novo e perigoso sintoma. Enquanto ia deixando de falar sozinho – e já havia muito tempo que não mais contava coisas

– passou a ouvir vozes que lhe falavam coisas estranhas e com muita insistência. O psicanalista tentou ajudá-lo, mas foi em vão.

Um dia, enquanto limpava um velho revólver que herdara do pai, o homem que contava coisas ouviu uma voz insistente: “Estoure os miolos. Vamos, estoure os miolos e resolva todos os seus problemas”.

Como que hipnotizado, não resistindo à ordem insistente, ele carregou a arma – depois de resistir à tentação de contar os cartuchos que tinha dentro da caixa. Então, puxou o cão para trás e enfiou o cano no ouvido. Mas, por ironia de sua própria sorte, ao invés de fazer uma contagem regressiva, resolveu contar de um até três e nunca mais conseguiu parar.

  • Incluído na coletânea “Caminhante Noturno” (Ed. Terceira Margem).

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